Regime jurídico de sociedade de economia mista concessionária de serviço público e direitos dos contratantes particulares e acionistas

AutorLeandro Bittencourt Adiers
Páginas224-243

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I - Introdução
  1. A consulta em questão origina-se de inconciliáveis dissídios jurisprudenciais1 entre várias Câmaras do TJRS, envolvendo a conceituação e os reflexos de negócios jurídicos praticados entre Sociedade de

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    Economia Mista Concessionária de Serviço Público de Telecomunicações e particulares, que aportavam capital àquela no intuito de tornarem-se aptos à obtenção de serviço público de telecomunicações de forma individualizada.

  2. O ponto controvertido centra-se na incorreta retribuição acionária efetuada pela concessionária. Os particulares entendem que a retribuição deveria ter sido feita em conformidade com a legislação societária, ou seja: deveria ter sido procedida a divisão do capital integralizado pelo valor patrimonial das ações da concessionária apurado no último balanço do exercício social anterior e, desta forma, seria obtido o número de ações que deveriam ser emitidas e subscritas em favor do aderente.

  3. O procedimento supra foi adotado com relação a uma parte dos acionistas; outros, porém, somente tiveram suas ações emitidas e subscritas no exercício social seguinte àquele em que procederam a integrali-zação do capital. Apurado, no final daquele exercício, um valor patrimonial maior do que o vigente no exercício em que se deu a capitalização, ao efetuar-se o cálculo da retribuição acionária, foram emitidas e subscritas menos ações do que teriam sido se procedida a emissão e subscrição na mesma competência.

  4. A concessionária justifica seu proceder com base em Portaria Ministerial, que lhe autorizaria a proceder as capitalizações em um período de até doze meses. Derivando o procedimento de norma impositi va para a concessionária, seu proceder seria legítimo, não merecendo prosperar as pretensões dos acionistas que receberam lotes de ações a menor.

  5. Nas próximas páginas, trataremos de traçar as características jurídicas dos negócios pactuados, as hipóteses e os limites da interferência do Estado na economia e nos pactos, os reflexos da submissão da concessionária aos princípios que regem a administração pública e às leis societárias, o interesse público e a constituição como norte da legalidade e legitimidade dos atos normativos e administrativos, amparados em sólida base hermenêutica. Ao fim, restará demonstrado que a incidência das normas de direito público, antes de afastar a pretensão dos acionistas, lhes ampara de forma conclusiva e definitiva.

II - A análise da questão
  1. Através de adesão aos chamados Contratos de Participação Financeira, todo o cidadão que pretendesse acesso a uma linha telefónica, bem de interesse social, vinculava-se com as empresas de Economia Mista Concessionárias de Serviço Público de Telecomunicações. Paralelamente ao acesso ao serviço público de telefonia, via adesão a contrato autorizado e regulamentado pela Administração, o aderente era compelido a subscrever aumento de capital da concessionária, sendo contratualmente cominada uma retribuição acionária.

  2. Os contratos pactuados pelas concessionárias de serviços públicos sofrem limites, cláusulas e condições impostas pelo Poder Público, o qual disciplina os pactos e limita a autonomia das partes vinculadas.2 Há uma clara intervenção constitutiva por parte da Administração, do qual deflui que para a própria validade do vínculo, exige-se que o ajuste seja formalizado dentro das exigências legais, devendo também o adim-

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    plemento do pacto ser feito com estrita observância daquelas exigências.3

  3. A concessão, exploração e expansão das atividades de telefonia, como visto, não estão submetidas a interesses meramente privados, ou seja, as disposições inerentes a estes assuntos refogem ao discipli-namento pela simples via volitiva, harmonizando-se com o interesse público que se sobressai pela regulamentação.

  4. Marcello Caetano4 enfatiza que, apesar de nos contratos administrativos ocorrer a sujeição de ambas as partes ao interesse público: contratante particular e público, "a vinculação característica do contrato existe nas cláusulas que determinam o objecto e se destinam a preservar e remunerar o interesse privado chamado a colaborar na realização do fim administrativo, e que criam para o contraente público o dever de assegurar o equilíbrio financeiro inicial nas condições estipuladas, ou nas novas condições criadas por actos do Poder".

  5. Insinuando o princípio da proporcionalidade como critério de aferição da validade do ato administrativo, aduz o autor que é da índole da atividade administrativa o adaptar-se às exigências do interesse público, sujeitando os contratantes ao "poder conferido à Administração de fazer nas prestações contratuais as modificações estritamente exigidas pelo interesse público".

