Reformulações do Século XX

AutorJônatas Luiz Moreira de Paula
Ocupação do AutorAdvogado. Mestre (UEL), Doutor (UFPR) e Pós-Doutor (Universidade de Coimbra). Professor Titular e Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAR (Universidade Paranaense)
Páginas329-439

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1. Crise na Ciência Política

O século XIX se finda com o início do processo de desmantelamento das colônias, que, no entanto, somente se encerrará ao final da 2ª Guerra Mundial. Pode-se dizer a liquidação definitiva do Império Espanhol, porém com a antiga metrópole mantendo laços culturais com as suas ex-colônias; a ruína do Império Britânico, com a perda da África do Sul, Índia e Pasquitão; e a fragmentação da África em inúmeros países, que obtiveram autonomia em relação aos antigos colonizadores, como Portugal, França e Holanda. Mas o desmantelamento não pôde impedir que as nações recém independentes continuassem, de alguma forma, vassalas políticas dos colonizadores.1Também no início do século XX vê-se um grande incremento da indus-trialização, de tal sorte a absorver um número maior de pessoas nessa atividade, e daí resultando num acréscimo na atividade produtiva e na produção e procura por produtos de consumo. Estar-se-ia inaugurando um novo estilo de vida, que mais tarde resultaria numa classe social – a dos consumidores. Isso resultará numa interação entre política e economia, seja do ponto de vista do socialismo, seja do ponto de vista do capitalismo. Também significará uma maior politização da vida em geral, porque em todos os espaços sociais estará a política sendo objeto de discussão ou até mesmo, por meio dela, buscar o poder. Observa-se uma clara integração entre Estado, isto é, daqueles que ocupam o poder, que se procura expandir aos setores econômicos, e o poderio econômico, que se vincula à autoridade política.2Mas o “boom” econômico que se verifica não elimina velhos problemas, como o da inflação e da concentração de renda.

Por outro lado, na época, a Europa apresentava altos índices de crescimento populacional. Noticia a história que a taxa de crescimento mundial entre 1900 e 1914 é superior a de 1850 e 1900, e a Europa surge como local de alta

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expansão populacional. Conseqüentemente, a emigração européia permanece como a mais importante do mundo e contribui para consolidar e desenvolver os novos Estados “brancos” que surgiram além-mar, como os Estados Unidos, Argentina e Brasil.3Mas, em sentido contrário, algumas nações, como a França, Alemanha e Estados Unidos, por exibir riqueza, tornou-se atrativo de mão de obra de países pobres, recebendo, assim, grande foco de imigração de povos vizinhos ou oriundos de suas colônias.4De qualquer forma, tanto na Europa como na América, começa a iniciar o deslocamento populacional para as cidades, fenômeno que marcará a geografia humana na centúria.

O século XX desenvolve suas idéias políticas intensamente entre guerras – comunismo na extinta URSS, o totalitarismo na URSS, Itália e na Alemanha – e desemboca após a 2ª Guerra, com a disputa entre liberalismo e marxismo durante a “Guerra Fria”, o medo do holocausto nuclear, para encerrar a centúria com três grandes desafios: a paz entre povos árabes e judeus/ocidentais, culminando em guerras e no medo do terror; a miséria dos países do Terceiro Mundo; e a globalização dos povos e das nações, advinda da evolução tecnológica de uma sociedade massificada, protagonizada pela cultura do consumo, computador pessoal e pela internet.

Segundo Christian Ruby, no século XX, o conjunto da filosofia política anterior constitui uma herança intelectual sem testamento, no seio da qual, várias interpretações permaneceram permitidas para um filósofo que não tem mais nada do herói que salva o mundo. Isso implica numa completa revisão dos instrumentos de análise.5E nisso concluem Mosca e Bouthoul: malgradas as convulsões, não se viu criação política no século XX.6E de fato o século XX, visto a partir do início do 3° Milênio, marca o fim da “era de idéias”, para ingressar na “era da tecnologia”, nas suas mais variadas aplicações. Os grandes embates políticos vistos no período – totalitarismo versus democracia; e marxismo vesus liberalismo – não são nada mais derivações de idéias surgidas nos séculos anteriores. O século XX não foi uma época de criação, mas de aplicação técnica.

