Relação empregatícia doméstica e a EC n. 72/2013: Real avanço igualitário ou retórica político-legislativa?

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas109-123

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1. Introdução

A igualdade de direitos entre empregadas domésticas e empregadas celetistas é tema em voga, nos lares, na mídia e nas redes sociais.1 A aprovação da “PEC das domésticas” (Projeto de Emenda Constitucional n. 66/2012 convertida na Emenda Constitucional n. 72/2013) gera alvoroço. O principal motivo de polêmica decorre do fato desta medida legislativa afetar as casas (e os bolsos) da classe média e alta da sociedade brasileira, bem como as historicamente excluídas trabalhadoras domésticas.

O relatório da Organização Internacional do Trabalho, publicado em janeiro de 2013, a partir de dados de 117 países, indica que mundialmente existem 52,6 milhões de pessoas empregadas no trabalho doméstico. Só no Brasil são 7,2 milhões de trabalhadores domésticos. No entanto, ainda de acordo com a OIT, há uma dificuldade para recolher números e dados sobre uma ocupação que se realiza a portas fechadas. Segundo a OIT, o número poderia ser de até 100 milhões de pessoas no mundo (ANAmATRA, 2013).

Segundo a Senadora Lídice da mata (PSB/BA), Relatora do Parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania sobre a Proposta de Emenda à Constituição n. 66, de 2012:

Não é demais enfatizar, que, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, existem cerca de 7 milhões de trabalhadores domésticos. Desses, apenas um milhão deles têm carteira assinada. Já os dados da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas apontam que a classe quase duplicou em menos de dez anos. Segundo a entidade, o número, hoje, no País, chegaria a 9,1 milhões. Cerca de 80% desses trabalhadores são negros e 94% são mulheres.
Existem também dados preocupantes: 410 mil crianças estão no trabalho doméstico e 1,8 milhões desses trabalhadores ganham de zero a meio salário mínimo por mês (COmISSãO DE CONSTITUIçãO, JUSTIçA E CIDADANIA, 2012, adaptado).

Por levar em consideração o dado estatístico de que 94% dos trabalhadores domésticos existentes no Brasil são mulheres, emprega-se o referencial linguístico no gênero feminino (“trabalhadoras domésticas” e não trabalhadores domésticos), tal como Dutra (2008), inclusive para abarcar também os trabalhadores domésticos do sexo masculino, com vista da opção ideológica acolhida e do poder simbólico que a lingua-gem exerce no discurso.

Não se trata, propriamente, de evolução legislativa representada pela Emenda Constitucional n. 72 de 2013. Em

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verdade, trata-se de mais um marco normativo no sentido de ruptura com a história escravocrata do Brasil. Isto é, mais um passo no sentido de se reduzir o preconceito racial e contra a mulher (ainda que, até o momento, sentido apenas em termos formais).

O tratamento legal dispensado à doméstica pelo texto original da Constituição Federal de 1988 e pela legislação infraconstitucional era diferenciado, reverberando o forte caráter restritivo de direitos trabalhistas e previdenciários em contraponto aos demais empregados urbanos e rurais.

As principais justificativas para tal diferenciação norma-tiva era sustentada nas peculiaridades do trabalho doméstico, especialmente na suposta não lucratividade e na conjecturada existência de laços maiores de afetividade do que econômicos nesta relação de trabalho, que é, em essência, realizado no âmbito residencial.

Certo é que a relação empregatícia doméstica sempre foi marcada pela ambiguidade, pela mescla de solidariedade com exploração. Direitos lhes foram formalmente negados, sob a justificativa – desculpa – de maior pessoalidade na relação.

Esta “não lucratividade”, contudo, é que propicia uma pessoa física ou membros da família trabalharem fora, representando a emancipação de mulheres brancas a custo das negras. Além disso, o argumento de “maiores laços de afetividade” é frágil, claramente incapaz de justificar a restrição da proteção legal (aliás, de nítido condão discriminatório).

Sustenta-se, como segurança, o ponto de vista de que a Carta Constitucional de 1988 e a legislação infraconstitucional brasileira perpetraram discriminação às trabalhadoras domésticas, já que esta classe de trabalhadoras (propositalmente no feminino) é predominantemente feminina e negra, além da atividade desempenhada possuem profundas raízes na história de escravidão brasileira. Ora, a predominância negra nesta tarefa não é uma simples coincidência, mas sim um consectário lógico da exclusão social a que foram submetidos os afrodescendentes após a escravidão, restando-lhes não outras opções senão a de continuar desempenhando as atividades que já realizavam quando escravos (DUTRA, 2008, p. 27).2Antes mesmo da EC n. 72/13, vozes isoladas já denunciavam a discriminação ilegítima do próprio texto constitucional em relação às empregadas domésticas, posto que, a partir da compreensão de que a produção jurídica (inclusive a constitucional) reflete a ideologia dominante na sociedade em determinado momento histórico (in casu, machista e racista), flagrante a violação do princípio da igualdade. Disso advém o perfeito cabimento da tese de normas constitucionais inconstitucionais, de Otto Bachok (1994).

Bandeira de mello (2001, p. 9), discorrendo sobre o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, assevera:

Rezam as constituições – e a brasileira estabelece no art. 5º, caputque todos são iguais perante a lei. Entende-se, em concorde unanimidade, que o alcance do princípio não se restringe a nivelar os cidadãos diante da norma legal posta, mas que a própria lei não pode ser editada em desconformidade com a isonomia.

No presente texto, deste modo, objetiva-se discorrer sobre a relação empregatícia doméstica. Seu histórico normativo regulamentador, seus sujeitos, seus elementos fático-jurídicos gerais e especiais. Almeja-se arrazoar sobre os pontos e contrapontos implicados pela Emenda Constitucional 72/2013, arrolando velhos e novos direitos assegurados às trabalhadoras domésticas. Por via oblíqua, anseia-se por retirar os véus de tão complexa e contraditória relação, mostrando as nuances escondidas de forma a vislumbrar possíveis caminhos normativo-regulamentares de tão importante alteração constitucional.

2. Regulamentação da relação empregatícia doméstica: histórico normativo

Regra geral, a Consolidação das Leis do Trabalho não se aplica às domésticas3. Este é o sentido expresso em 1943, no art. 7º, “a”, da CLT:

Art. 7º/CLT. Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam:

a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas. mas antes disto, a Lei áurea é considerada marco inicial de referência não somente do trabalho doméstico, mas da própria história do Direito do Trabalho brasileiro, muito embora não tenha qualquer caráter justrabalhista. Ela constituiu diploma, tanto que eliminou da ordem sociojurídica a relação de produção incompatível com o ramo justrabalhista (a escravidão) como estimulou a incorporação prática de nova forma de utilização da força de trabalho (a relação de emprego). Segundo Delgado (2008, p. 106), “trata-se, apenas, de reconhecer que, nesse período anterior, marcado por uma economia do tipo rural e por relações de produção escravistas, não restava espaço significativo para o florescimento das condições viabilizadoras do ramo justrabalhista”.

De 1947 até 1972, por quase trinta anos, às empregadas domésticas não eram asseguradas tampouco pelo direito ao salário mínimo e a inclusão previdenciária, voltando a terem regidos seus ofícios pelo Código Civil de 1916, como locação de serviços. O entendimento jurisprudencial e doutrinário à época foi no sentido de não ter sido sequer aplicado o Decreto n. 3.078/41 (que cuidava da relação empregatícia doméstica), em face da falta de expedição de regulamento condicio-

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nador de sua eficácia. Posteriormente, com a promulgação da CLT, a “inteligência” foi que a CLT havia revogado todas as normas anteriores de proteção ao trabalho, inclusive este Decreto: verdadeiro retrocesso social!

Foi editada, em 1972, a Lei n. 5.859 (regulamentada pelo Decreto n. 71.885/1973) que dispõe sobre a profissão de empregado doméstico e dá outras providências, sendo alterada, posteriormente, pela Lei n. 10.208 (23.03.2001) e Lei n.
11.324 (19.06.2006).

Em seu texto original, a Lei n. 5.859/1972 previa apenas três direitos aos domésticos: a) anotação de Carteira de Trabalho e Previdência Social; b) férias anuais remuneradas de 20 dias úteis; c) inscrição como segurado obrigatório da previdência social.

A Constituição Federal, em 1988, no parágrafo único do art. 7º, estendeu o rol de direitos das domésticas, contudo, sem lhes atribuir tratamento equivalente com os demais empregados urbanos e rurais (lhes foram conferidos apenas nove direitos dos trinta e quatro previstos nos incisos do art. 7º da CF/1988). Note-se que para os avulsos, dada a sua...

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