A proibição do retrocesso no direito ambiental: avanço para onde?

AutorJulia Macedo de Lamare
Páginas137-186
A proibição do retrocesso no direito ambiental: avanço para onde?
JULIA MACEDO DE LAMARE
INTRODUÇÃO
No Brasil, a chamada “proibição de retrocesso social” não está expressamente
positivada no sistema jurídico constitucional. Sua existência e aplicação são
antes de tudo construções da doutrina e da jurisprudência e não obra direta do
constituinte1. Essa empreitada interpretativa dos operadores do direito se justi-
caria pelo objetivo a que se propõe: garantir a máxima efetividade dos direitos
fundamentais e da Constituição.
De fato, a vedação do retrocesso encerra a ideia de que, ao avançar na
concretização de direitos fundamentais, o legislador se vincula ao que foi garan-
tido, de sorte que não lhe é permitido, a partir daí, recuar na tutela já oferecida,
concedendo aos indivíduos menos proteção do que já desfrutam. Com efeito,
sua  nalidade é evitar a supressão de patamares de promoção de direitos funda-
mentais já positivados e, portanto, conquistados pelos indivíduos.
Cabe, aqui, uma observação. A maioria da doutrina analisada neste traba-
lho entende que a ideia de vedação de retrocesso está intimamente ligada aos di-
reitos fundamentais sociais2. É o que se verá em tópico especí co sobre o tema.
No entanto, acredita-se que o argumento de não retroceder possa ser aplicado
a qualquer categoria de direitos fundamentais, independente da geração de que
se trate (primeira, segunda, terceira ou quarta)3. Isso porque não existe qualquer
1 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades
da Constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar 2001, p. 158.
2 Cf, e.g., SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 2001; BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limi-
tes e possibilidades da Constituição brasileira. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar 2001; DERBLI, Felipe. O
princípio da proibição de retrocesso social na Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Renovar, 2007; MEN-
DONÇA, José Vicente dos Santos. Vedação do retrocesso: o que é e como perder o medo. In: BINENBOJM,
Gustavo (coord.). Direitos Fundamentais — Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo
Estado do Rio de Janeiro, vol. XII. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2003, pp. 205-236.
3 Tradicionalmente, a teoria dos direitos fundamentais reconhece a existência de três categorias denomina-
das de gerações ou dimensões de direitos fundamentais. A primeira geração cuida dos direitos civis e polí-
ticos, cuja concretização não depende de uma ação positiva do Estado (e.g. vida, liberdade, propriedade,
igualdade e voto). Os direitos de segunda geração, por sua vez, são os chamados direitos econômicos,
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peculiaridade dos direitos de segunda geração que justi que uma aplicação da
vedação de retrocesso restrita a essa categoria4.
Em verdade, é a própria fundamentalidade material do direito que atrai,
por parte do Estado, a obrigação de não retroceder em determinado patamar
de proteção jurídica. A rigor, a vedação de retrocesso integra regime jurídico
próprio dos direitos fundamentais (a despeito da geração ou dimensão a que se
cuide). Nesse sentido, estão, sob o abrigo da vedação de retrocesso, diferentes
direitos como o direito ao voto5, o direito à propriedade, o direito ao meio
ambiente (tema desse estudo), o direito ao desenvolvimento, o direito à demo-
cracia ou qualquer outro direito entendido como fundamental.
Não por outro motivo encontra-se com bastante frequência o entendimen-
to de que a vedação do retrocesso aplica-se ao direito ambiental, incorporado
ao núcleo de proteção humana pelos direitos fundamentais de terceira geração.
Vale mencionar, inclusive, que de maneira geral, o que se observa é uma leitura
reforçada — para não dizer extremada — do aludido instituto pela doutrina do
direito ao meio ambiente.
Ocorre que, assim como qualquer norma-princípio, a não-regressão das
normas ambientais está sujeita a ponderações, sendo de todo incompatível com
a própria noção dogmática de princípio o caráter absoluto que lhe é atribuído
com frequência pelos juristas e pelos tribunais.
