Responsabilidade social empresarial e combate ao trabalho infantil

AutorJoel Orlando Bevilaqua Marin - Eriberto Francisco Bevilaqua Marin
CargoDoutor em Sociologia; Professor da Universidade Federal de Goiás - Doutor em Direito Constitucional; Professor da Universidade Federal de Goiás.
Páginas114-142

Page 114

1. Introdução

Atualmente, os direitos individuais e sociais das crianças e adolescentes são reconhecidos internacionalmente, em decorrência da atuação de or-ganismos internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e a Organização das Nações Unidas (ONU). Desde o pós-guerra, esses organismos procuram internacionalizar os direitos da criança, empenhando grandes esforços na promoção de debates e de positivação das convenções e tratados nos ordenamentos jurídico-constitucionais dos mais diversos países. Em seus postulados, defendem que as crianças e os adolescentes são pessoas em condições especiais de desenvolvimento, como sujeitos de direitos próprios, com necessidades de proteção específicas e com direitos de formação e capacitação adequada, antes de ingressarem no mercado de trabalho.

Sob os princípios da responsabilidade social, as empresas estão obrigadas a respeitarem a legislação trabalhista e de não utilizarem mão-deobra escrava e infantil. Por imposição internacional e nacional, diversas empresas assumiram responsabilidade social pela erradicação do trabalho infantil e pelo desenvolvimento socioeconômico, envolvendo-se como agentes colaboradores do Estado da sociedade na formulação e execuçãoPage 115de políticas privadas e públicas. As empresas devem ter conhecimento dos problemas sociais e responsabilidade de encontrar meios e formas de resolvê-los ou de auxiliar o poder público e a sociedade na sua resolução. Assim, as políticas de combate e erradicação do trabalho infantil entraram nas pautas de discussão e nas estratégias de diversas empresas.

O problema do trabalho infantil, com fundamento na responsabilidade social, solidária e transgeracional, não deve ser só da criança, do adolescente ou de sua família, mas também dos órgãos públicos instituidores de políticas públicas de educação, de fiscalização e judiciárias, bem como das empresas, organizações não-governamentais e da sociedade. Para se adequar a essa nova situação, algumas empresas instaladas no Brasil participaram de debates e adotaram ações de responsabilidade social, em benefício da infância. Desta forma, procuram engajar-se em programas de responsabilidade social para melhorar seus negócios e construir uma imagem positiva na sociedade nacional e internacional, na medida em que se vinculam aos propósitos do desenvolvimento integral das crianças e adolescentes e da luta pela erradicação do trabalho infantil em suas redes empresariais.

O objetivo da pesquisa é compreender as razões das políticas de responsabilidade social, instituídas pelos setores empresariais, orientadas para a prevenção e erradicação do trabalho infantil no Brasil. Para tanto, a pesquisa toma como ponto de partida o estudo da bibliografia especializada, das legislações e documentos referentes aos temas responsabilidade, direitos das crianças e políticas públicas e privadas para o enfrentamento do problema social do trabalho infantil. A pesquisa está organizada em três sessões. Inicialmente, analisa-se a construção das concepções teóricas sobre a responsabilidade social empresarial, expressas na legislação e nas iniciativas ou programas implementados pelos setores empresariais. Na seqüência, procura-se contextualizar os principais investimentos dos organismos internacionais para criar uma consciência universal acerca dos direitos da infância e dos problemas do trabalho infantil, estabelecendo nexos com os processos de aprimoramento dos aparatos legais e das políticas públicas de proteção das crianças e adolescentes, no Brasil. Por fim, destaca-se a mobilização de setores empresariais para enfrentar o trabalho infantil em suas cadeias produtivas, desenvolver ações de responsabilidade social e evitar embargos comerciais nos mercados globalizados.

Page 116

2. Responsabilidade social empresarial

Em diversos campos da atividade humana, a expressão responsabilidade pode ser entendida em sentido amplo como “dever, obrigação ou contraprestação”. Dentre os requisitos que caracterizam a responsabilização (a ação, comissiva ou omissiva; o dano; o nexo de causalidade; a culpa e o dolo), o dano está diretamente relacionado com a noção de prejuízo. Neste sentido, o dano, entendido como a lesão de qualquer bem jurídico, seja de cunho patrimonial ou moral, apresenta-se como fator de desequilíbrio das relações humanas, seja entre os indivíduos e empresas ou entre os indivíduos e empresas com o Estado. Do dano extrai-se a idéia de reparação e indenização, como formas de pagamento, ressarcimento ou compensação por lesões ou prejuízos patrimoniais ou morais causados aos interesses de outrem, que podem ser um indivíduo, uma entidade ou a coletividade. A responsabilidade de reparação, por meio de indenizações ou obrigações de fazer ou não-fazer, com fulcro no ideário liberal-individualista, decorre sempre de um evento danoso, individual ou coletivo, que já ocorreu, portanto, relacionado ao passado.

