Relação de emprego: da estrutura à função

AutorAlmiro Eduardo de Almeida
Páginas153-165

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1. Introdução

Talvez a melhor forma de homenagear um doutrinador que, ao invés de simplesmente reproduzir o pensamento até então hegemônico, se preocupou em refietir criticamente e desenvolvê-lo, seja seguir os seus passos refietindo criticamente sobre a sua obra.

Nesse sentido, o presente artigo pretende render homenagem à Relação de emprego: estrutura legal e supostos, livro de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, cuja primeira edição foi publicada em 1975 e, ainda hoje, em sua terceira edição, continua sendo considerada a obra de maior relevância sobre o tema no Direito brasileiro. Advirta-se, entretanto, desde já, que a presente homenagem não se limita a reproduzir a obra do homenageado indo, inclusive, não poucas vezes, de encontro a algumas de suas ideias mais caras.

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Filho de seu tempo, Ribeiro de Vilhena considerou a relação de emprego a partir de sua estrutura, buscando os elementos constitutivos que denominou supostos para definir o seu conceito2.

Hoje em dia, entretanto, alguns jusfilósofos, como Norberto Bobbio3, têm atribuído cada vez maior atenção às funções desempenhadas pelo direito - pensamento ao qual se atribuiu a denominação de teoria funcionalista -, colocando-se, assim, em franca oposição àqueles que dão ênfase à estrutura normativa tais como os juspositivistas Hans Kelsen e Herbert Hart.

Inserindo-nos nesse novo paradigma epistemológico, entendemos que também a relação de emprego deve ser examinada a partir da função que exerce no contexto de um sistema capitalista de produção, e não mais pelos elementos que pretensamente a estruturam. Não podemos conceituá-la sem atentar para a razão pela qual criamos e desenvolvemos historicamente a ideia mesma de relação jurídica de emprego.

2. Apresentação (crítica) da tradicional dogmática jurídica acerca da relação de emprego

A doutrina até hoje tem buscado conceituar a relação de emprego a partir da sua estrutura, lendo no art. 3º da CLT requisitos indispensáveis para a sua configuração4.

Quando mudamos a perspectiva e passamos a compreender que a linguagem não é um instrumento a ligar sujeito e objeto, mas sim condição de possibilidade da compreensão, temos condição de romper com o senso comum teórico (cientificismo moderno) que nos conduz, quase de forma inconsciente, a "encaixar", não sem dificuldades, institutos jurídicos em modelos conceituais concebidos aprioristicamente. Transformamos realidades sociais em conceitos jurídicos e com isso acabamos desnaturando características, forçando definições que teimam em nos inquietar, porque não se enquadram, porque desafiam o que vemos acontecer ao nosso redor.

É o que ocorre com a relação de emprego.

O modelo "relação de emprego" é um fator socioeconômico externo ao Direito e anterior ao surgimento do Direito do Trabalho. Como costuma ocorrer com os mais variados institutos jurídicos, não é o Direito que cria a realidade social a que visa regular, mas, ao contrário, o confiito social se lhe impõe. É assim que o Direito do Trabalho e a noção (jurídica) de relação de emprego surgem das condições de vida social defiagradas na organização econômica confiituosa existente entre trabalhadores e capital entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX. Pode-se mesmo sustentar, sem que com isso se queira provocar grandes controvérsias, que o próprio nascimento do Direito do Trabalho decorre da impossibilidade de o Ordenamento Jurídico até então vigente dar conta da nova realidade econômico-social representada pela relação de emprego.

Diante disso, não é de se espantar (ao menos não deveria ser para os operadores do Direito do Trabalho) que a forma de "ler" o Direito não corresponda à complexidade das relações que ele (o Direito) pretende regular. Novas leituras sempre se impõem. É mais do que razoável negar a existência de uma última, completa e insubstituível compreensão da realidade dos fenômenos sociais.

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Tradicionalmente, a doutrina identifica quatro elementos como sendo os requisitos necessários para a configuração do vínculo de emprego, no que é seguida de perto pela jurisprudência. São eles: pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade5.

Parte da doutrina aponta, ainda, um quinto elemento, a prestação do serviço por pessoa física, desdobrando, assim, o primeiro (pessoalidade) em dois6.

A construção desses entendimentos é atribuída ao texto do caput do art. 3º da CLT, segundo o qual, "Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário".

A proposta central do presente artigo, a ser desenvolvida na próxima seção, é a de uma refiexão crítica acerca de tais entendimentos a partir de uma releitura do dispositivo legal em questão sob uma perspectiva funcionalista da linguagem e do próprio Direito do Trabalho.

