Responsabilidade civil por dano extrapatrimonial decorrente de abandono afetivo nas relações paterno-filiais: apontamentos sobre os limites e possibilidades à luz do ordenamento jurídico-brasileiro

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas139-169

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1 Noções introdutórias

Após a promulgação da Carta Política de 1988, a República Federativa do Brasil passou a se pautar, também nas relações de ordem civil, por princípios constitucionais marcados pela densidade axiológica, demandando do aplicador do direito a árdua tarefa de dimensionar a sua extensão e seus reflexos práticos.

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Verificou-se, em decorrência, no fecundo campo do Direito das Famílias, o realce, não sem razão, do papel fundamental do afeto na configuração das relações familiares, ao materializar o respeito à dignidade humana e ao pluralismo familiar, reconhecendo, com isso, várias consequências, inclusive de ordem patrimonial, tais como a imposição aos pais afetivos do dever de prestar alimentos.

Nesse passo, embora não se discuta mais o reconhecimento da importância do afeto nas relações de família, há, ainda, zonas nebulosas quanto à sua inobservância e as consequências jurídicas daí advindas.

É, portanto, nesse cenário forjado a partir do marco teórico civil constitucional representado pela Constituição Cidadã de 1988, que a abordagem do dano extrapatrimonial por abandono afetivo representa inescondíveis indagações sobre seus limites e possibilidades, principalmente diante das constantes confusões entre amor, afeto e deveres jurídicos.

A jurisprudência, por exemplo, há pouco tempo, mostrava-se quase que por unanimidade avessa à ideia de condenar o pai ou mãe que deixa de cumprir o dever de dar afeto, justamente por considerar que não existe referida imposição no ordenamento jurídico pátrio, pois o amor não poderia ser exigido.

A discussão, contudo, voltou ao centro do debate, sendo revitalizada por recente decisão do Superior Tribunal de Justiça admitindo a condenação a título de indenização por dano decorrente de abandono afetivo, após consolidada jurisprudência em sentido contrário, demandando do pensador do direito a compreensão de seus limites e possibilidades.

Isso porque o dano extrapatrimonial por abandono afetivo deve ser pesado em balança regulada, de modo que seus pratos encontrem o equilíbrio necessário entre os riscos da patrimonialização do afeto e da intervenção “máxima” do Estado no Direito das Famílias e os problemas decorrentes da proteção insuficiente dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Portanto, a fim de equilibrar os extremos envolvidos na mencionada questão, este trabalho pretende investigar se há ou não e, em caso afirmativo, quais seriam os parâmetros para a imposição judicial da responsabilidade civil por dano extra-patrimonial decorrente de abandono afetivo nas relações paterno-filiais.

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2 Pressupostos da responsabilidade civil por dano extrapatrimonial decorrente de abandono afetivo nas relações paterno-filiais

O estudo acerca da responsabilidade civil no ordenamento jurídico brasileiro exige, em regra, como seus pressupostos, a existência de conduta culposa, do dano e do nexo de causalidade entre ambos, conforme se depreende do art. 186, do Código Civil, ensejando, como decorrência, o dever de indenizar, a teor do caput do art. 927, do Diploma Civilista. Excepcionalmente, contudo, por força deste último dispositivo, também pode ser considerado como pressuposto da responsabilidade civil o denominado ilícito objetivo, previsto no art. 187, como aquele exercido pelo titular de um direito que acaba excedendo manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, desde que venha a causar algum dano.

Em linhas gerais, portanto, pode-se destacar como pressupostos da responsabilidade civil, segundo anota Roberto Altheim: a) conduta, que deve ser culposa, dolosa ou prevista em lei como ensejadora da responsabilidade objetiva; b) dano certo e atual; e c) nexo causal entre aquela conduta e o dano.2A partir de referida premissa, muito se discute sobre a possibilidade de situação fática de abandono afetivo de um dos pais ou de ambos para com a prole e vice-versa dar ensejo à responsabilidade civil na modalidade de dano extrapatrimonial, porquanto tal conduta violaria direitos da personalidade do “abandonado”, causando-lhe danos.

O início da indagação, todavia, perpassa, inevitavelmente, pela eleição do modelo de responsabilidade civil a guiar os estudos: subjetivo ou objetivo?

