O segundo processo

AutorMárcio Túlio Viana
Ocupação do AutorProfessor nas Faculdades de Direito da UFMG e da PUC-Minas.
Páginas245-251

Page 245

Non si parla solo colla lingua al mondo, ma con gli occhi, coi gesti, col passo: tutto è parola, tutto è verbo (Constantino Maes, 1885)

1. A ideologia das formas

Desde as escolas de Direito, mas também na vida forense, o processo nos é mostrado como um produto da razão; uma invenção lógica, metódica, inteira, quase perfeita. Aqui ou ali, num ponto ou noutro, pode até receber algumas críticas. Mas mesmo as críticas mais fortes - como as ligadas ao tempo - são antes de forma que de fundo. Alguns recursos a menos, alguma efetividade a mais, e tudo estaria resolvido.

Exatamente por parecer racional, o processo nos é mostrado também como expressão de democracia. Afinal, quem é parte - ensinava o grande Cunha Campos - participa da construção da sentença, através das técnicas do contraditório.

O processo nos parece tão firme, sólido e concreto, que é a ele que nos referimos quando temos os autos nas mãos. "Quero levar este processo", ou "vim dar baixa neste processo" - dizemos ao servidor da Vara, apontando aquela pilha de folhas. Tal como os outros objetos, o processo tem peso, cor, idade e até cheiro - de novo ou (conforme o caso) de mofo.

Nesse processo racional, democrático, igualitário, concreto e até perceptível pelos sentidos, só entra o que a Lei filtra, seleciona e ficha. O que ela quer não é a verdade pura e simples, mas a verdade revelada segundo certos critérios. Esta é a razão pela qual o que não está nos autos não estaria no mundo. O que importa, no final das contas, é apenas o pedaço de mundo que os autos contêm.

Protegido das outras dimensões da vida, o processo se mostra neutro, autossuficiente, alheio a influências. E essa qualidade acentua a sua imagem justa e técnica, como se fosse uma verdadeira máquina de fazer sentenças - à semelhança de tantas outras máquinas que acompanharam, passo a passo, a sua própria evolução, desde o fim do século XVIII.

Aliás, até a estrutura da sentença seria a prova dessa racionalidade: no relatório, o juiz mostra que estudou os autos, contando a história relevante1 do processo; nos fundamentos, prepara as premissas de seu silogismo, dialogando consigo mesmo e com as partes, interpretando a prova e o direito, e encontrando o que lhe parece ser a verdade; na conclusão, decide de forma quase necessária num certo sentido, que é também o único correto despejando então o seu produto final, como um pão saído do forno, pronto para ser consumido.

Mas se, em teoria, o processo é tudo aquilo que acabamos de ver, não é bem essa - pelo menos por inteiro - a prática do processo.

Page 246

2. As formas da linguagem

Como certa vez observamos em singelo texto2, há uma gama quase infinita de variáveis que escapa à regulação. O modo de falar, o jeito de olhar, a forma de vestir, um pequeno silêncio, o soldado na porta, a fila do elevador, um gesto de impaciência, um lapso de memória, uma observação irônica - tudo isso e muita coisa mais podem afetar o raciocínio, o argumento, a convicção, a segurança, as simpatias e antipatias das partes, das testemunhas e do juiz.

Até os objetos falam. Uma cadeira mais alta, por exemplo, em geral transmite poder: desde tempos imemoriais valorizamos os tamanhos, como se percebe pelo uso de pronomes como "Vossa Alteza" e expressões como "alta qualidade" ou (em sentido contrário) "baixo calão". Até uma simples xícara de café, na mesa do juiz, pode fazê-lo parecer mais humano e mais próximo das pessoas. Do mesmo modo, a nossa aparência exterior é também uma forma de conversa; ela pode indicar, por exemplo, se somos advogados de sucesso ou fracassados; se somos desleixados ou rigorosos...

