Rumo à democratização do poder judiciário

AutorHugo Cavalcanti Melo Filho
Páginas150-210

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9.1. Eleição direta para os dirigentes dos tribunais e membros dos órgãos de controle

Em face da propositura da alteração regimental no TRT do Espírito Santo, a Associação dos Magistrados do Trabalho da 15ª Região (Campinas) divulgou Nota Pública de Elogio, na qual se encontram outros fundamentos para a pretendida ampliação do colégio eleitoral:

[...]

  1. A Magistratura nacional e os tribunais que a abrigam são instituições permanentes a que a vontade popular originária acometeu a missão constitucional de preservar e desenvolver o Estado Democrático de Direito, não apenas para fazer valer a vontade concreta das maiorias, como também — e sobretudo — para fazer valer os princípios constitucionais estruturantes que animam a democracia republicana, ainda quando couber fazê-lo de modo contramajoritário. Causa espécie, porém, que os administradores dos tribunais judiciais, e notadamente os seus presidentes e vice-presidentes, ainda não se possam eleger em condições de plenitude democrática. Em todos os casos, à vista do que dispõe o art. 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Lei Complementar n. 35/1979) — que remonta a tempos em que a democracia era ainda um longínqua aspiração popular —, os colégios eleitorais são compostos unicamente pelos próprios membros dos tribunais, desembargadores ou juízes de segundo grau. Os juízes de primeiro grau, conquanto sejam também dirigidos pelos desembargadores eleitos para os cargos de direção, foram historicamente alijados do sistema eleitoral judiciário. Não há, neste particular, culpas a distribuir ou expiar neste momento; há, porém, um estado de coisas que já não concerne à atual ordem jurídico-constitucional democrática, e que deve ser superado.

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    [...]

  2. À mercê da autonomia administrativa dos tribunais — aos quais compete “eleger seus órgãos diretivos e elaborar os seus regimentos internos” (art. 96, I, a, da CRFB) —, temos por factível e salutar a iniciativa de que, a par da necessária alteração do sistema legal em vigor, os próprios tribunais revejam seus regimen-tos, desde logo conferindo máxima concretude aos princípios constitucionais da gestão democrática, da impessoalidade e da participação, ampliando os respectivos colégios eleitorais para alcançar também os juízes de primeiro grau, que igualmente integram e exercem a parcela de soberania que os modernos designaram como Poder Judiciário. De outro modo, haverá sempre um inexplicável lapso entre a sua estrutura de governo e a sua magna missão institucional: preservar, reproduzir e aprofundar o regime democrático-republicano.187A nota resume o sentimento da magistratura brasileira e oferece balizas adequadas, quanto ao entendimento desta acerca da necessidade de realização de democratização interna dos Tribunais e das instâncias de governo da magistratura, do que se cuidará a seguir.

9.1.1. Explicação da desigualdade entre os juízes, na perspectiva da Teoria da Ação

O problema da desigualdade na relação entre os magistrados vinculados a um mesmo tribunal pode ser examinado na perspectiva da teoria da ação.

Segundo Bourdieu (2010:50), todas as sociedades se apresentam como espaços sociais, que nada mais são do que estruturas de diferenças, as quais somente podem ser compreendidas pela construção do princípio gerador dessas mesmas diferenças, “princípio que é o da estrutura da distribuição das formas de poder ou dos tipos de capital eficientes no universo social considerado — e que varia, portanto, de acordo com os lugares e os momentos”.

Bourdieu também descreve o espaço social global,

ao mesmo tempo, como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a transformação de sua estrutura (ibidem: m.p.).

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Ao espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital — ou dos agentes detentores dos diferentes tipos de capital — Bourdieu (2010:52) denomina campo do poder, advertindo que este não se confunde com o campo político.

Para os fins deste trabalho, o sistema judiciário, apenas no que concerne à esfera da administração dos tribunais e do governo da magistratura, será considerado como um subespaço social e subcampo de poder.