A questão se coloca com grande relevância, haja vista que, conquanto o trato da matéria, de forma tradicional, tenha se erigido nas bases da responsabilidade subjetiva, há posição minoritária, defendida por Rolf Madaleno, propugnando que o abandono afetivo seja verificado sob o viés objetivo, nos seguintes termos:

Deixou a família de ser imune ao direito de danos, encontrando o pedido de indenização o seu fundamento não exatamente no ato ilícito, mas no abuso do

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direito previsto no art. 187 do Código Civil brasileiro, ainda que exclusivamente moral. O abuso do direito independe da culpa, pois sua noção extrapola a teoria da responsabilidade civil. Trata da imposição de restrições éticas ao exercício de direitos subjetivos, tendo em conta que no âmbito do conteúdo do direito de visitas e na obrigação de comunicação com seus filhos, existem espaços que não podem ser relegados e barreiras que não podem ser ultrapassadas. E no abuso do direito a pessoa justamente excede as fronteiras do exercício de seu direito, sujeitando-se às sanções civis, que passam pelas perdas e danos aferíveis em dinheiro. Existe uma linha tênue entre o abuso do direito (art. 187 do CC), e o abuso do poder familiar (art. 1.630 do CC), sendo difícil e arriscado generalizar seus diagnósticos, pois cada situação exige um detido exame e talvez seu único denominador em comum seja que, de uma maneira ou de outra, em todas as hipóteses de abuso sempre estará sendo comprometido o bem-estar psíquico e o interesse do menor. Abusa do direito de visitas o genitor que se omite do filho; que não tem afeto pela prole nem lhe proporciona proteção, vestuário e alimentação adequada, afastando-se do dever que tem de transmitir aos filhos carinho e orientação.3Conquanto referida posição mostre-se defensável, como procedido pelo mencionado autor, entende-se, no presente trabalho, que a noção de culpa, em seu sentido amplo, ainda não pode ser dispensada na perquirição dos pressupostos da responsabilidade civil por abandono afetivo.

A culpa, entendida por Bruno Miragem, como “o livre-arbítrio de agir ou não de acordo com o dever”4, logicamente, quando se podia atuar de forma diferente, apresenta-se, ainda, como necessária para algumas situações, tal como a do abandono afetivo, pois é a partir dela que se permite investigar sobre a possibilidade de agir de maneira diversa, circunstância esta fundamental, por exemplo, para atrair ou afastar a responsabilidade daquele que, mesmo cônscio de seus deveres como pai ou mãe, não tem condições de cumpri-los por estar acometido de alguma doença grave incapacitante.

Outrossim, como sabido, o ato ilícito objetivo exige que o agente, ao exercer determinado direito, exceda manifestamente os limites impostos pelos fins econômicos ou sociais, pela boa-fé e os bons costumes. Logo, na análise da res-

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ponsabilidade por abandono afetivo não haveria, tecnicamente, direito a ser exercido, mas sim um dever não cumprido. Mostra-se inadequado, portanto, qualificar os deveres inerentes às relações entre pais e filhos como “direitos” para fins de enquadramento na figura constante do art. 187 do Código Civil (abuso do direito).

Nesse sentido, Bruno Miragem, corroborando ao menos a dúvida quanto à exata adequação de poder-dever como direito subjetivo, expõe que:

Da mesma forma, os titulares de um poder-dever que, embora se possa questionar sobre sua exata adequação ao conceito de direito subjetivo – uma vez que se vinculam de modo expresso determinadas finalidades estabelecidas pelo próprio Direito – não deixam de exercê-lo segundo seu arbítrio e, portanto, desbordar neste exercício para finalidades não protegidas pelo ordenamento jurídico. É o caso do exercício do poder familiar, assim como da tutela e curatela, segundo o perfil que lhes estabelece o Código Civil e que venham a se dar em manifesto prejuízo do incapaz, ou no sentido constitucional – quando for o caso – da absoluta prioridade dos interesses da criança (artigo 227 da Constituição).5Ademais, entende-se que a responsabilidade objetiva não precisa ser testada em todas situações, a fim de se verificar se bem substitui a subjetiva, haja vista que ambas podem conviver, parecendo que esta continua a funcionar melhor nas relações interindividuais, conforme alerta Maria Celina Bodin de Moraes.6Diante destas considerações, passa-se à verificação dos pressupostos da responsabilidade subjetiva, quais sejam: conduta culposa, dano e nexo de causalidade localizados nas relações paterno-filiais.

A princípio, muitos afirmariam que, diante de situação de abandono afetivo, inexistiria conduta ilícita, por não haver qualquer norma jurídica que imponha o dever de dar afeto a alguém, mesmo que seja ao próprio filho ou ao pai.

Nesse sentido, inclusive, posicionava-se a majoritária jurisprudência brasileira, conforme se verifica na ementa abaixo transcrita:

RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pres-

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supõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.” (REsp 757.411/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES).7Em referido julgamento, importante realçar as razões do voto do Ministro Fernando Gonçalves que, na condição de relator, concluiu que escaparia ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar outrem, ou com ele manter...

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