O risco da crise do poder legislativo para o estado democrático de direito: a necessária reconstrução da esfera pública, o resgate do político e a reformulação da democracia

AutorNicole Pilagallo da Silva Mader Gonçalves
CargoGraduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná em 2006. Mestranda em Direito do Estado pela UFPR e Bolsista da CAPES.
Páginas2-33

Page 2

“O que mais preocupa não é o grito dos violentos, nem dos corruptos, nem dos desonestos, nem dos sem ética. O que mais preocupa é o silêncio dos bons.”

(Martin Luther King)

Introdução

A relação entre os Poderes da República é geralmente repleta de tensões, algumas necessárias e outras indesejáveis. Para um funcionamento adequado da estrutura estatal, a Constituição Federal admitiu que em situações esporádicas os Poderes exercessem atribuições atípicas, isto é, que não fazem parte da sua função nuclear. Assim, os Poderes do Estado exercem duas espécies de funções atípicas: (i) funções necessárias para manutenção da estrutura administrativa da instituição e (ii) funções atribuídas pela Constituição para a garantia do desempenho adequado das funções Estatais2.

Dentre esse segundo grupo de funções atípicas, que devem ser exercidas excepcionalmente, pode-se citar, a título de exemplo, a atividade legislativa do Poder Executivo, em especial as medidas provisórias (art. 62 da CF/88), a função investigativa e jurisdicional do Poder Legislativo, que se vislumbra nas Comissões de Inquérito Parlamentar – CPIs (art. 58, § 3º da CF/88) e a atividade legislativa do Poder Judiciário, que ocorreria em hipóteses restritas através do Mandado de Injunção (art. 5º, inc. LXXI da CF/88).

Conforme determina o princípio da separação de poderes, tais atividades devem ser desempenhadas em caráter extraordinário, contudo, isto não é, definitivamente, o que ocorreu e ocorre com a função legislativa do Poder Executivo e com a função investigativa e jurisdicional do Poder Legislativo. Nos últimos anos, é frequente a utilização de medidas provisórias e a instauração de CPIs., de modo que se pode dizer que o Poder Executivo legisla tanto quanto executa e que o Poder Legislativo mais investiga do legisla. Essa inversão de papéis tornou-se usual e já não causa o espanto e preocupação que deveria causar.

Page 3

No entanto, nos últimos dois anos, observou-se que, assim como o Poder Executivo tem assumido as tarefas do Poder Legislativo, também o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, tem sido chamado a responder questões que deveriam ser colocadas em debate e decidias no âmbito do Poder Legislativo. Esse alargamento da esfera de atuação do Supremo Tribunal Federal é comumente chamado de judicialização da política, a qual, conforme indica Luís Roberto Barroso, nada mais é do que um ativismo judicial que se apresenta em três situações: “(i) a mudança de jurisprudência em temas relevantes; (ii) a utilização de institutos que ampliam o poder do Tribunal e (iii) o aumento da visibilidade política de suas decisões.”3

Essa mudança de postura do Supremo Tribunal Federal pode ser conferida em alguns julgados. Apenas como exemplo, lembra-se da decisão proferida em outubro de 2007 em que o STF estabeleceu a regra de fidelidade partidária e atuou efetivamente como promotor de uma das etapas da Reforma Política diante da inércia do Poder Legislativo, o qual não vinha atendendo à expectativa da opinião pública. Nessa linha, pode-se citar ainda em 2007 a mudança da orientação jurisprudencial sobre o Mandado de Injunção no julgamento do MI n.º 712, quando o STF determinou que na ausência de lei, isto é, na omissão do Poder Legislativo, fosse aplicada ao setor público a lei que regulamenta a greve no setor privado. Já mais recentemente, não se pode esquecer do julgamento da ADI n.º 3501, na qual o STF decidiu sobre a constitucionalidade das pesquisas com células tronco em virtude da ausência de uma regulamentação adequada para essas pesquisas. Destaque-se apenas que desde de 2003, está no Congresso Nacional o Projeto de Lei nº. 2473 que dispõe sobre as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, mas que, no entanto, permanece paralisado4.

Diante dessa complexa movimentação, podem ser levantadas inúmeras questões que envolvem a legitimidade democrática do STF para decidir questões políticas e a legitimidade do Poder Executivo para legislar. Porém, nesse trabalho, optase por abordar a problemática por outro prisma: interessa investigar aqui a crise do Poder Legislativo, a qual conduz não apenas ao aumento da atividade legislativa do Poder Executivo, mas também a expansão das atividades do Poder Judiciário sobre uma esfera de decisões públicas que deveriam ser tomadas por representantes do povo eleitos democraticamente, e não no âmbito de um Poder contramajoritário como é o Judiciário.

