A secular história do abrigamento de crianças e adolescentes e a interface jurídica

AutorJadir Cirqueira De Souza
Ocupação do AutorMaestría en Derecho Público de la Universidad de Franca - SP , especialista en Procedimiento Civil de la Universidad Federal de Uberlândia - MG y Licenciado en Derecho por la Universidad Gama Filho , Rio de Janeiro
Páginas27-100

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1 A visão menorista da Colônia ao Estado republicano

A história pavimenta a estrada do progresso ou retrocesso da humanidade e, ao mesmo tempo permite que sejam corrigidos itinerários e rumos, bem como impede, ou pelo menos dificulta alguns desvios institucionais no decorrer dos tempos. Por isso, a análise científica dos temas que serão examinados exigem a visão ainda que superficial da respectiva história, sobretudo para que seja devidamente contextualizada no tempo e no espaço.

Torna-se certo, assim, afirmar que os eventuais retrocessos que violam os princípios republicanos, democráticos e humanitários das sociedades ocidentais, dentre outros fatores, de ordem cultural, econômica e social, também são provocados pelo pouco apreço e o desconhecimento das boas práticas que deveriam ser colhidas na história dos povos.

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No contexto, muitas vezes injustificáveis equívocos são cometidos sem que seja percebida a repetição histórica indevida e que poderiam ser evitados com o simples e prévio exame do passado. Assim, conhecer a história das instituições e dos grupos sociais constitui dever científico e diminui a possibilidade de retrocessos, conforme as lições de David S. Landes.1O abalizado conhecimento histórico certifica a existência do progresso ou do retrocesso das sociedades em seus multifacetados aspectos organizacionais, estruturais e sociais, inclusive dos institutos e das práticas mais importantes. Antes de serem incrementadas novas políticas públicas, alterações legislativas, práticas governamentais, sociais, culturais e econômicas, deveriam receber a necessária contextualização histórica, sob pena de, além de perderem-se os avanços obtidos, repetirem-se erros pretéritos.

Além do necessário conhecimento dos principais passos da história, em relação aos institutos ou temas versados, também é importante conhecer as práticas adotadas por outros povos, uma vez que no âmbito ocidental, pelo menos, as regras e os princípios produzidos pelos principais organismos internacionais, sobretudo a Organização das Nações Unidas são de cumprimento interno obrigatório, ou seja, examinar as medidas estrangeiras também servirá para verificar como as respectivas sociedades buscaram a solução dos principais problemas em relação aos direitos sociais, seguindo-se as explicações muito pertinentes de Dalmo de Abreu Dallari.2Trata-se de lição básica dos estudiosos do Direito Comparado3que a utilização de institutos científicos, inclusive jurídicos de outros povos

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ou sociedades, deve ser adaptada, examinando-se os mais importantes valores e regras culturais locais.

A observação é necessária, pois em casos de guerras, catástrofes, situações sociais e econômicas atípicas são legitimadas medidas opostas aos objetivos do presente estudo. Por exemplo, nas guerras, nas ocorrências catastróficas como enchentes e tsunamis, etc, além da necessidade de proteção dos refugiados ambientais, os abrigos são extremamente necessários para a salvação de crianças abandonadas ou que perderam seus pais e demais familiares.

Além do conhecimento da história e do Direito Comparado, torna-se ainda prudente contextualizar o momento institucional específico, pois as soluções, medidas e ações de épocas diversas em países diferentes, nem sempre poderão ser aplicadas e, muitas vezes, sequer adaptadas ao plano local de utilização.

Dentro do contexto do presente estudo, em situação de normali-dade democrática e com o seguro funcionamento das instituições republicanas, pelo menos momentaneamente e sem o iminente perigo de retrocessos governamentais, as ações, medidas e programas governamentais e estatais devem conformar-se aos modernos paradigmas internacionais e constitucionais, sendo elementar o domínio dos fundamentos trazidos pela Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, na linha das ponderadas colocações doutrinárias de João Batista Costa Saraiva,4além das oportunas lições históricas de vários países da Europa, conforme Irene Rizzinni.5Nos estreitos limites e em virtude dos objetivos traçados, descabe trazer à tona todos os fundamentos da história e do direito internacional, porém, tão-somente demonstrar a importância de que as ações da família, da sociedade e do Estado estejam na mesma linha das modernas regras internacionais, completando-se o necessário entendimento

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da história e de sua evolução, a partir do contexto europeu inicial, adotando-se as lições de Maria Luíza Marcílio.6

Já se pode adiantar que ao conhecer a história do abrigamento institucionalizado de crianças e adolescentes, de plano, consegue-se perceber a flagrante e contínua omissão do Estado desde o Império, e, especialmente, verificar como os municípios brasileiros7continuam tratando os direitos mais elementares das crianças e adolescentes pobres e que vivem em patronatos, orfanatos, educandários, quartéis, como se estivéssemos em meados do século XX, sendo entregues à própria sorte, salvo medidas pontuais que procuram a defesa dos novos direitos, como se pode deduzir a partir dos estudos de Irene Rizzinni.8Enfim, a análise científica procurará demonstrar que a construção de novas unidades de acolhimento institucional ou o acesso indiscriminado de crianças e adolescentes aos antigos abrigos traduzem uma das práticas seculares, mais ultrapassadas, condenada pelas instituições internacionais de defesa dos direitos infantojuvenis, vedada pela atual legislação constitucional e estatutária em vigor, porém ainda praticada em milhares de cidades brasileiras, seja pela falta de conhecimento da história, pela ausência de conhecimento das avançadas formas européias de proteção ou pela forma autoritária de tratamento coletivizado imposto às crianças e adolescentes.

Apesar da aparente redundância doutrinária, nunca é demais repetir a história para evitar os seguidos retrocessos vividos pelas crianças e adolescentes vitimizadas pela família, sociedade e Estado, principal-mente num país que vive em eterno desenvolvimento e que flerta cotidianamente com as práticas autoritárias de outrora. A criminalização da

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pobreza, o precário atendimento em vários centros de saúde e a forma inadequada como são protegidos os direitos sociais exigem eterna vigilância histórica, sempre.

Assim, em virtude dos objetivos práticos do presente trabalho, sumariamente, somente serão enumerados os principais acontecimentos das respectivas fases históricas, adotando-se como base ou marco teó-rico o direito constitucional à convivência familiar e comunitária e a busca da efetividade social e jurídica da Lei n. 12.010/09, sendo, obviamente, a história infantojuvenil muito mais rica, interessante e crítica.9É evidente que a história das famílias e das cidades, principalmente no âmbito da vida privada é bastante complexa e multifacetada adotando-se como base as primeiras famílias gregas, romanas e medievais. A evolução das famílias ocorreu dentro das cidades ou dos primeiros grupamentos sociais e, além disso, em nenhum momento se percebe o maior interesse infantojuvenil, exceto a partir do século XVII.10Pode-se, assim, desde logo, afirmar que é recente a preocupação com a defesa dos direitos das crianças e adolescentes, sendo que, somente foram tratados na esfera legislativa e do próprio Direito, a partir de meados do século XVIII, na esteira das declarações norte-americana e francesa de direitos, muito embora como visão e prática totalmente diferente da atual conjuntura nacional.

Na realidade, os pais, as mulheres, os escravos e as propriedades nortearam os principais pontos da história da vida privada, conforme se extrai da magnífica coleção dirigida por Philippe Áries e Georges

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Duby.11Do mesmo modo, também Fustel de Coulanges centra seus esforços históricos em demonstrar que as bases das cidades antigas davam-se na religião doméstica e no casamento, sendo que os filhos não eram importantes.12Ou seja, o exame dos aspectos das antigas cidades e dos fundamentos mais importantes da história da vida privada, embora desvinculados dos objetivos do trabalho, dimensionam a falta de cuidados ofertados às crianças ao longo da história da civilização ocidental, sendo certo que foi a partir do século XVII que se percebeu a importância das crianças nas famílias, muito embora em dimensão completamente diversa da atual e ainda sem a direta intervenção dos principais organismos inter-nacionais, sobretudo, a ONU.

Reitere-se: a partir das lições de Philippe Ariès pode-se afirmar que é recente a visão relativa à proteção das crianças.13A religiosidade do período colonial em relação às crianças indígenas, a Roda dos Expostos para os bebês abandonados e os Juizados de Menores para os infratores, sob o controverso pretexto da proteção, são etapas históricas em que se constata apenas a punição das crianças pobres e abandonadas, muito embora, repita-se, os paradigmas de cada época demonstram que as ações eufemísticas foram pautados na pretensa busca da proteção social, segundo Edson Sêda.14

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Conforme destacamos no livro A efetividade dos direitos da criança e do adolescente, a história dos direitos infantojuvenis, ainda que na época sem a específica abordagem do direito à convivência familiar e comunitária, mas já pontuando os efeitos inadequados da prolongada institucionalização de crianças e adolescentes em abrigos, pode ser examinada em dois planos distintos: na esfera internacional e na esfera nacional.15Mesmo com avanços pontuais, o Estado brasileiro ainda não aprendeu – na linha da prioridade absoluta – a respeitar os direitos fundamentais de crianças e adolescentes em seus aspectos essenciais, sobretudo naquilo que...

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