Nos últimos tempos, em outro paradigma, surge a responsabilidade social e solidária. No projeto atual de construção de um Estado democrático de direito, com início após a segunda metade do século XX, a consolidação dos direitos fundamentais de terceira dimensão estão relacionados aos interesses difusos e à solidariedade entre os seus membros (paz, democracia, desenvolvimento sustentável, meio ambiente etc.). A responsabilidade, atualmente, em novo viés, tem como horizonte o passado, o presente e o futuro.

Neste caso, a responsabilização dá-se não só pelos danos já ocorridos, mas pelos danos que estão ocorrendo, ou até mesmo pelos danos futuros e/ou danos potenciais. A responsabilização preventiva, por exemplo, surge para se evitar a ocorrência de um dano previsível e futuro. O que se pode impedir, de forma preventiva, são atitudes e ações que serão no futuro interpostas sem qualquer garantia de que os danos causados serão realmente sanados.

A relação entre as presentes e futuras gerações deve se dar unicamente a partir da idéia de responsabilidade social. Para Jonas1, a amplitude dePage 117nosso poder determina a amplitude de nossa responsabilidade. Assim, uma geração é responsável perante as seguintes até onde se estendem as conseqüências de seus atos. Essa definição de responsabilidade é atemporal e profundamente diferente de seu conceito tradicional. A ampliação do poder do homem de influir no futuro exige uma nova postura e responsabilidade social e solidária. Destarte, constata-se que não é razoável e adequado que se aguarde a produção do dano para responsabilizar o agente, individual ou coletivo, principalmente quando se leva em conta que muitos danos podem vir a ocorrer em um futuro próximo ou distante, quando o responsável já não mais existirá para arcar com as conseqüências de sua indenização ou reparação.

Neste contexto, o termo “responsabilidade social” traz muitas dúvidas sobre sua definição, inclusive de sua jurisdicionalização. Em dimensão mais social e política, do que jurídica, a “responsabilidade social” não é sinônimo de “social responsável”2. A responsabilidade social advém de uma atitude e compromisso, como filosofia, da pessoa física ou jurídica para com a sociedade num todo. O social responsável é o inverso, pois a pessoa física ou jurídica se considera responsável pelo social de forma passageira e imediata, sem o compromisso com um projeto de continuidade, de perenidade e compromisso com o futuro, a exemplo de uma doação. A idéia de responsabilidade social está ligada mais a noção de “interesse” do que de “direito”. O direito, diferentemente do interesse, implica em simetria e reciprocidade, a exemplo do contrato. Em se tratando de interesses transgeracionais ou das futuras gerações, os titulares podem ser difusos e os objetos múltiplos3. Este novo padrão de relacionamento entre Estado e sociedade acaba por impor novas formas de regulação jurídica, participação, formação de parcerias e senso de responsabilidade social.

Como se pode verificar, a responsabilidade social, em sentido estrito, deve ser entendida como a obrigação de responder por suas ações passadas, presentes e futuras, inclusive de todos os atores da sociedade que de alguma forma sofreram ou sofrerão os influxos de seus efeitos. Para além da mera filantropia, a responsabilidade social deve ser vista como um investimento e uma obrigação para com o desenvolvimento social e humano de toda sociedade e, em sentido amplo, estende-se a todoPage 118gênero humano. Desse modo, a responsabilidade social, em sede local, regional, nacional, universal ou global, mais do que um dever, tem a conotação de uma missão em face do desenvolvimento social e humano. A idéia de responsabilidade social implica em cidadania ativa, de formas ativas de participação, por possuir uma força moral maior do que aquela apresentada pela obrigação ou dever.

Cabe ressaltar que as infrações e danos individuais e coletivos não são apenas cometidos por pessoas físicas numa atuação desordenada, mas também por pessoas jurídicas, como empresas, corporações, organizações e agrupamentos de pessoas. A empresa apresenta-se como uma organização de capital e trabalho e caracteriza-se por sua função econômica de produção e distribuição de bens e serviços e de prestação de serviços e, como tal, é regulada pelo ordenamento jurídico. A sua atuação deve primar pela relevância social, como imperativo da vida político-social e econômica contemporânea. Não se quer aqui olvidar a importância do espaço maior a ser ocupado pelo homem. A empresa, por meio de seus gestores, tem a sua importância, bem como deve ter o compromisso e tomada de consciência quanto à resolução dos problemas sociais...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT