Reparação por acidente de trabalho, indenização por danos morais e materiais em contrato nulo: possibilidade e implicações

AutorRenata Coelho Vieira
CargoProcuradora do Trabalho lotada na PRT15ª Região, Campinas/SP
Páginas232-251

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I - Introdução

Com a alteração de competência da Justiça do Trabalho provocada pela Emenda Constitucional n. 45, de 2004, as causas relativas a acidente de trabalho, bem como pedidos de indenização por danos materiais e morais decorrentes da relação de trabalho passaram a ser, sem dúvida, incumbência dos julgadores trabalhistas. Diz-se sem dúvida porque, mesmo antes da Emenda, já havia precedentes jurisprudenciais a respeito, especialmente sobre indenizações por danos morais praticados no âmbito de uma relação de emprego.

Contudo, até hoje a matéria por vezes assusta. Ainda que passado o caráter de novidade, as causas relacionadas a acidentes de trabalho e a pedidos de danos materiais e morais são em geral complexas, demandam conhecimentos específicos e atualização constante. São questões densas e que exigem grande dose de paciência e dedicação, sem contar que tratam de bens supremos como a saúde, a segurança e a vida. Vão muito além de mera cobrança de dívida, de discussões patrimoniais, para versar sobre bens imateriais, direitos personalíssimos e inatos, intimidade, dignidade, interesses afetos a cada um de nós e a toda a humanidade, o que amplia muita a dimensão do assunto e a responsabilidade dos aplicadores do Direito.

Por esses e outros motivos, há um peso em se lidar com processos relativos a tais matérias, porquanto a lide, muito embora travada entre dois polos, envolve questões e interesses sociais, exigindo até que o jurista, seja o Procurador ou o julgador, coloque-se no lugar da vítima ou do suposto agressor para dimensionar o dano, o gravame, entender seus efeitos e fazer a dosagem da reparação, ou seja, são causas difíceis sob vários aspectos. Muitas vezes, tudo isso gera um temor, que impede a confrontação ou aprofundamento do tema e da controvérsia. Forma-se um escudo ou um torpor que acaba gerando conclusões precipitadas ou reducionistas que, nem sempre, são as mais acertadas ou justas.

Assim é que causas versando sobre dano moral e material e até acidentes de trabalho, no âmbito de relação de emprego nula foram levadas ao Judiciário Trabalhista e nem sempre foram bem recebidas.

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Até hoje se encontra uma série de julgados extinguindo tais feitos sem resolução do mérito ou julgando os pedidos improcedentes, com aplicação pura e simples do Enunciado n. 363 do c. TST, sob o argumento de que a relação de emprego nula não gera efeitos ou a falta de requisito de validade da relação, como um concurso público, por exemplo, torna impossível juridicamente a discussão do acidente do trabalho ou de indenizações, sejam elas por dano material ou moral.

Num primeiro momento, talvez, o ímpeto de solucionar a questão de forma rápida ou o já referido temor ao novo ou à complexidade do tema torne essa uma saída possível e jurídica que satisfaça: contrato de trabalho nulo não permite indenizações; relação de emprego viciada não gera efeitos, etc.

O intento aqui é demonstrar que tais conclusões não se sustentam em nosso ordenamento e não resistem a uma análise um pouco mais acurada da matéria posta.

II - Atoe fato jurídico Relação jurídica. Planos de existência, validade e eficácia

Um primeiro entendimento aqui defendido é o de que indenizações por dano material ou moral são decorrentes da legislação civil, constitucional ou mesmo supraconstitucional e não são afetadas pela nulidade contratual trabalhista.

A relação jurídica base, no caso que aqui interessa, a relação de emprego, seja válida ou inválida, nesse caso, é pertinente apenas para fins de fixação de competência do órgão julgador, não para determinar a exigibilidade de crédito que, em verdade, é de natureza civil ou extracontratual, guiado em último caso por normas de direito civil.

Esse mesmo argumento já foi utilizado para defender a aplicação de normas civis de prescrição da indenização por dano moral e também para aplicação das teorias de responsabilidade (subjetiva e objetiva), ainda quando debatidos em processo do trabalho apenas porque o dano surgiu no âmbito de uma relação de emprego.

Sendo institutos de direito civil e sujeitos às suas regras, as questões atinentes à indenização devem respeitar os elementos de configuração previstos na lei civil. E, no direito civil, para estabelecer o dever de indenizar basta que haja um ilícito, um dano, e o nexo de causalidade, independente da validade da relação de emprego ou de qualquer outra relação jurídica que tenha servido de cenário para os fatos discutidos. Isso é o aqui

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defendido. Mas tais assertivas dependem da clareza de noções de ato ou fato jurídico e relação jurídica e dos elementos que os envolvem para, enfim, permitir a segurança na aplicação do Direito1.

As conclusões acima, então, em um primeiro momento, só são possíveis, caso se verifique qual o ato ou fato jurídico a ser valorado e tipificado para fins de indenização por dano moral e material, seja ela decorrente ou não de acidentes de trabalho até.

Oportuno ressaltar que o estudo do fato — em sentido amplo, incluindo fatos naturais e jurídicos, voluntários (atos) ou não — é essencial a toda a ciência do Direito. Até mesmo na denominada teoria pura do direito2 os fatos são considerados como ponto de partida diante do qual o legislador formula seu juízo de valor e estabelece a norma. Também na teoria tridimensional do direito (Reale) exalta-se o fato já que o ordenamento seria formado em decorrência da dinâmica surgida na sequência de apreciação e formação de fato, valor e norma. Para Reale3, onde houver um fenômeno jurídico haverá sempre um fato subjacente, um valor que lhe confere determinada significação, e uma regra ou norma que representa a relação que integra tais elementos (fato e valor).

Ainda Tercio Sampaio reconhece que a hipótese normativa identifica justamente uma "situação de fato", prevista na norma, à qual se imputa uma consequência jurídica4.

E o fato da vida, o ato jurídico (fato jurídico voluntário) relevante e cuja valoração é necessária para aplicação da legislação trabalhista é a prestação de serviços, de forma não eventual, onerosa, subordinada a empregador. Com a manifestação de vontade das partes, configura-se a relação jurídica que, sendo valorada à luz daquele fato atrai a aplicação da norma do art. 3e da CLT e dela decorrem as demais consequências trabalhistas (tempo de serviço, créditos trabalhistas, etc.).

Agora, se no curso de uma relação de emprego ou mesmo por conta dela há alegação de dano material ou moral e pedido de reparação, o fato

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para fins de aplicação do Direito e até hermenêutica será outro. Será, por exemplo, a violação a bens imateriais ou a patrimônio moral, sob a forma, por exemplo, de atos de coação, de discriminação, uma conduta lesiva à dignidade, um acidente de trabalho (típico ou não). Sendo deste tipo, o fato somente poderá ser ele valorado de forma a aplicar a lei civil — que é o arcabouço jurídico protetor de tais interesses em jogo — porque suas características e elementos são previstos e descritos pela lei civil, não pela CLT.

Leciona Carlos Maximiliano5 que a aplicação do Direito "consiste em enquadrar um caso concreto numa norma jurídica adequada. Submete às prescrições da lei uma relação da vida real; procura e indica o dispositivo adaptável a um fato determinado. Por outras palavras, tem por objeto descobrir o modo e os meios de amparar juridicamente um interesse humano".

A relação da vida real que interessa para garantia de créditos trabalhistas é a relação de emprego. É por ela que se permitirá encontrar os elementos para aplicação da norma trabalhista. Assim como dela depende a aplicação do art. 114, I e VI, da Constituição Federal após a Emenda n. 45, de 2004, que define o órgão competente para julgar ações oriundas da relação de trabalho e ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho.

Todavia, a relação ou evento da vida real para fins de assegurar o direito à indenização por dano material e moral ocorrido na relação de emprego e para definir a norma aplicável a tal conflito de interesses não será essa relação de emprego, mas sim a relação interpessoal, o evento jurídico do qual decorreu uma violação a direitos fundamentais, por exemplo. Não importará aqui a relação entre empregado e empregador, mas a relação entre pessoas, seres humanos, seus direitos e obrigações. E, nesse caso, a legislação adequada, a que define elementos, características, respon-sabilidades, critérios de reparação não é a trabalhista, porém, a civil, num primeiro momento, e até a constitucional e mesmo a internacional.

Da mesma forma, o interesse humano, tal como visto por Maximiliano, a ser protegido numa situação de indenização por dano material ou moral não é o interesse decorrente de norma trabalhista, interesse na condição de empregado, mas na condição de pessoa e protegido por normas aplicáveis a todos, empregados ou não.

Cabe ao jurista fazer tal silogismo. Como aplicadores do direito nos cabe ser os "intermediários entre a norma e a vida", como diria Ferrara6, e fazer essa subsunção dos fatos às normas adequadas a ele.

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Definida essa primeira premissa, tentar-se-á passar à próxima, que a completa e também a reforça.

Viu-se que o fato relevante para o estudo aqui pretendido, que causa uma modificação no mundo jurídico (no sentido amplo de tudo o que causa o dano ou perda patrimonial ou moral), demanda de valoração e enseja a aplicação da norma civil para reparação (para os adeptos de uma teoria tridimensional). E isso tudo deve ocorrer independente da validade da relação jurídica estabelecida entre os sujeitos e torna também despicienda a análise de sua natureza (familiar, negocial, trabalhista, consumo).

A natureza da relação jurídica original e base para o fato que...

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