Segregação socioespacial e luta por moradia na grande Florianópolis: raízes e características da Ocupação Contestado

AutorLuís Felipe Aires Magalhães - Vitor Hugo Tonin
CargoUniversidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, Brasil
Páginas224-255
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MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; TONIN, Vitor Hugo. Segregação socioespacial e luta por moradia...
Este artigo tem como objetivo narrar a ex-
periência de criação e desenvolvimento da Ocu-
pação Contestado a partir de um contexto mais
geral de acúmulo de contradições urbanas na re-
gião da Grande Florianópolis. Pretende-se, com
isto, reetir teoricamente sobre estas contradi-
ções, reveladas sobretudo por um processo de
segregação sócio-espacial na região, avaliando a
sua relação com os processos migratórios recen-
tes, o crescimento demográco nas principais ci-
dades (Florianópolis, São José, Biguaçú e Palho-
ça) e o ressurgimento do movimento de luta por
moradia, particularmente a partir da Ocupação
Contestado. Com base em trabalho de campo,
apresentamos as principais características de sua
demograa social, buscando avaliar em que me-
dida a experiência dos moradores da ocupação
expressam tendências vigentes na mobilidade
espacial e na dinâmica intraurbana da região.
Palavras-chave: Segregação sócio-espacial,
Luta por moradia, Ocupação Contestado,
Florianópolis.
This article aims to narrate the experience
of creation and development of the Contestado
Occupation from a more general context of urban
accumulation of contradictions in the Greater
Florianópolis region. Thus, it is intended to
reect theoretically on these contradictions,
especially revealed by a socio-spatial
segregation process in the region, evaluating its
relationship with the recent migration processes,
population growth in major cities (Florianópolis,
São José, Biguaçú and hut) and the resurgence of
the struggle movement for housing, particularly
the Contestado Occupation. Based on eldwork
research, we present the main features of their
social demographics, seeking to assess to what
extent the experience of occupation of residents
express current trends in spatial mobility and
intra-urban dynamics in the region.
Keywords: Socio-spatial segregation;
Struggle for housing, Contestado Occupation;
Florianópolis.
Introdução
A Região da Grande Florianópolis passou por um intenso crescimento ur-
bano nas últimas décadas, impulsionado por processos de expulsão popula-
cional de pequenos agricultores provenientes de outras regiões catarinenses
e outros Estados (MIOTO, 2008). Internamente, desde o início do século XX
a expansão da ocupação urbana promoveu as primeiras pressões econômicas
e sociais que removeram a população pobre e negra que habitava o centro da
cidade e que passou a xar-se em áreas de encostas do Maciço Central do
Segregação socioespacial e luta por moradia na Grande
Florianópolis: raízes e características da Ocupação Contestado
Socio-spatial segregation and struggle for housing in Florianópolis:
Roots and characteristics of the Contestado Occupation
http://dx.doi.org/10.5007/2178-4582.2015v49n2p224
Luís Felipe Aires Magalhães e Vitor Hugo Tonin
Universidade Estadual de Campinas, Campinas/SP, Brasil
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Revista de Ciências HUMANAS, Florianópolis, v. 49, n. 2, p. 224-255, jul-dez 2015
Morro da Cruz. “Os morros da Mariquinha e do Mocotó foram ocupados por
homens e mulheres de baixa renda, sendo que muitos eram ex-escravos que
trabalhavam em casas de família na área central de Florianópolis ou no merca-
do público da cidade” (DANTAS; VENDRAMINI, 2011, p. 159).
Nas décadas seguintes, as ideologias de higienismo urbano (já presentes
em outros centros urbanos do país), promoveram a identicação e posterior
segregação das classes subalternas. Escravos libertos e descendentes deles,
além de imigrantes pobres, passam a sofrer pressões para sua concentração
nas áreas de encostas, liberando o espaço do centro urbano para um proje-
to elitista de ocupação econômica e social. O poder público sempre esteve
envolvido neste processo de segregação urbana1, seja através do crime elei-
toral que, como veremos, condicionará a criação da Ocupação Contestado,
seja através da orientação dos projetos habitacionais populares para regiões
afastadas do centro urbano, e, ainda, por meio da viabilização da ocupação de
áreas precárias, também afastadas do centro da cidade.
A ocupação dos morros foi facilitada pelas medidas sanitárias
do governo catarinense que desmatou grande parte destas áreas,
justicando que a densidade das matas representaria focos de
doenças infecciosas. Tal permissividade de ocupação dos mor-
ros pelo Estado, que inclusive era proprietário de grande parte
destas terras, intencionava a resolução rápida do deslocamento
das populações mais pobres para áreas mais escondidas da ca-
pital do Estado. Não seria exagero armarmos que as políticas
públicas em Florianópolis incentivaram a formação de favelas,
notadamente a partir da década de 1920 (DANTAS; VENDRA-
MINI, 2011, p. 161-162).
A população residente no município de Florianópolis cresce, portanto, do
balanço destes movimentos externos e internos e do acúmulo destas contra-
dições. Este crescimento é particularmente acelerado na segunda metade do
século XX, conforme pode ser visto no gráco 1.
Esse crescimento promoveu aceleração da segregação urbana na cidade,
na medida em que impulsionou expansão da ocupação das áreas de encostas
do perímetro central (o Maciço Central), e se deu em um contexto de opção
exclusiva do acesso à ilha pela parte central, o que legou às gerações futuras
condições precárias de mobilidade, não obstante os sucessivos aterramentos
para construções viárias. Reforçando esta contradição, a veiculação de Floria-
1 Por segregação sócio-espacial, entendemos o resultado do controle, produção e consumo do
espaço urbano realizados pelas classes dominantes na cidade. Tal controle, produção e consumo são possíveis apenas
com a concentração das classes subalternas em espaços localizados distantes dos centros urbanos que, segundo Villaça
(1978; 2001), perpassam uma esfera econômica, uma esfera política e, por m, uma esfera de produção de ideologia
sobre o espaço urbano.
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MAGALHÃES, Luís Felipe Aires; TONIN, Vitor Hugo. Segregação socioespacial e luta por moradia...
nópolis como “cidade-mercadoria” privilegiou os balneários em detrimento
do centro da cidade. Dada a distância física dos balneários e os núcleos de
povoamento, característicos da cidade, esta opção indicou um terreno fértil
para o modelo de mobilidade privado, através sobretudo de automóveis, e
abriu uma perspectiva de valorização fundiária de extensas áreas localizada
nos entornos dos acessos viários.
Gráco 1 – População residente no município de Florianópolis – SC (1872 – 2010)
Fonte: IBGE, 2010
As condições históricas da luta por moradia
A constituição de Florianópolis como cidade-mercadoria é expressão de
um processo mais geral por que passa o solo urbano nesta e em outras ci-
dades regidas pela urbanização capitalista: a transformação da terra urbana
de espaço da produção de valor para objeto da valorização do capital. Este
processo assume particularidades no âmbito do capitalismo dependente, no
qual Florianópolis naturalmente se insere, e promove importantes ssuras de
classe horizontais (o projeto elitista de cidade2, que segrega a população eco-
nomicamente subalterna) e verticais (a hegemonia da fração especulativa do
capital, que se apoderará do espaço urbano e constrangerá as possibilidades de
desenvolvimento industrial na cidade).
Não é, portanto, um fenômeno recente: no início da década de 1980, re-
vistas de circulação nacional, especialmente a revista Visão, promoviam a di-
2 Categorias êmicas de movimentos sociais e organizações políticas de reforma urbana, como “projeto elitista
de cidade”, serão utilizadas em negrito ao longo deste texto.

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