Sabemos que toda ciência, é claro, tem as suas expressões técnicas. Para nós, leigos em Medicina, é tão difícil saber o que significa "hipospadia glândica" quanto, para os médicos, será entender que "operou-se a preclusão" ou que "a contumácia foi elidida". No entanto, para além do tecnicismo, nós, bacharéis em Direito, sempre nos encantamos com os enfeites, com os jeitos chiques de falar. Quanto menos coloquial o palavreado, melhor será. Ao invés de "surge", "exsurge"; de "distinto", "conspícuo"; de "reunir", "adunar"; de "apoio", "espeque"; de "pedido inicial", "peça exordial" ou até "proemial". A última moda, segundo me contaram, é "juízo primevo"...3

Esse costume, naturalmente, torna ainda mais hermética a linguagem jurídica - impedindo o acesso aos não iniciados, e reforçando a imagem do advogado-sacerdote, que detém o conhecimento das palavras sagradas, e a do juiz-deus, que as acolhe ou rejeita. O palavreado barroco passa a compor informalmente o próprio rito, permitindo que os atores se reconheçam, se identifiquem e às vezes até se admirem mutuamente.

O hermetismo linguístico é também uma tentativa de valorizar a Justiça, dando-lhe um status superior, como se ela própria - apesar de sua figura feminina - usasse terno e gravata... Nesse sentido, reforça a sua imagem de entidade neutra e imparcial, pairando nas nuvens, acima dos homens, e por isso mesmo - e ainda uma vez - divina.

Mas a linguagem difícil pode ser também um modo de proteger a Justiça contra os ataques dos mortais; pois como compreender (para em seguida criticar) as suas razões de decidir, se não conseguimos decifrar, por vezes, até o que foi decidido? Naturalmente, o efeito pode ser inverso: do ponto de vista do perdedor (e de seus parentes e amigos), é sempre mais difícil aceitar o ininteligível. Nesse caso, a explicação corriqueira é a de que o juiz é venal, a menos que seja imbecil.

Assim, desde os tempos de faculdade, o jovem bacharel se esforça para aprender essa espécie de dialeto, tão ao contrário do linguajar próprio de sua idade e de seus outros ambientes - posto que rígido, padronizado e envelhecido. Esse aprendizado passa pelos livros de doutrina e até pelas salas de aula, onde ganha o reforço das roupas formais de nós, professores.

Mas uma coisa é ser compreendido apenas pelos iniciados, e outra, bem diferente, é não ser entendido sequer por estes. Pode acontecer, de fato, que o advogado simplesmente não saiba escrever de forma clara; não consiga expor o seu raciocínio. Nesse caso, ainda que o juiz acabe entendendo o que ele diz, não será possível que esse trabalho extra o predisponha negativamente?

De igual modo, se o advogado é repetitivo; ou se copia e cola razões intermináveis, cheias de coisas banais. Falhas no Português - erros de concordância, em especial - podem passar a ideia de despreparo jurídico, de descaso com a Justiça, e também causar uma certa irritação no juiz. Nesses momentos, ele pode se lembrar de seu próprio esforço com os estudos, e repreender silenciosamente o advogado que não se preocupou tanto com isso. Até que ponto - eu pergunto - pequenos detalhes como esses, somados a outros tantos, também não influirão na sentença?

Modos agressivos de falar, seja na inicial ou na defesa, podem tanto ajudar a convencer, como - talvez mais usualmente - provocar antipatias. E o risco aumenta quando se trata de razões de

Page 247

recurso, e o advogado se esquece da sentença para atacar o juiz; ou então se serve dela como pretexto para ofendê-lo. Nesses casos, podem entrar em cena a solidariedade de classe, um certo corporativismo, ou quando nada o especial apreço que nós costumamos dar à boa educação, à elegância de modos.

De qualquer modo, o fato é que as petições e os arrazoados contêm elementos informais, como se fossem palavras ocultas ou frases não ditas, que podem afetar, como dizíamos, o convencimento do juiz. Ao peticionar, o advogado não fala apenas do cliente ou da causa, mas de si mesmo. E o que ele diz pode ser bem ou mal interpretado, bem ou mal aceito. No inconsciente do juiz, simpatias ou antipatias se deslocam, às vezes...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT