Entre Justiceiros e Samambaias: Reflexões Constitucionais sobre a Iniciativa Probatória do Juiz no Processo Penal

AutorBernardo de Azevedo e Souza - Daniel Kessler de Oliveira
CargoEspecialista em Ciências Penais e mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS) - Especialista em Ciências Penais e mestrando em Ciências Criminais (PUC/RS)
Páginas40-46

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Introdução

Quando se busca tratar da problemática das provas no processo penal, inúmeras questões podem ser levantadas, tais como o ónus probatório pertencente à acusação, a possibilidade de o Ministério Público e a defesa produzirem provas e, até mesmo, a busca pela "verdade real". No entanto, é no papel do julgador e na postura que este assume perante as provas que se inflamam os debates mais profundos e polêmicos.

A relevância se justifica pelo fato de estar centrada nesta temática o que de melhor forma pode ilustrar um processo penal como autoritário ou democrático. Diante disto, o presente estudo irá se dedicar a analisar o papel do juiz frente ás provas, enfrentando a função jurisdicional e a concebendo para efeitos acadêmicos, numa perspectiva simplificada, sem a pretensão de exaurir o debate sobre o tema.

Com o fito de validar o sistema, é inafastável o dever de respeitar as regras processuais constitucional-mente estabelecidas a partir da compreensão principiológica fundante da própria democracia "plena". Por isto a importância de se efetivar a filtragem constitucional das disposições legais, uma vez que a norma processual, ao lado de sua função de aplicação do direito penal, tem a missão de tutelar os direitos individuais contemplados nas constituições e nos tratados internacionais.

Partindo-se da lógica de que o processo penal de um país o identifica como Estado totalitário ou democrático1, a questão se torna até mesmo mais política do que técnico-pro-cessual, eis que a escolha do sistema processual decorre do próprio modelo de Estado que o instituiu e das relações deste Estado com os seus cidadãos, sendo a relação processual penal uma relação entre Estado e indivíduos (ou, mais especificamente, entre autoridade e liberdade)2.

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O debate do (real) papel do juiz frente às provas num processo penal em conformidade constitucional inflama-se a cada reforma na legislação, onde se pretende aproximar o modelo processual ora vigente ao princípio acusatório. Ocorre que tais reformas acabam cedendo em alguns pontos, haja vista a resistência de alguns segmentos em adotar medidas garantidoras de direitos fundamentais.

Isto veio à tona quando da reforma processual penal de 2008, com o advento das leis 11.689/08, 11.690/08 e 11.719/08, nas quais, dentre inúmeras alterações, se buscou a substituição de um sistema presidencialista para um novo modelo, no qual o juiz deve quedar-se inerte frente à produção de provas, sendo impossibilitado de inquirir di-retamente as testemunhas, ficando a seu cargo tão somente algum esclarecimento sobre ponto relevante.

Sobrevieram daí ferrenhas críticas à reforma, albergando-se no argumento de que, ao conferir ao julgador uma atuação subsidiária, estaria ele tornando-se uma verdadeira "samambaia" na sala de audiências, ou seja, um elemento meramente ilustrativo na realização da solenidade.

Como pretendemos aqui demonstrar, tal entendimento não merece prosperar, até mesmo porque nesta mesma reforma processual não somente se manteve a possibilidade de iniciativa probatória do julgador, como esta ainda restou reforçada, com a autorização de produção de provas ainda que antes do início da ação penal.

Portanto, se, de um lado, a reforma trouxe um juiz inerte, de outro apresentou um julgador ativo, desencadeando assim críticas de todos os lados: seja daqueles que não aceitam o juiz como um mero adorno na sala de audiências, seja daqueles que defendem que a postura ativa do jul-gador vai de encontro aos basilares princípios ordenadores de nosso processo penal.

A presente discussão tornou a ocupar ainda mais espaço no âmbito acadêmico com a sobrevinda do PLS 156/09, que vem no intuito de realizar uma ampla reforma em nosso sistema processual penal. Dentre os ideais traçados pela comissão responsável pela elaboração do projeto está a adequação do processo penal aos ditames constitucionais, buscando a aproximação deste ao sistema eleito pela nossa Constituição: o acusatório.

A própria exposição de motivos do PLS 156/09 já sinalizou nesse sentido, quando, em seu item III, referiu que: "seja do ponto de vista da preservação do distanciamento do julgador, seja da perspectiva da consolidação institucional do parquet, não há razão alguma para permitir qualquer atuação substitutiva do órgão da acusação pelo juiz do proces-so"3.

