Relação de emprego: da estrutura à função
Autor | Valdete Souto Severo |
Ocupação do Autor | Juíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS |
Páginas | 61-76 |
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Talvez a melhor forma de homenagear um doutrinador que, ao invés de simplesmente reproduzir o pensamento até então hegemônico, se preocupou em refletir criticamente e desenvolvê-lo seja seguir os seus passos refletindo criticamente sobre a sua obra.
Nesse sentido, o presente artigo pretende render homenagem à Relação de emprego: estrutura legal e supostos, livro de Paulo Emílio Ribeiro de Vilhena, cuja primeira edição foi publicada em 1975 e ainda hoje, em sua terceira edição, continua sendo considerada a obra de maior relevância sobre o tema no Direito brasileiro. Advirta-se, entretanto, desde já, que a presente homenagem não se limita a reproduzir a obra do homenageado, indo, inclusive, não poucas vezes, de encontro a algumas de suas ideias mais caras.
Filho de seu tempo, Ribeiro de Vilhena considerou a relação de emprego a partir de sua estrutura, buscando os elementos constitutivos que denominou supostos para definir o seu conceito.138 Hoje em dia, entretanto, alguns jusfilósofos, como Norberto Bobbio139, têm atribuído cada vez maior atenção às funções desempenhadas pelo direito — pensamento ao qual se atribuiu a denominação de teoria funcionalista —, colocando-se, assim, em franca oposição àqueles que dão ênfase à estrutura normativa tais como os juspositivistas Hans Kelsen e Herbert Hart.
Inserindo-nos nesse novo paradigma epistemológico, entendemos que também a relação de emprego deve ser examinada a partir da função que exerce
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no contexto de um sistema capitalista de produção, e não mais pelos elementos que pretensamente a estruturam. Não podemos conceituá-la sem atentar para a razão pela qual criamos e desenvolvemos historicamente a ideia mesma de relação jurídica de emprego.
A doutrina até hoje tem buscado conceituar a relação de emprego a partir da sua estrutura, lendo no art. 3º da CLT requisitos indispensáveis para a sua configuração140. Quando mudamos a perspectiva e passamos a compreender que a linguagem não é um instrumento a ligar sujeito e objeto, mas sim condição de possibilidade da compreensão, temos condição de romper com o senso comum teórico (cientificismo moderno) que nos conduz, quase de forma inconsciente, a “encaixar”, não sem dificuldades, institutos jurídicos em modelos conceituais concebidos aprioristicamente. Transformamos realidades sociais em conceitos jurídicos, e com isso acabamos desnaturando características, forçando definições que teimam em nos inquietar, porque não se enquadram, porque desafiam o que vemos acontecer ao nosso redor. É o que ocorre com a relação de emprego.
O modelo “relação de emprego” é um fator socioeconômico externo ao Direito e anterior ao surgimento do Direito do Trabalho. Como costuma ocorrer com os mais variados institutos jurídicos, não é o Direito que cria a realidade social a que visa regular, mas, ao contrário, o conflito social se lhe impõe. É assim que o Direito do Trabalho e a noção (jurídica) de relação de emprego surgem das condições de vida social deflagradas na organização econômica conflituosa existente entre trabalhadores e capital entre o final do século XIX e a primeira metade do século
XX. Pode-se mesmo sustentar, sem que com isso se queira provocar grandes controvérsias, que o próprio nascimento do Direito do Trabalho decorre da impossibilidade de o Ordenamento Jurídico até então vigente dar conta da nova realidade econômico-social representada pela relação de emprego.
Diante disso, não é de espantar (ao menos não deveria ser para os operadores do Direito do Trabalho) que a forma de “ler” o Direito não corresponda à complexidade das relações que ele (o Direito) pretende regular. Novas leituras sempre se impõem. É mais do que razoável negar a existência de uma última, completa e insubstituível compreensão da realidade dos fenômenos sociais.
Tradicionalmente, a doutrina identifica quatro elementos como sendo os requisitos necessários para a configuração do vínculo de emprego, no que é
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seguida de perto pela jurisprudência. São eles: pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade141. Parte da doutrina aponta, ainda, um quinto
elemento, a prestação do serviço por pessoa física, desdobrando, assim, o primeiro (pessoalidade) em dois142.
A construção desses entendimentos é atribuída ao texto do caput do art. 3º da CLT, segundo o qual, “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.