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A análise de Ruby mostra-se pertinente. Pois, se o século XX não se apresentou como uma “era de idéias” e sim “de técnicas”, o papel do filósofo se restringe muito, não mais se tornando o herói do mundo. Essa observação se agrava ainda mais no século XXI, onde o reino da burocracia e do mundo informatizado comprime a atuação filosófica e política.

Também não se pode olvidar que as idéias políticas engendradas nos períodos renascentista, empirista, racionalista e contratualismo, propunham a paz intermediada pelo Estado e pelo Direito. Mas no século XX viu-se que paz e a liberdade somente poderiam advir pela guerra. As lições das grandes guerras e, sobretudo, das guerras setorizadas – por exemplo, guerra da Coréia, Vietnã, Líbano, Malvinas, Granada, Iraque – bem mostraram essa situação, ainda mais que o discurso justificante para o conflito era a busca da democracia. Essa situação paradoxa ainda permanece no século XXI, como se vê da intervenção norte-americana no Afeganistão e no Iraque (nesta com auxílio de nações aliadas), a guisa de combater o terrorismo e justificado na democratização desses países.

Por isso, sentencia Ruby que a releitura de obras filosóficas publicadas desde a 1ª Guerra Mundial testemunha uma erosão progressiva da condição da ação política. Os cidadãos desinteressam-se cada vez mais pela dimensão política da Cidade; os políticos, por seu lado, metamorfoseiam a política em simples administração; a preocupação com a relação social e com o edifício propriamente político torna-se tanto mais fraco à medida que a consciência de realizar a história na política e pela própria política (a consciência) se dissolve.7

2. Totalitarismo
2.1. Introdução

O Estado Totalitário, ensina Hannah Arendt, não é uma estrutura monolítica, porque ele coexiste a partir de uma dupla autoridade: Estado e partido. Essa relação foi demasiadamente vista na URSS stalinista e na Alemanha do Terceiro Reich, sem perder de vista a Itália fascista. A relação entre Estado e partido – duas fontes de autoridade –, é, respectivamente, uma relação entre uma autoridade aparente e uma autoridade real. E aproveitando-se do amorfismo do Estado – o governo bolchevique é um exemplo de uma completa ausência de sistema – percebe-se que a máquina governamental do regime totalitário como fachada importante, a esconder e a disfarçar o verdadeiro poder do partido.8

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A imposição de um partido único, diz Franz Neumann, se justifica porque é necessário diante da ineficácia dos tradicionais instrumentos de coação para controlar uma sociedade industrial. Por isso, o partido monopolista é um instrumento flexível que fornece toda a força para controlar a máquina do Estado e a sociedade e para se desincumbir da gigantesca tarefa de cimentar os elementos autoritários dentro da sociedade. Além disso, o partido permitiria a assunção ao poder e manutenção, ainda que aparente, de um sistema democrático. Em outras palavras, o partido pratica rituais democráticos, embora despido de sua essência.9A relação entre o poder ostensivo e o poder real resultou em governos fortes, como de Stálin, Hitler e Mussolini. Isso significou absoluto controle do cidadão, por meio de suas atividades pessoais, profissionais e liberdades públicas; e controle da sociedade, por meio da informação, da propaganda, dos órgãos de Estado, como a polícia. E a ordem jurídica serviu de instrumento de dominação, pois, conforme famoso postulado de Hitler, o Estado total não deve reconhecer qualquer diferença entre a lei e a ética.

O totalitarismo é uma doutrina política que repudia a democracia aritmética, pois, pontualmente, acreditava ser um absurdo conceder o mesmo direito de voto ao imbecil e ao homem inteligente, ao fraco e ao forte. O totalitarismo exalta a estética do homem (governante) forte, do laconismo militar, que veda e evita discussões ociosas. O totalitarismo é a doutrina política que contempla o partido único que se apodera do Estado e o governa à sua vontade, não tolerando qualquer oposição nem fora e nem dentro de sua ação partidária, o que resulta numa imposição de disciplina partidária. No totalitarismo, o governante era o intermediário entre a nação e a História; o chefe está destinado a “fazer História” e não é responsável senão para com ela. E assim, em torno do chefe, há toda uma construção mística.10O Estado totalitário é o senhor do Direito e da Moral; somente existem os direitos que o Estado proclamar ter; assim, as religiões ficavam relegadas a um segundo plano, pois foram consideradas conservadoras de valores morais e das doutrinas dos direitos do homem e do direito natural. O terror é exercido pelo partido dominante, em nome da...

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