A ideia de vedação do retrocesso possui dois principais problemas. O pri-
meiro — que não é exclusivo ao direito ambiental, mas comum a todos os direi-
tos fundamentais — consiste no fato de que o legislador acaba excessivamente
limitado na sua liberdade de conformação legislativa. Além disso, com o passar
do tempo, essa di culdade dá origem a uma tensão intergeracional, na medida
em que os representantes do povo de hoje são impedidos de atuar em razão de
sociais e culturais e exigem uma atuação positiva do Estado para que sua efetivação seja realmente garan-
tida (e.g. saúde, educação e trabalho). Por  m, os direitos de terceira geração, denominados também de
direitos de solidariedade e fraternidade, caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva ou difusa
(e.g. meio ambiente, autodeterminação dos povos, paz e o desenvolvimento). Há ainda quem enxergue
uma quarta dimensão de direitos fundamentais, que seria resultante da globalização desses direitos (e.g.
democracia, informação e pluralismo). Cf, nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. A e cácia dos direitos
fundamentais. 8. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 56, e BONAVIDES, Paulo.
Curso de direito constitucional. 7. ed., São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 524-526.
4 Poder-se-ia justi car essa aplicação restrita aos direitos sociais com base em sua natureza tradicionalmen-
te prestacional. Vale lembrar, no entanto, que nem todos os direitos sociais são prestacionais, assim como
nem todos os direitos individuais são negativos. Basta pensar nos exemplos do direito de propriedade, o
qual, apesar de individual, requer uma atuação positiva do Estado para garantia de segurança pública, e
do direito de greve, que, apesar de social, é negativo.
5 Por mais que haja, nesse caso, um argumento mais forte relacionado à cláusula pétrea, não se pode negar
que tirar, eliminar qualquer das características do voto, que é direito, secreto, universal e periódico, é
retroceder em direito individual que já atingiu importante patamar de proteção jurídica.
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decisões tomadas décadas atrás. Na seara do meio ambiente, o con ito com o
princípio democrático parece ser ainda mais intenso, visto que o direito am-
biental já representa, por si só, uma limitação à atuação do legislador. A vedação
do retrocesso ambiental seria, assim, uma limitação adicional.
O segundo grande problema, que constitui o principal enfoque deste tra-
balho, é especí co da esfera ambiental: aplicar indiscriminadamente a garantia
da proibição do retrocesso ao direito ambiental equivale a ignorar completa-
mente a proteção a outros bens jurídicos relevantes de igual estatura constitu-
cional. Nesse contexto, quanto mais proteção se dá ao direito ambiental, mais
se pode restringe, por exemplo, a livre iniciativa, protegida na Constituição
Federal de 1988 como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito
brasileiro (art. 1o, IV) e considerada também um dos fundamentos da ordem
econômica e  nanceira (art. 170, caput); o direito de propriedade, integrante do
rol de direitos fundamentais do art. 5o da Constituição; e o desenvolvimento do
país, que vem a ser um dos objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil (art. 3o, II). Portanto, não se pode simplesmente maximizar a proteção do
meio ambiente sem considerar suas implicações sobre outros interesses consti-
tucionais relevantes, sob pena de uma concretização apenas parcial da vontade
do legislador constituinte. Além disso, os direitos fundamentais em constante
con ito com o direito ambiental estão também abarcados pela obrigação de
não retroceder.
Surgem, então, algumas perguntas: falar em “retrocesso” é falar em qual
retrocesso? Quais são os indicadores capazes de medir o que é retrocesso? Como
identi cá-lo? Como deve se dar sua operacionalização? Fala-se em retrocesso
para onde?
O presente trabalho tem por  nalidade demonstrar que a doutrina e a
jurisprudência existentes acerca do tema não são capazes de responder a esses
questionamentos. Objetiva-se, portanto, trazer conceitos da análise econômica
do direito e propor uma análise de custo-benefício para que a operacionalização
da vedação do retrocesso, se não supere os problemas apontados, pelo menos os
minimize signi cativamente. Os instrumentos propostos serão testados em um
caso recente, ainda pendente de decisão perante o Supremo Tribunal Federal.
Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-
-Geral da República para questionar diversos dispositivos da Lei no 12.651/12,
responsável por instituir o novo Código Florestal. A alegação que servirá de
teste para a proposição feita neste estudo é aquela que defende que a redução
do tamanho das Áreas de Preservação Permanente no entorno de reservatórios
arti ciais d’água viola o “princípio da vedação do retrocesso ambiental”.

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