O reformismo político pombalino e seus reflexos na experiência jurídica da colônia brasileira

AutorJoão Vitor Loureiro
CargoGraduando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
1. Luzes no ocidente O Estado moderno e o despotismo esclarecido

Os últimos anos nos quais a chama do Antigo Regime ainda permanecia acesa pela Europa Ocidental marcaram-se por um sem-número de confrontos ideológicos, que desafiavam as instituições políticas então vigentes e que confluíram em concepções de governo marcadas por hibridismos e pragmatismos. O florescimento da crítica trazida pelo pensamento iluminista ao Estado moderno fez resultar em experiências de modelos políticos em diversas nações européias que assumiram cursos históricos marcados pela diversidade1 e que, no entanto, apresentavam consideráveis semelhanças entre si.

Com isto, a historiografia tradicional consagrou a expressão despotismo esclarecido para designar, de modo geral, as muitas formas de governo que, situadas em meio a um período que anunciava o fim do Estado Absoluto, a gênese do Estado de Direito, o triunfo do Liberalismo e a dissolução do Colonialismo nas Américas, constituíram modelos de conciliação institucional e administração tributários de ideais como anticlericalismo, progresso, humanismo e racionalismo.2

Ressalte-se, ainda, que a marca da centralização política de tal regime repousava na figura de um rei, ocupante da posição soberana de monarca absoluto. Tal monarca, por sua vez, mobilizava um corpo de ministros conselheiros, confiados à modernização do Estado, tendo em vista os ideais-anseios de uma burguesia progressivamente desperta a seu fortalecimento político. Assim, tais governos buscavam um aparente arranjo de forças, conciliando ideais nascentes em meio a novos grupos sociais a experiências políticas reformistas.3 É esse Estado contraditório e mutante, palco do antagonismo que se interpõem poder e liberdade, a que alguns historiadores deram o nome de Estado barroco.4 Um Estado que induz o leitor a compará-lo ao homem-artista setecentista, incoerente e ideologicamente dividido entre as coisas espirituais e temporais de seu tempo.

O que se verifica, em tal período, é que a aparente incoerência entre ideais iluministas e monarquia absoluta revelava-se como uma adequação pragmática às transformações sociais de então. Exemplo maior desse período se estampa no governo de D. José I, rei de Portugal (1750-1777), aconselhado por Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal e Conde de Oeiras5. Seu governo, marcado por inúmeras reformas políticas, foi capaz de pôr em marcha a modernização do Reino Português às custas da exploração mercantilista e de uma ferrenha política colonial, tendente à unificação administrativa6, em sua principal colônia, o Brasil.

Personalidade de extrema relevância à história portuguesa e à história colonial brasileira, o Secretário dos Negócios Estrangeiros e da Guerra de D. José I foi caracterizado por Antônio Ribeiro dos Santos, um dos colaboradores mais próximos de Pombal na área da reforma educacional e eclesiástica, como uma figura que “quis civilizar a nação e, ao mesmo tempo, elevar o poder real do despotismo.”7 Ou ainda, segundo outra descrição, como uma personalidade em que tudo “se cumpriu à custa de repentes e assomos, ímpetos e explosões.”8

É pela vontade e braços dessa espécie de ‘super ministro’ que Portugal passa a viver um período de reformas no sentido de sua modernização: Lisboa é reconstruída após o terremoto de 1755, a escravidão é abolida no Reino, as velhas tradições escolásticas de ensino são substituídas e reformuladas, a indústria é incentivada, o Tribunal de Inquisição torna-se subordinado ao Estado, suprimem-se as perseguições aos “cristãos-novos”9. Porém, há que se destacar a existência de uma capa de aparências a revestir o período pombalino, progressivamente rompida à medida que novas políticas iam fazendo o governo de D. José I abandonar uma administração organizada exclusivamente em torno de favorecimentos pessoais e privilégios, em direção a uma administração organizada em torno de méritos pessoais e fidelidade política, e marcada por uma sensível centralização das decisões de governo.10