Portanto, o objetivo a que se propõe o presente artigo não é tratar de legitimidade democrática, de ativismo judicial ou medidas provisórias, quer-se apenasPage 4encontrar fundamentos que expliquem, ao menos em parte – dada a complexidade da questão não se pretende encontrar respostas totais e definitivas – quais as razões da crise do Poder Legislativo. Ou seja, não se quer justificar a crise do Poder Legislativo com argumentos como a corrupção, tampouco se quer aceitar a ideia de que na omissão do Poder Legislativo é natural que o Judiciário, assim como o Executivo, assumam a função legislativa. O lugar do discurso, do embate, do diálogo e da decisão política é no Poder Legislativo, essa é a sua função primordial. Todos os Poderes da República devem trabalhar no sentido de garantir condições plenas para o exercício da democracia e devem atuar democraticamente5. Mas, no âmbito do Estado, é no Poder Legislativo que a democracia se consolida.

Portanto, esse trabalho busca compreender o esvaziamento do Poder Legislativo, esfera pública de deliberação democrática por excelência, (i) a partir da compreensão da crise da esfera pública contemporânea, (ii) investigando como o elemento político pode ser resgatado nas sociedades plurais, de modo que a decisão política, momento fundamental de estabilização da democracia, seja realizada de forma legítima, isto é na esfera pública adequada e (iii) destacando a necessidade de uma concepção de democracia que aceite as diferenças e possibilite o antagonismo.

Nesse sentido, quer-se destacar que na esfera estatal a ausência de uma democracia que resgate o político tem como consequência a transferência das decisões políticas fundamentais da sociedade para outras esferas de Poder que não possuem legitimidade democrática para tanto, como vem ocorrendo no Brasil há algum tempo no Poder Executivo e mais recentemente também no Poder Judiciário. Somente o regaste do político é que conduzirá a uma democracia capaz de suprir os anseios de uma sociedade plural e que seja um instrumento apto à proteção do Estado Democrático de Direito perante os perigos de um “estado de exceção”.

1 O esvaziamento da esfera pública na sociedade contemporânea

Democracia pressupõe abertura, troca, diálogo, debate público. Democracia não se realiza sem participação. Democracia lembra Estado, Poder Legislativo e Executivo, mas deve lembrar também escolas, reuniões de condomínio, clubes recreativos, empresas, associações de classe, associações de bairro, famílias – todos os lugares onde o interesse coletivo deve ser alcançado por uma decisão comum através do diálogo amplo e aberto. Contudo, atualmente, a ausência de engajamento e participação na vida pública conduz à crise da democracia. Esta abstenção nas decisões públicas não é um fato próprio da sociedade contemporânea, na realidade, o esvaziamento da esfera pública e a diluição do elemento político – elementos essenciais da teoria democrática – surgem com início da era moderna.

Page 5

Hannah Arendt, apesar de não ter desenvolvido uma teoria da democracia, identifica com perspicácia a origem de sua crise na modernidade, apontando como principal razão o declínio da esfera pública em detrimento da ascensão da esfera privada, situação que se justifica em virtude da supressão do político como ação compartilhada entre homens. A partir dessa crítica à sociedade moderna, Arendt ressalta a importância da esfera pública como ambiente próprio da vida política, e não como o local da reunião de interesses privados.

Em sua obra A Condição Humana, Arendt tem como objeto compreender a natureza da sociedade moderna através (i) da análise das capacidades humanas gerais constitutivas da própria condição humana6, ou seja, daquelas capacidades que não se alteram a menos que seja a alterada a própria condição humana; e (ii) da pesquisa acerca das origens da alienação do mundo moderno7. Seu ponto de partida é a compreensão da expressão vita activa, a qual corresponde a três atividades humanas fundamentais: labor, trabalho e ação8.

Neste trabalho nos interessa apenas a ação, pois, embora toda atividade humana esteja condicionada ao fato de que os homens vivem juntos, a ação é a única atividade humana que não pode sequer ser imaginada por um homem isolado, é uma característica exclusivamente humana que depende da presença constante de uma pluralidade de homens. Nesse sentido, a ação como pluralidade é a condição sem a qual não haveria vida política9.

Para explicar a importância da ação, Arendt retoma a tradição do pensamento grego, no qual a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT