A Reserva do Possível: Entre a Suposta Insuficiência de Recursos Disponíveis e a Execução do Direito à Saúde

AutorTainá Fernanda Pedrini - Thaís Vandresen
CargoAcadêmica de Direito (UNIVALI ? Santa Catarina, Brasil) - Doutoranda em Ciência Jurídica (UNIVALI). Mestre em Direito (UFSC). Professora de Direito Constitucional e Direitos Humanos (UNIVALI)
Páginas16-22

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Introdução

A saúde está assegurada pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) em seu artigo 196 como um direito de todos e um dever do Estado. No entanto, percebe-se que o Estado se queda inerte em concretizar tal garantia com êxito, retirando do sujeito necessitado sua própria dignidade.

Em diversas ações judiciais, tanto o Estado quanto o Poder Judiciário têm respaldado a má prestação do direito à saúde no princípio da reserva do possível, o qual apregoa a insuficiência de recursos orçamentários. Diante disso, a presente pesquisa objetiva analisar a efetividade deste direito, principalmente no que tange à entrega de medicamentos pelo Estado e a possibilidade de justificar a sua omissão.

O direito à vida traduz-se essencialmente no direito de permanecer vivo, bem como de ser salvo ou não ser deixado à vulnerabili-dade da morte. Apesar de não absoluto1, ao mencioná-lo, traz-se a lume, quase que irretocavelmente, a sua indisponibilidade. Trata-se de uma garantia considerada fonte primária para a titularidade de todas as demais. Nesse sentido, dian-te da exponencial importância da vida - correlato direto da dignidade humana - justifica-se a presente pesquisa, vez que sua ablação suplantada no princípio da reserva do possível pode constituir uma grande afronta ao indivíduo como sujeito de direitos.

Ante o exposto, constituem-se as hipóteses: É possível utilizar-se do princípio da reserva do possível a fim de negar ao cidadão a pres-tação do direito à saúde? A seguridade social tem principiado pela prevalência à assistência dos direi-tos fundamentais? É justificável a utilização do déficit orçamentário?

A administração pública aplica os fundos da seguridade social a fins menos urgentes que a efetivação das garantias constitucionais? O método adotado foi o indutivo.

1. Direitos fundamentais fio ideal de concretização

Ao analisar a CRFB/88, percebe-se, desde logo, o extenso rol de direitos fundamentais positivados, derivados das revoluções globais ocorridas ao longo do tempo2. Todorov3 classifica estas movimentações populares geracionais - inovadoras pela elevação do pensamento sobre a existência de direitos inatos ao homem - em: a) primeira onda, a qual trata das guerras revolucionárias e coloniais que buscavam a diminuição do poder dos reis autoritários, representada pela Revolução Francesa e pelo período Iluminista, dos quais surgiram a tríade lockeana vida, propriedade e liberdade4, hodiernamente conhecida como primeira geração de direitos; b) a segunda onda trata do projeto comunista, o qual visava à extinção de toda a diferença entre humanos, desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels, fazendo surgir a segunda geração de direitos referentes à igualdade - garantias econômicas, sociais e culturais; e c) a terceira onda, "impor a democracia pelas bombas", trata dos projetos totalitários com o fito de "impor o regime democrático e os direitos humanos pela força".

Com a categorização do tempo feita por Todorov em relação à política jurídica global, vê-se que muito embora existissem diversas manifestações populares com a finalidade de reconhecer direitos inerentes aos indivíduos - e real-mente houvesse a produção legislativa nesse sentido - faltavam-lhes mecanismos concretizadores. No caso brasileiro, a intenção de satisfazer essas promessas restou comprovada na atual CRFB/88. Este novo modelo trouxe a ruptura da antiga estrutura política e constitucional do país. O Poder Judiciário ganhou espaço, deixando de ser mero mediador de confiitos para, então, atuar de forma marcante como efetivador dos direitos fundamentais - o verdadeiro guardião da CRFB/885.

A nova proposta constitucional, marcada pela supremacia e rigidez, também renovou o conceito de democracia, superando o anti-go "estado de direito" para o atual "estado constitucional de direito"6.

Naquele, o Estado obtinha a legitimidade de seus atos somente na lei e no Poder Legislativo. Já este se fundamenta pela extensão do princípio da legalidade - vinculado ao poder da maioria e da minoria - e pela sujeição a lei por todos os poderes públicos, inclusive o próprio Legislativo - e sua função de tutelar os direitos fundamentais constitucionalmente garantidos7-8.

O constituinte também inovou ao firmar o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado, evidenciando, no artigo 5º9, um rol de garantias fundamentais, explícitas, bem como pela existência, por todo o texto constitucional, de direitos implícitos, os quais se irradiam pelo ordenamento jurídico pátrio, tendo primazia de aplicação e constituindo inclusive norte para a validade das legislações infraconstitucionais.