Assim, o legislador primou pela consagração do sistema acusatório, consubstanciado na separação das partes no processo, estando as ativi-dades de cada uma delas delimitadas pelos preceitos constitucionais.

Sob este prisma, haja vista que no campo do processo penal a discussão gira em torno de bens jurídicos de extrema relevância e é onde o poder punitivo colide com as garantias individuais, imprescindível se faz que a postura do juiz se harmonize aos ideais consagrados pelo texto constitucional.

Isso porque à medida que o Estado encerra a autodefesa e assume o monopólio da justiça frente à violação de um bem juridicamente tutelado, não mais lhe cabe outra ativi-dade que não invocar a tutela juris-dicional. Portanto, o processo como instituição estatal é a única estrutura que se reconhece legítima para a imposição de uma pena4.

Assim, concebendo tal discussão e mensurando os efeitos prático-teóricos que exsurgem desta análise, propõe-se o presente estudo a demonstrar que o papel do julgador frente às provas deve ser lido à luz da Constituição e em pleno respeito às garantias fundamentais, o que não comporta um juiz totalmente inerte, a ponto de ser comparado a uma samambaia, e tampouco um julgador ativo na busca das provas, vindo a adquirir ares de justiceiro.

Do juiz samambaia

Dentre as inovações trazidas pela Lei 11.690/08, merece destaque a que diz respeito ao procedimento de inquirição de testemunhas, previsto no art. 212 do Código de Processo Penal. Anteriormente à reforma, o Brasil adotava o sistema presidencialista, no qual as partes deveriam dirigir as perguntas ao magistrado e este, por sua vez, as direcionava às testemunhas. Todavia, com a nova redação do art. 212, o nosso sistema esposou o modelo estadunidense do cross examination.

O caput do novel dispositivo dispõe que as partes poderão formular perguntas diretamente às testemunhas, sem necessitar da figura do juiz para tal ato, colocando-o, portanto, distante da produção da prova. Caberia ao magistrado apenas admitir ou não os questionamentos que possam induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem a repetição de outra pergunta já respondida, e complementar pontos não esclarecidos pelas partes, ou seja, pontos já colocados, sobre os quais já houve atividade probatória, mas restaram duvidosos5.

Nesse sentido, anota Greco Filho6 que

"Postas as questões relevantes, o juiz pode ultrapassar a iniciativa das partes determinando prova não requerida, mas não pode tornar-se acusador ou defensor, sob pena de violar o chamado sistema acusatório do processo penal, que é

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garantia do julgamento justo e a própria essência da jurisdição, que consiste no julgamento por órgão não interessado e não envolvido na atividade de acusação ou de defesa."

Sem embargo da inovadora contribuição ora verificada, o art. 212 vem sendo alvo de severas críticas. Isso porque a doutrina e a jurisprudência têm interpretado a redação do aludido dispositivo dubiamente, ora entendendo que o juiz deveria inquirir as testemunhas já no início da audiência, participando ativamente na colheita da prova, ora afirmando que ele teria somente um papel supletivo ao final da solenidade, complementando pontos não esclarecidos pelas partes.

Sobre esta controvérsia, Busato7 analisa o acórdão lavrado no Agravo Regimental crime 413.084-9/01, que recebera destaque no sítio eletrônico da Associação dos Magistrados do Paraná ao ser definido como paradigma de interpretação do art. 212 do Código de Processo Penal.

No referido acórdão, julgado pelo órgão especial do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, cujo relator fora o desembargador Leonardo Lustosa, sustentou-se que o juiz deve prevalecer no comando das provas, ficando a seu cargo a realização das perguntas às testemunhas. Às partes incumbiria tão somente realizar eventuais questionamentos.

Este voto socorreu-se do que o relator cunhou de uma "lição precisa" lançada por Guilherme de Souza Nucci, na qual foi referido que "só restaria ao juiz assistir à audiência, indeferindo uma pergunta aqui e outra acolá, podendo, ao final, apenas complementar a inquirição, concluindo, então, que os defensores dessa tese querem transformar os juízes em samambaias de sala de audiências".

No sentir do autor mencionado, estaria o magistrado transfigurando-se num elemento meramente decora-tivo, quase que um vegetal, cabendo-lhe apenas presenciar a audiência, indeferindo as perguntas realizadas (quando necessário) e, ao final, complementar a inquirição.

Com a devida deferência, ousamos discordar de Nucci, bem como do voto do aludido desembargador. Isso porque o fato de estar o juiz afastado da produção probatória não significa, necessariamente, que assume a condição de uma samambaia, muito pelo contrário, como leciona Busato8:

"(...) é justamente este afastamento, esta isenção, que permite o...

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