O Rio de Janeiro, no feminino:Berta, Lota e outras cariocas entre a Belle Époque e os anos 60

AutorMary Del Priore
CargoProfessora do Programa de Mestrado em História da Universidade Salgado de Oliveira, UNIVERSO/NITERÓI
Páginas1-10

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Periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Direito Centro de Ciências Jurídicas - Universidade Federal da Paraíba

Nº 02 - 2º Semestre de 2014 ISSN | 2179-7131 | http: http://periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/ged/index

Seção 01: Contextualizando Gênero O Rio de Janeiro, no feminino: Berta, Lota e outras cariocas entre a Belle Époque e os anos 60.

Mary Lucy Murray del Priori

Rio de Janeiro, início do século XX. Os anos posteriores à proclamação da República foram marcados por um turbilhão de mudanças. A europeização, antes restrita ao ambiente doméstico, transformou-se em objetivo – melhor seria dizer “obsessão” – de políticas públicas. Tal qual na maior parte do mundo ocidental, cidades brasileiras passaram por um processo de mudança radical, em nome do controle e da aplicação de métodos científicos; crença que também se relacionava com a certeza de que a humanidade teria entrado em uma nova etapa de desenvolvimento material marcada pelo progresso ilimitado. Por apresentar uma visão otimista do presente e do futuro, o final do século XIX e início do XX foram caracterizados – seguindo a moda européia – como sendo uma belle époque. Havia, contudo, uma face sombria nesse período. O início da República conviveu com crises econômicas, marcadas por inflação, desemprego e superprodução de café. Tal situação, aliada à concentração de

terras e à ausência de um sistema escolar abrangente, fez que a maioria dos escravos recém-libertos passasse a viver em estado de quase completo abandono, sem direito a voz na sociedade brasileira. A capital ganhou maquilagem transformando-se numa “Paris à beira-mar”, graças a Pereira Passos. O país perdeu Machado de Assis e Euclides da Cunha. As revoltas da Vacina e da Chibata agitaram as ruas.

Esse foi o tempo do “Brasil do fraque e do espartilho”. O brasileiro cuspia menos nas ruas. Nas salas, a escarradeira de louça era obrigatória e partos e velórios eram feitos em casa, como bem resumiu Nelson Rodrigues. Além da cidade, suas moradoras, as cariocas, também viveram diversas transformações. Mudanças em sua vida privada, mudanças afeitas à vida cultural e política da cidade:

Viveram também, a invenção do batom, em 1925. O aprofundamento dos decotes as levou a aderir à depilação. “Manter a linha” tornou-se um culto. A

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magreza ativa foi a resposta do século à gordura passiva da Belle Époque. Ela cortou os “cabelos à la garçonne”, gesto sacrílego contra bastas cabeleiras do século anterior. Com o desaparecimento da luva, essa capa sensual que funcionava ao mesmo tempo como freio e estímulo do desejo, surgiu o esmalte de unhas. Mãos e pés atraiam olhares e atenções masculinas. Grandes romances lidos durante o século XIX como “A pata da gazela” ou “A mão e a luva”, revelavam, em metáforas, o caráter erótico dessas partes do corpo, na moda ainda no início do século1. Pois rapazes esperavam no final da linha do bonde, no Largo do Machado, para ver as moças descerem e roubar, numa rápida mirada, um pedaço de tornozelo entre a botinha e a saia.

A música também assinalou transformações nos comportamentos femininos, registrando o estarrecimento masculino diante de mudanças que rompiam com valores tradicionais. O papel “superior” do macho estava sendo questionado. Eis porque multiplicavamse as composições sobre a mulher que

1- Ver sobre o assunto Luís Felipe Ribeiro, em seu belo Mulheres de papel, Um estudo do

Imaginário em José de Alencar e Machado de

Assis, Rio de Janeiro, EDUFF, 1996, p.118.

renunciava ao lar, para emancipar-se: “Good-bye, meu bem” gravada por Raquel de Freitas ou “Dona Balbina”, por Carmem Miranda são bons exemplos. E os homens não ficaram de braços cruzados. A crítica feroz à liberação feminina, usando como alvo os cortes de cabelo, a redução do tamanho dos vestidos e do uso da maquiagem veio na forma de composições como as que fez Francisco Alves com “Tua saia é curta” ou “Futurista”. Em “Se a moda pega” ou “Cangote raspado” a queixa é contra moças que expunham a nuca aos rapazes, graças ao corte “à la garçonne”. Recusa ao namoro ou ao casamento? Frieza e maldade da nova mulher que emergia entre os anos 30 e
40. O resultado de tanta “leviandade”, segundo os compositores, era o abandono e a solidão.

No decorrer do século XX, a carioca se despiu. O nu nas revistas e nas praias, incentivou o corpo a se desvelar em público, banalizando-se sexualmente. Uma estética esportiva votada ao culto do corpo, fonte inesgotável de ansiedade e frustração, levou a melhor sobre a sensualidade imaginária e simbólica de nossos avós.

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Tanto o Carnaval quanto as festas religiosas convidavam a excessos onde a sexualidade feminina não se escondia mais. Por exemplo, a festa de Nossa Senhora da Penha, no Rio de Janeiro, segundo o capelão da Irmandade: “transformava-se todos os anos em bacanal vergonhoso aviltado por crimes hediondos e desordens abomináveis”. Era nas faldas do morro escarpado, sobre o qual repousa o templo, que as pessoas iam “não levadas pela fé – queixa-se o padre – mas para dar livre e impudica expansão ao libertinismo repugnante”. Sexo e fé não rimavam. A imprensa criticava o que se considerava “verdadeira bacanal da Grécia ou Roma Antiga”.

O Carnaval também colocava em cena a sexualidade posta de...

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