A proposta central do presente artigo, a ser desenvolvida na próxima seção, é a de uma reflexão crítica acerca de tais entendimentos a partir de uma releitura do dispositivo legal em questão sob uma perspectiva funcionalista da linguagem e do próprio Direito do Trabalho.
Compreendidos sob uma nova perspectiva epistemológica, os elementos característicos da relação de emprego podem ser considerados não mais como requisitos necessários para a configuração estrutural do seu conceito, mas como características que merecem destaque, justamente por suas distintas funções, na configuração do que se deva entender como uma relação de emprego.
A pessoalidade caracteriza-se pelo fato de que o trabalho é humano, ou seja, prestado por um ser humano, e não por uma máquina ou um animal. Esse elemento característico, embora não seja suficiente para caracterizar a relação de emprego, haja vista estar presente em toda e qualquer relação de trabalho, exerce uma função fundamental no Direito do Trabalho. É que esse ramo do Direito adquire notas de particularidade a ponto de se tornar uma disciplina própria, justamente em razão da proteção dispensada à pessoa humana que trabalha, preceito presente, por exemplo, na própria constituição da Organização Internacional do Trabalho143. É em razão
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da presença de um trabalho humano, e da admissão de que esse trabalho seja de algum modo “comercializado”, que se constrói a doutrina trabalhista. O princípio da proteção encontra aqui sua razão de ser. É um ser humano que trabalha e esta é a razão última da necessidade de tutela. A pessoalidade, portanto, está na raiz, no fundamento, da existência mesma do Direito do Trabalho.
O reconhecimento do trabalhador como pessoa dá origem ao Direito do Trabalho. À noção de defesa da propriedade, presente na relação entre o senhor e o escravo, a era contemporânea opõe a necessidade de proteção da pessoa que trabalha, reconhecendo-a como cidadã, destinatária das normas jurídicas. Imperioso reconhecer, assim, que é da noção de liberdade, pressuposta em um sistema liberal de produção capitalista, que decorre a necessidade proteção ao sujeito que trabalha, justamente porque não mais o concebe como propriedade do tomador dos serviços (cuja proteção resumia-se à natural proteção à propriedade privada), mas sim como ser humano, capaz de intervir econômica, cultural e politicamente na sociedade em que se insere, fazendo parte, assim, de sua própria constituição.
A noção de que o sujeito que presta serviços em uma relação de trabalho é um ser humano, ao que denominamos pessoalidade, enseja o reconhecimento de uma série de direitos e deveres, o que faz com que alguns autores cheguem a mencioná- -lo como um princípio jurídico144. É que quando se reconhece ao trabalhador a sua dimensão humana, afastando-se a possibilidade de tratá-lo, por intermédio do trabalho que presta, como mera mercadoria, impõe-se o reconhecimento de sua dignidade.
Segundo Kant, filósofo moderno, ainda adotado pela doutrina jusfilosófica como parâmetro para a identificação da noção de dignidade, as coisas têm um preço, podendo, portanto, ser substituídas por seus equivalentes pecuniários, ao passo que o homem, seja individualmente considerado, ou em toda a coletividade, possui dignidade, o que faz com que seja insubstituível.
A constatação da humanidade, presente em cada homem, é o que leva Kant a formular o imperativo categórico, marca de sua filosofia moral, que, em uma de suas possíveis formulações determina: “Age de tal modo que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre como um fim ao mesmo tempo e nunca apenas como um meio”.
A aplicação de tal imperativo impõe que todo e qualquer trabalho seja dignificante para a pessoa que o presta e que o sujeito-trabalhador seja sempre tratado como um fim em si mesmo. Essa consideração impõe, certamente, várias consequências práticas, muitas delas simplesmente esquecidas na dinâmica das relações de trabalho. Não é à toa, ou mera coincidência, que os exemplos trabalhistas figuram entre os principais apresentados pelos jusfilósofos e doutrinadores que pensam e escrevem sobre direitos fundamentais e o respeito à dignidade humana.
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Conforme bem adverte Ribeiro de Vilhena, “o trabalho em si não é objeto de proteção”145, o que se protege é o ser humano que trabalha, admitindo-se a ideia de “proteção ao trabalho” tão somente no sentido de que tal expressão compreende a condição de incindibilidade da pessoa do trabalhador com a sua atividade, o trabalho.
A natureza intuitu personae do contrato de trabalho, amplamente vinculada pela doutrina ao requisito da pessoalidade indica a impossibilidade de substituição da pessoa do trabalhador no âmbito de uma mesma relação de emprego. Alguns...
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