  6. Juarez Freitas5 leciona que o administrador, ao praticar ato vinculado, fica totalmente adstrito à letra da lei e que, mesmo nos campos em que lhe é permitida dis-cricionariedade, fica o administrador obrigado à motivação do ato, em conformidade com os princípios que regem a Administração e, se for o caso, com as leis e regulamentos que disciplinam a matéria.

  7. Inegável a lógica do raciocínio, uma vez que tais limites são essenciais para caracterização do regime democrático sob império da lei, que encontra negação no arbítrio. Partindo-se da ideia de supremacia e unidade da Constituição, do Ordenamento Jurídico como um sistema coerente e hierarquicamente estruturado; de que os Poderes encontram-se divididos, com com-petências distintas, havendo vinculação de todos, no Estado Democrático de Direito, à efetivação e concretização dos princípios e valores maiores insculpidos na Constituição,6 norteados pelos Direitos e Garantias Individuais e Coletivos, não é razoável visualizar a existência de interesse público fora dos limites legalmente estabelecidos, ou que implique sacrifícios desproporcionais e sem razoável justificativa.7

  8. Neste sentido, o professor Fábio Konder Comparato,8 ao dissertar acerca do princípio da proporcionalidade, citando Hartmunt Maurer, ensina que as medidas restritivas das liberdades, devem ser substancialmente apropriadas, ou seja, proporcionais aos fins visados. O jurista informa que na doutrina administrativa alemã foram explicitados três critérios cumulativos para o reconhecimento da proporcionalidade no exercício do poder:

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    1. "a medida somente é apropriada, quando ela pode, em regra, alcançar.o resultado visado";

    2. "a medida apropriada somente é necessária, quando não existe outro meio adequado à disposição, o qual seja menos prejudicial aos atingidos e à coletividade em geral";

    3. "a medida necessária somente é proporcional quando não tenha nenhuma outra relação com o resultado visado".

  9. Gilmar Ferreira Mendes9 refere que um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito). O pressuposto da adequação (geeignetheit) exige que as medidas interventivas adotadas mostrem-se aptas a atingir os objetivos pretendidos. O requisito da necessidade ou da exigibilidade (Notwendigkeit oder Erforderlichkeii) significa que nenhum meio menos gravoso para,o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos10.

  10. Caio Tácito11 acrescenta que o STF tem reiteradamente acolhido os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, repelindo a ilegalidade de atos nos quais a discrepância entre o motivo e o fim evidencia a falta de congruência ou adequação, tornando excessivo e desarrazoado o obje-to da manifestação do legislador ou do administrador, em detrimento de direito ou liberdade.

  11. Não diverge o ensinamento de Fábio Konder Comparato,12 o qual refere que o Tribunal Constitucional alemão referendou a exigência de proporcionalidade nas medidas de restrição das liberdades fundamentais como mero corolário do princípio do Estado de Direito, entendendo-o como elemento substancial intrínseco de controle de constitucionalidade das normas.

  12. O professor Juarez Freitas13 enfatiza que o juízo de proporcionalidade aparece, sobremodo, no debate dos direitos fundamentais, ocorrendo violação ao princípio quando, tendo dois valores legítimos a sopesar, o administrador prioriza um em detrimento ou sacrifício exagerado do outro. Realçando a técnica da ponderação de interesses14 na aplicação do princípio da proporcionalidade, pontifica o estudioso que "mais do que a vedação de excessos, exige a ponderação e a racionalidade prudente do administrador e de quem controle os seus atos, contratos e procedimentos" ressaltando que "o administrador público (...) está obrigado a sacrificar o mínimo para preservar o máximo de direitos".

  13. Na lição de Caio Tácito15 "o diagnóstico de compatibilidade da substância

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    dos atos administrativos, com a finalidade legal a que são adstritos, conduz a que o exame de sua validade não se contenha nos aspectos exteriores da manifestação de vontade. O controle de legalidade evoluiu para verificar a existência real dos motivos determinantes da decisão administrativa, a importar no acesso à motivação expressa ou implícita do ato administrativo. A motivação é, em certos atos, exigência legal de sua validade. Mesmo, porém, quando não exigida, cabe ao intérprete, atento aos antecedentes que condicionam a emissão do ato de vontade do administrador, verificar se os motivos são verdadeiros e aptos a produzir o resultado. E, mais ainda, o exame da motivação do ato permitirá ao controle de legalidade avalizar se o nexo causal entre os motivos e o resultado do ato administrativo atende a dois...

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