A fim de concretizar, então, os direitos garantidos pela ordem constitucional, o legislador dotou-os de aplicação imediata10-11, conforme parágrafo primeiro do artigo 5º da CRFB/8812, e apresentou institutos processuais ao alcance dos cidadãos como, v.g., o mandado de injunção, a ação de inconstitucionalidade por omissão e a ação civil pública, de modo que o próprio indivíduo lesado possa buscar a

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viabilização de políticas públicas, mediante tutela jurisdicional, esta encarregada de suprir omissões executivas e legislativas13.

Igualmente, sabendo da condição utópica de cumprir todos os direitos fundamentais em sua totalidade, inovou-se com o princípio da máxima efetivação dos direitos constitucionais - conhecido igual-mente como princípio da eficiência ou interpretação efetiva. Segundo Canotilho14, constitui-se na interpretação da norma constitucional dirigida à finalidade de lhe dar a maior exercício possível. "É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da atualidade das normas programáticas [...] é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais."

A SAÚDE NÃO COMPREENDE UNICAMENTE O FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS E ASSISTÊNCIA MÉDICA, MAS O CONTROLE DE DOENÇAS E PROGRAMAS PREVENTIVOS

Ante as teorias observadas, seguem como majoritárias as correntes que apregoam a aplicação em potencialidade máxima dos direitos fundamentais, assim como sua aplicabilidade imediata15 no ordenamento jurídico pátrio, seja na ordem pública ou privada, e que vinculam de forma igualitária os três poderes - responsáveis pela proteção e prestação dessas garantias.

1. 1 O direito à saúde como direito fundamental

A saúde é bem de extraordiná-ria relevância à vida e à dignidade da pessoa humana, princípio este que embasa o estado democrático de direito. Por esse motivo o legislador elevou o direito à saúde à condição de fundamental, incluindo-o no rol de direitos sociais - valorizando existência digna, conso-ante os ditames da justiça social -, expondo o tema nos artigos 6º16, 19617 e 19718 da CRFB/88.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), em sua constituição de 1946, descreveu que a "saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade"19. Portanto, tal direito social não pode ser visto de forma isolada - como aspecto individual e biológico -, mas deve ser considerado como resultado de condições socioeconômicas e ambientais que circundam o indivíduo como ser único ou coletivo.

A saúde não compreende unicamente o fornecimento de medicamentos e assistência médica, mas o controle de doenças e programas preventivos. Nestes, incluem-se programas de habitação, saneamento básico e combate à desnutrição. Pode-se dizer então que nele estão contidos latu sensu a alimentação, a moradia, o saneamento, o meio ambiente, a renda, o trabalho, a educação, o transporte, entre outros.

Apesar da abrangência desta garantia, a presente pesquisa faz o corte epistemológico na saúde como direito a não ser deixado à vulnerabilidade da morte, quando o indivíduo carece de assistência médica ou hospitalar ou em caso de prestação de medicamentos por parte dos entes federados.

É de competência do poder público20 implementar políticas que realmente garantam aos cidadãos o acesso igualitário e universal à assistência médica e hospitalar, incluindo, portanto, o fornecimento de fármacos e tratamentos, responsabilidade esta comum a todos os entes da federação, dentro de seu âmbito administrativo, conforme dispõe o artigo 23, II, da CF21.

O Sistema Único de Saúde (SUS), criado a partir da proposta constitucional exposta nos artigos 198, parágrafo primeiro, e seguin-tes, regula-se pela Lei Orgânica da Saúde, n. 8.080, de 19 de setembro de 199022, a qual estabelece a sua estrutura e funcionamento. Tal lei ordinária é um mecanismo concretizador das normas constitucionais.

O artigo 200 da CRFB/88 elenca os principais objetivos do SUS:

  1. controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias di-recionadas à saúde, bem como participar da produção de fármacos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

  2. executar a vigilância sanitária e epidemiológica e as correspondentes à saúde do trabalhador; c) principiar pela criação de recursos humanos na área de saúde; d) exercer participação na política e na execução das ações de saneamento básico; e) incentivar o desenvolvi-mento científico e tecnológico; f) realizar o controle do teor nutricional dos alimentos, bebidas e águas para consumo humano; g) fiscali-zar a produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e pro-dutos psicoativos, tóxicos e radio-ativos; h) participar na proteção do meio ambiente e do trabalho23-24.

O alcance desses objetivos deve, contudo, ser percorrido pela União, estados, Distrito Federal e municípios. A legislação que prevê o SUS ditou fontes de...

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