3. Análise (funcional) dos elementos característicos da relação de emprego

Compreendidos sob uma nova perspectiva epistemológica, os elementos característicos da relação de emprego podem ser considerados, não mais como requisitos necessários para a configuração estrutural do seu conceito, mas como características que merecem destaque, justamente por suas distintas funções, na configuração do que se deva entender como uma relação de emprego.

a) Pessoalidade - nota de humanidade presente em toda relação de trabalho A pessoalidade caracteriza-se pelo fato de que o trabalho é humano, ou seja, prestado por um ser humano, e não por uma máquina ou um animal. Esse elemento característico, embora não seja suficiente para caracterizar a relação de emprego, haja vista estar presente em toda e qualquer relação de trabalho, exerce uma função fundamental no Direito do Trabalho. É que esse ramo do Direito adquire notas de particularidade a ponto de se tornar uma disciplina própria, justamente em razão da proteção dispensada à pessoa humana que trabalha, preceito presente, por exemplo, na própria constituição da Organização Internacional do Trabalho7. É em razão da presença de um trabalho humano, e da admissão de que esse trabalho seja de algum modo "comercializado", que se constrói a doutrina trabalhista. O princípio da proteção encontra aqui sua razão de ser. É um ser humano que trabalha e essa é a razão última da necessidade de tutela. A pessoalidade, portanto, está na raiz, no fundamento, da existência mesma do Direito do Trabalho.

O reconhecimento do trabalhador como pessoa dá origem ao Direito do Trabalho. À noção de defesa da propriedade, presente na relação entre o senhor e o escravo, a era contemporânea opõe a necessidade de proteção da pessoa que trabalha, reconhecendo-a como cidadã, destinatária das normas jurídicas. Imperioso reconhecer, assim, que é da noção de liberdade, pressuposta em um sistema liberal de produção capitalista, que decorre a necessidade proteção ao sujeito que trabalha, justamente porque não mais o concebe como propriedade do tomador dos serviços (cuja proteção resumia-se à natural proteção à propriedade privada), mas sim como ser

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humano, capaz de intervir econômica, cultural e politicamente na sociedade em que se insere, fazendo parte, assim, de sua própria constituição.

O reconhecimento de que o sujeito que presta serviços em uma relação de trabalho é um ser humano, ao que denominamos pessoalidade, enseja o reconhecimento de uma série de direitos e deveres, o que faz com que alguns autores cheguem a mencioná-lo como um princípio jurídico8. É que quando se reconhece ao trabalhador a sua dimensão humana, afastando-se a possibilidade de tratá-lo, por meio do trabalho que presta, como uma mera mercadoria, impõe-se o reconhecimento de sua dignidade.

Segundo Kant, filósofo moderno, ainda adotado pela doutrina jusfilosófica como parâmetro para a identificação da noção de dignidade, as coisas têm um preço, podendo, portanto, serem substituídas por seus equivalentes pecuniários, ao passo que o homem, seja individualmente considerado, ou em toda a coletividade, possui dignidade, o que faz com que seja insubstituível.

O reconhecimento da humanidade, presente em cada homem, é o que leva Kant a formular o imperativo categórico, marca de sua filosofia moral, que, em uma de suas possíveis formulações determina: "Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio."

A aplicação de tal imperativo impõe que todo e qualquer trabalho seja dignificante para a pessoa que o presta e que o sujeito-trabalhador seja sempre tratado como um fim em si mesmo. Essa consideração impõe, certamente, várias consequências práticas, muitas delas simplesmente esquecidas na dinâmica das relações de trabalho. Não é à toa, ou mera coincidência, que os exemplos trabalhistas figuram dentre os principais apresentados pelos jusfilósofos e doutrinadores que pensam e escrevem sobre direitos fundamentais e o respeito à dignidade humana.

Conforme bem adverte Ribeiro de Vilhena, "o trabalho em si não é objeto de proteção"9,

o que se protege é o ser humano que trabalha, admitindo-se a ideia de "proteção ao trabalho" tão somente no sentido de que tal expressão compreende a condição de incindibilidade da pessoa do trabalhador com a sua atividade, o trabalho.

A natureza intuitu personae do contrato de trabalho, amplamente vinculada pela doutrina ao requisito da pessoalidade indica a impossibilidade de substituição da pessoa do trabalhador no âmbito de uma mesma relação de emprego. Alguns esclarecimentos se fazem necessários neste ponto.

Em primeiro lugar, o caráter intuitu personae não significa dizer que o trabalhador não possa ser auxiliado por outros trabalhadores no desempenho de suas...

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