David Hume (1996:17) sustenta que a manutenção do governo — e do poder — depende da opinião dos governados. Opinião que se manifesta em três vertentes: interesse público, direito ao poder e direito à propriedade. Na primeira, há que ficar claro que os benefícios que derivam do governo são vantajosos para todos. Já a segunda, revela-se na predisposição dos governados em dedicar-se aos governantes. Por fim, a terceira, nada mais é do que a expectativa de reconhecimento do governo do direito dos governados à propriedade.

Considerando o caso do governo da magistratura, em que, como visto, as vantagens não são igualmente distribuídas e não há o reconhecimento da maioria quanto ao direito de exercício de todo o poder pelas cúpulas dos tribunais, como se pode sustentar o arranjo institucional hoje existente? Como aceitar a não participação dos governados na escolha dos governantes e, mais ainda, as diferenças que se colocam entre os que governam e os que são governados?

A teoria da ação explica que

a ideia de diferença, de separação, está no fundamento da própria noção de espaço, conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem, como acima, abaixo e entre [...]. O espaço social é constituído de tal modo que os agentes ou os grupos são aí distribuídos em função de sua posição nas distribuições estatísticas de acordo com os dois princípios de diferenciação [...] — o capital econômico e o capital cultural.188

(BOURDIEU, 2010:18-19)

Como ensina Bourdieu (2010:52),

o campo do poder [...] não é um campo como os outros: ele é o espaço de relações de força entre os diferentes tipos de capital ou, mais

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precisamente, entre os agentes suficientemente providos de um dos diferentes tipos de capital para poderem dominar o campo correspondente [...]. Um dos alvos das lutas que opõem o conjunto dos agentes ou das instituições que têm em comum o fato de possuírem uma quantidade de capital específico (...) suficiente para ocupar posições dominantes no interior de seus campos respectivos, é a conservação ou a transformação da ‘taxa de câmbio’ entre os diferentes tipos de capital e, do mesmo modo, o poder sobre as instâncias burocráticas que podem alterá-la por meio de medidas administrativas.

Entretanto, os princípios de diferenciação mencionados — os tipos de capital —, para determinados grupos sociais podem não ser suficientes. “[...] é preciso, portanto, examinar quais são os princípios de diferenciação característicos dessa sociedade [...]” (BOURDIEU, 2010:30). No subcampo de poder em que se situam os juízes não se encontrará entre os seus agentes (magistrados) diferenças significativas quanto ao capital cultural e ao capital econômico.

“Assim, é preciso levantar a hipótese de que existe um outro princípio de diferenciação, um outro tipo de capital, cuja distribuição desigual está na base das diferenças constatadas [...], que poderíamos chamar de capital político” (BOURDIEU, 2010:31), e que distinguiria os seus detentores dos demais. E quando o capital político — que não é passível de controle como as outras formas de acumulação — é o princípio de diferenciação principal, os seus detentores “não têm outros adversários na luta pelo princípio de dominação dominante que acontece no campo do poder” (BOURDIEU, 2010:31).

Este é o capital simbólico189 que distingue as classes no subcampo de poder ‘sistema judiciário’. Ele é percebido por todos os agentes, que o reconhecem e atribuem-lhe valor. Mas é concentrado apenas pelos membros dos tribunais aos quais se vinculam todos os magistrados. Disso decorre a existência de uma separação, determinada por relação de ordem do tipo superior/ inferior. Na relação de força entre os que detêm capital político e os que não o têm operada no campo do poder, cria-se, necessariamente, uma diferença. Daí a constatação de que no grupo social em questão, há uma divisão em classes, no sentido bourdieuano do termo190.

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9.1.2. Panoramas delineados

Considerem-se os juízes vinculados a determinado tribunal agentes de um campo de poder. Tomem-se, ainda, os dirigentes dos...

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