E é pela mesma vontade e pelos mesmos braços que o Marquês concebe uma nova política colonial ao Brasil. O preço das reformas modernizadoras em Portugal a ser pago seria o engendrar de uma total reorganização administrativa das colônias, e especialmente da colônia americana que, àquele momento, havia descoberto o eldorado das Minas Geraes e vivia a corrida do ouro e a marcha da interiorização territorial, prometendo vultosos lucros à metrópole. Valores feito a liberdade, tão propagados pelo ideário ilustracionista e em franca aterrissagem no horizonte europeu da segunda metade do século XVIII, pareciam estar distantes da realidade brasileira de então. Ainda que as políticas pombalinas tenham atuado no sentido de uniformizar a administração e proporcionar uma maior coordenação das atividades coloniais, verifica-se largo abismo entre o Brasil e Portugal de tal período e, especialmente, entre o perseguido pela vontade do governante e o efetivamente praticado, conforme ressalta HESPANHA:

Mesmo quando - como acontece no período pombalino -, no plano da teoria política, já na Europa e no Reino se propõe como ideal um governo dominado pelo princípio da unidade e da disciplina, as dificuldades da sua realização, mesmo na metrópole, são imensas. Pela simples razão de que se tratava de mudar, radicalmente, concepções políticas ou, simplesmente, maneiras espontâneas de pensar e de organizar, que vinham moldando as mentalidades desde há séculos.11

Aparentemente, esse repensar da política colonial portuguesa no Brasil introduziu noções completamente alheias aos domínios econômicos, jurídicos, políticos e culturais até então constituídos; jamais se havia visto uma presença tão marcante da metrópole nas relações individuais, nas relações de comércio, nas relações de ocupação territorial, de educação e tutela de indígenas, jamais se havia visto, enfim, o tamanho do Estado12 e a abrangência do Direito em seu aspecto objetivo. Ousando dizer que, em tal período, introduz-se no Brasil a idéia de Direito atarraxada - a seu próprio modo, apanágio brasileiro - à própria concepção de Estado.

Porém, a dimensão que alcança o reformismo pombalino na colônia somente pode ser considerada diversa à experiência até então constituída se observado sob certas restrições. Não há uma ruptura completa dos padrões de organização político-administrativa da colônia, antes de tudo, o destaque do governo está concentrado em esforços fiscalistas de arrecadação, no claro intuito de financiar as atividades do Estado.13 Daí se falar em uma presença mais evidente da Coroa nos diversos aspectos da vida colonial e de uma reorganização administrativa gradativa, que assume as formas conjunturais oferecidas pelo contexto da crise do colonialismo americano.14

Por ora, há que se considerar, para uma compreensão mais adequada do real significado da reorganização administrativa empreendida por Pombal, que a idéia de Estado Colonial é algo como uma unidade abstrata, nele não se precisando parcelas, poderes ou funções: a atividade do Estado pode ser, nesse sentido, figurada: o Estado é personalizado - através de símbolos feito a Coroa Portuguesa - e constitui-se em um todo institucional que “abrange o indivíduo, conjuntamente, em todos seus aspectos e manifestações.”15 Portanto, esse Estado, concentrado em atividades e personalizado em simbologias, possui marcas de presença ou ausência: é sua atuação permanente ou sua negligência diante dos diversos aspectos da vida das populações habitantes da colônia que contribuirão à delimitação de esferas de compreensão subjetivas acerca do público e do privado, por exemplo. Contudo, a concepção de uma idéia de Estado Colonial parece, à primeira vista, ignorar uma das dimensões históricas sobre as quais se fundam o colonialismo: a completa separação existente entre Metrópole e Colônia. Ou seja, falar em um Estado Colonial em todo o espaço geográfico do Ultramar e do Reino significaria desconsiderar as perceptíveis diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais entre Metrópole e Colônia. Não é o que se propõe, contudo. Considera-se aqui o “Estado como um todo dinâmico, passível de ser observado sob vários ângulos, mas sempre conservando uma unidade indissociável”16: tal unidade, nesse chamado Estado Colonial, é a autoridade metropolitana, existente tanto no Reino quanto nas Possessões ultramarinas.

O Estado, no panorama político do Antigo Regime, está diretamente ligado às áreas de atuação do poder real, zonas multifacetadas em áreas de exercício do poder17, que formam esse complexo concentrado. Conforme alude HESPANHA:

Estas imagens constituem, para toda a época moderna, uma constante, mas a sua combinação e hierarquização vão evoluindo, provocando novos entendimentos da actividade governativa da coroa, alguns deles com tradução institucional, processual e de pessoal político.18

É nesse cenário que as reformas pombalinas serão...

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