Do regime geral do comércio eletrónico no ordenamento jurídico português

AutorMarisa Catarina da Conceição Dinis
CargoDoutora em Direito e Professora-Adjunta no Instituto Politécnico de Leiria, Portugal
Páginas145-184

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I Considerações iniciais

Quando, em 1927, Fernando Pessoa criou o slogan "primeiro estranhase, depois entranha-se", a propósito da publicidade para a coca-cola, não imaginava que acabara de dar vida a um adágio popular que, de tantas vezes usado, não raramente, lhe são esquecidas as origens. A verdade é que, ao longo destes 85 anos, o ditado tem tido capacidade para, de forma sintética, traduzir o sentimento social que se tem verificado relativamente às inúmeras inovações tecnológicas que têm perpassado a nossa (e outras) sociedade(s). De fato, encontra-se atualmente "entranhada" no léxico corrente uma série de conceitos, inerentes à vida virtual e digital, que bem demonstra o quão submergidos nos encontramos na chamada sociedade da informação. Desde 1969, com Alain Touraine, muitos foram os autores que construíram e desconstruíram este conceito1. Apontemos, no entanto, Castells2, que, a propósito, menciona que "a sociedade da informação é um conceito utilizado para descrever uma sociedade e uma economia que faz o melhor uso possível das Tecnologias de Informação e Comunicação no sentido de lidar com a informação, e que toma esta como elemento central de toda a atividade humana". Do dito extrai-se facilmente que é inegável que, no momento atual, vivemos numa sociedade da informação e que nos fazemos rodear das novas (cada vez menos) tecnologias em praticamente todos os aspectos da nossa vida quotidiana. Significa isto que as tecnologias da informação e da comunicação intervêm de forma sobejamente ativa nas nossas relações diárias independentemente de serem ou não profissionais. No epicentro destas novas tecnologias da informação e da comunicação encontra-se, por certo, a internet, que, como é sabido, se apresenta hoje como uma ferramenta de trabalho, de lazer e de educação cada vez mais comum entre os cidadãos e, por isso mesmo, cada vez menos singular. Apraz-nos recorrer, novamente, ao adágio popular com que iniciamos este texto: "primeiro estranha-se, depois entranha-se".

Com o advento da internet3o mundo resume-se a uma aldeia ainda mais global do que a pensada por Percy Wyndham Lewis, no seu America and the Cosmic Man4. Desta evidência resulta uma outra: o desenvolvimento da sociedade da informação e da comunicação, ancorado sobretudo na massiva utilização da internet, permite uma multiplicidade de relações a cujas consequências o direito não pode quedar-se alheio. De entre estas relações juridicamente relevantes destacamos, por se tratar do tema ora em análise, as decorrentes do chamado comércio eletrónico. O presente texto tem precisamente por objeto a análise do quadro legislativo que vigora no ordenamento jurídico português

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a respeito do comércio eletrónico. Não temos, naturalmente, a veleidade de esgotar os temas jurídicos que resultam das distintivas interpretações do referido quadro legislativo, mas tão somente apresentar os traços gerais que governam juridicamente esta matéria. Trata-se, pois, de um texto mais expositivo do que crítico e mais empírico do que teórico. Porém, e apesar de votarmos ao abandono a maior parte das querelas doutrinais, sempre as chamaremos à colação aqui e além.

Ainda antes de iniciarmos a nossa incursão no percurso jurídico do comércio eletrónico, não se nos afigura despiciendo proceder a uma análise estatística cujo móbil será o de demonstrar a importância real e prática da matéria aqui em referência. Para o efeito, recorremos ao "Inquérito à

Utilização de Tecnologias da Informação e da Comunicação pelas Famílias 2011" recentemente realizado pela UMIC - Agência para a Sociedade do Conhecimento, IP5. Deste inquérito resulta que, em 2011, "64% dos agregados domésticos dispõem de acesso a computador em casa e 58% têm acesso à internet. Entre estes, 98% (57% do total de agregados) dispõem de internet em banda larga. No mesmo período, 58% dos indivíduos entre os 16 e os 74 anos utilizam computador, 55% acedem à internet e 10% efetuaram encomendas através da internet nos três meses anteriores ao inquérito". Destes dados estatísticos podemos concluir que a percentagem de agregados familiares que, no âmbito da amostra em estudo, efetuou encomendas através da internet e consequentemente interveio em relações juridicamente relevantes (em particular em matéria de comércio eletrónico) é significativa. Se fizermos aplicar esta estatística à globalidade dos agregados familiares em Portugal facilmente percebemos a importância numérica que esta matéria reveste. Note-se, no entanto, que os dados mencionados são apenas relativos aos agregados familiares e não englobam, por isso, as transações comerciais. Note-se igualmente que é neste último terreno que o comércio eletrónico assume a sua maior expressão. De fato, estima-se que as transações eletrónicas entre empresas correspondam a cerca de 90% do comércio eletrónico em Portugal. Ao dito, acrescem ainda as relações eletrónicas levadas a cabo com a administração pública. Esta última área sofreu um expressivo desenvolvimento nos últimos anos e hoje representa uma significativa fatia das relações eletrónicas efetuadas.

De fato, estima-se que as transações eletrónicas entre empresas correspondam a cerca de 90% do comércio eletrónico em Portugal

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Também o estudo Netpanel da Marktest aponta para números surpreendentes: em 2011, cerca de 4,169 milhões de portugueses navegaram em sites de comércio eletrónico e visitaram cerca de 777 milhões de páginas de lojas virtuais6.

Vejam-se ainda os dados do Barómetro ACEPI/Netsonda, divulgados pela Associação do Comércio Eletrónico e da Publicidade Interativa (ACEPI), que demonstram que, no ano de 2011, 40% das empresas inquiridas registou um aumento nas vendas online superior a 20% (tendo chegado aos 100% em 16% das empresas objeto do estudo)7.

Um olhar sobre a realidade europeia conduz-nos ao estudo Consumer behaviour in a digital environment, encomendado pelo Parlamento Europeu, que revela que cerca de 40% dos europeus fizeram compras online durante o ano de 20108.

Independentemente dos dados supramencionados, o certo é que atualmente as empresas não podem descurar esta área de negócio. Referiase, no Diário Económico de 29 de fevereiro de 2012, que das cinco boas práticas de marketing para um negócio crescer consta a presença na internet: "as empresas que hoje não tenham uma presença online não existem. A internet é a primeira fonte de informação que a maioria das pessoas procura, e empresas offline estão a desperdiçar, logo à partida, um número substancial de clientes".

São, na verdade, inegáveis as vantagens que se reconhecem, tanto do ponto de vista do consumidor, como do ponto de vista das empresas, existir à utilização do comércio eletrónico.

Apontamos, desde logo, o acesso ao mercado global, que, especialmente no que tange a um país como Portugal, apresenta uma relevância tremenda. Efetivamente, não podemos deixar de recordar que a localização geográfica de Portugal, como nação mais a ocidente do continente europeu e confinante apenas com Espanha, tem vindo a condicionar o desenvolvimento das transações transfronteiriças, que, demasiadas vezes, esbarram nos limites naturais e geográficos. O comércio eletrónico elimina muitas destas barreiras geográficas ao disponibilizar no visor do computador (telemóvel ou outra ferramenta com acesso à internet) verdadeiros centros comerciais virtuais espalhados pelos quatro cantos deste mundo redondo. Trata-se, sem dúvida, de uma vantagem para aqueles que pretendem adquirir produtos e/ou serviços nem sempre de fácil acesso e, por outro lado, permitem às empresas colocarem os seus produtos na montra do mundo, sem custos significativos nem contratempos jurídicos e administrativos adicionais.

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Outra vantagem comumente associada ao comércio eletrónico consubstancia-se na possibilidade de os serviços se encontrarem permanentemente operacionais ajustando-se assim à disponibilidade horária de cada um, em cada momento e em qualquer lugar (anytime, anywhere).

Na ótica das empresas, é de salientar que a comercialização eletrónica de produtos e serviços permite reduzir os custos atinentes à gestão e funcionamento dos tradicionais estabelecimentos comerciais, o que poderá, inclusivamente, ter uma implicação direta na redução do preço final ou no aumento dos lucros.

Se fisicamente o mercado global não é acessível a todas as empresas, tornando-se praticamente inacessível às pequenas e uma miragem para as novas empresas, o mercado virtual, pelas características anteriormente apontadas, representa mais oportunidades para estas empresas. Desta forma, o leque de produtos e serviços oferecidos é maior e tendencialmente com melhor qualidade e preços mais competitivos.

Não se trata, porém, de um sistema isento de críticas. Nesta sede, são usualmente apontadas como principais desvantagens do comércio eletrónico o fato de ser totalmente dependente das tecnologias da informação e da comunicação; são, na verdade, estas pressuposto de existência daquele e, por isto, trata-se de uma contrariedade que não pode efetivamente ser afastada. O comércio eletrónico é uma das consequências das novas tecnologias. Pode, no entanto, ser minimizada com a crescente evolução das tecnologias da comunicação e da informação que, hoje em dia, se encontram disponíveis em praticamente todo o lado.

Pese embora o enorme esforço que se tem feito nesta área, a utilização das tecnologias da informação e da comunicação ainda não está completamente acessível a todas as pessoas: umas porque portadoras de deficiências físicas (cegueira, por exemplo); outras porque não...

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