Reflexões sobre a epistemologia jurídica contemporânea no Brasil

AutorMaria Francisca Carneiro
CargoDoutora em Direito (UFPR) Pós-doutora em Filosofia (Universidade de Lisboa) Mestre em Educação (PUC/PR)
Páginas6-10

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1. As grandes questões da epistemologia

A epistemologia, grosso modo, é o estudo da ciência ou a sua filo-sofia; e a epistemologia jurídica, então, é o estudo da ciência do direito. Indaga-se se o direito é mesmo uma ciência e, se o for, como se caracteriza.

Para Hilton Japiassú e Danilo Marcondes, a epistemologia é a disciplina que toma as ciências como objeto de investigação, tentando reagrupar:

“a) A crítica do conhecimento científico (exame dos princípios, das hipóteses e das conclusões das diferentes ciências, tendo em vista determinar seu alcance e seu valor objetivo); b) a filosofia das ciências (empirismo, racionalismo, etc.); c) a história das ciências. O simples fato de hesitarmos hoje entre duas denominações (epistemologia e filosofia das ciências) já é sintomático. Segundo os países e usos, o conceito “epistemologia” serve para designar, seja uma teoria geral do conhecimento (de natureza filosófica), seja estudos mais restritos concernentes à gênese e à estruturação das ciências.”1

Assim, pode-se haurir que o conceito de epistemologia não é unânime, podendo ser também uma teoria do conhecimento, gnoseologia ou filosofia das ciências.

Em conformidade com Nicola Abbagnano, tal disciplina foi substituída, atualmente, por outra disciplina, a metodologia, que consiste na “análise das condições de validade dos procedimentos de investigação e dos instrumentos linguísticos do saber científico”2.

Importa observar, todavia, que a epistemologia implica também o estudo da demarcação das regiões do saber, que é um tipo específico de reflexão. Nesse sentido, diz Gaston Bachelard:

“As regiões do saber científico são determinadas pela reflexão. Não as encontraremos delineadas numa fenomenologia de primeira apreciação. Numa fenomenologia de primeira apreciação, as perspectivas são afectadas por um subjectivismo implícito, que teríamos de precisar se pudéssemos trabalhar um dia na ciência do sujeito cioso de cultivar os fenômenos subjectivos (...).”3

Portanto, a epistemologia, tradicionalmente, busca a objetivi-dade em seu exame do conhecimento. Quanto à demarcação dos saberes, percebe-se que depende da reflexão que se faz a respeito.

Ora, no caso do direito, a demarcação das regiões do saber são as disciplinas tradicionais. Porém, considerando-se que atualmente o direito é marcado cada vez mais por seu caráter interdisciplinar, observa-se uma modificação na aludida demarcação, o que é objeto da epistemologia jurídica.

Assim, constata-se que a epistemologia geral, bem como a epistemologia jurídica, não são saberes obsoletos e arcaicos, mas permanecem atuais, no seu dever de acompanhar a evolução dos ramos do conhecimento e seu objeto.

Não é por acaso que a epistemologia contemporânea vem apresentando grandes questões,

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que são debatidas pelos tratadistas. Dentre elas destaca-se, por exemplo, a questão da justificação geral do conhecimento e das crenças, o subjetivismo e as práticas de sua justificação, o mito da revelação do conhecimento, a coerência em ciência, lingua-gem, o problema da verdade, a razão, o relativismo e o pragmatismo, o ceticismo e a possibilidade de conhecimento, bem como as recentes epistemologias alternativas4, que derivam de argumentos de outros ramos do saber, como a biologia, a sociologia etc., visando à comprovação de que a epistemologia não é neutra, como foi tradicionalmente considerada.

Em consonância com o cientista paranaense Newton Freire-Maia, a ciência pode ser visualizada sob dois aspectos fundamentais: a ciência já feita (tal como é ensinada) e a ciênciaprocesso (que está sendo feita)5.

Pensa-se, pois, que assim também ocorre com a epistemologia, de modo que se poderia falar em uma possível epistemologia-processo.

Embora a ciência atual opere cada vez mais com incertezas e inexatidões6, é paradoxalmente maior a busca pela unidade do conhecimento7.

Esta é visão panorâmica da epistemologia, com algumas de suas questões atuais.

2. Sobre a epistemologia do direito

A primeira grande questão da epistemologia jurídica é saber se o direito é mesmo uma ciência. Porém, o conceito de ciência não encontra unanimidade entre os tratadistas, sendo considerado, inclusive, como sistematização do conhecimento. Nesse caso, o direito é, sim, uma ciência. Por ora, tem-se que, sendo a epistemologia atualmente a metodologia, é preciso tratar também dos métodos empregados pelo direito, em seu desiderato.

Karl Larenz aponta como a evolução do método jurídico se deu em conformidade com a evolução do próprio
direito, passando
desde o método histórico-natural de
Jhering, que tentava aproximar o direito das leis naturais; o positivismo
legal racionalista;
a teoria objetivista
da interpretação e
o voluntarismo, até
chegar às discussões atuais da metodologia jurídica, que são a passagem da jurisprudência de interesses para a jurisprudência da valoração; a questão de critérios e valoração supralegais; a tópica e a teoria da argumentação e as discussões filosóficas relativas à Justiça, atualmente8.

O referido autor assevera que, historicamente, o significado objetivo da lei e o escopo da norma jurídica ancoraram o método da jurisprudência dos conceitos9, sobre a qual se fundamentou o direito moderno, acrescentando que os juristas se ocupam hoje, com renovado fervor, dos problemas metodológicos da ciência jurídica.

Larenz sustenta a existência de três tipos na metodologia do direito atual, que são standards ou tipos reais e, ao mesmo tempo, tipos ideais e axiológicos. São eles10:

O tipo médio ou tipo de frequência, que desempenha um grande papel na prova jurídica. Trata-se de um processo causal que corresponde, segundo as circunstâncias constatadas, aos fatos e eventos tratados pelo direito. A prova de que, precisamente no caso concreto, ocorreu de modo diverso ao que foi constatado fica em aberto.

De maior importância ainda para o direito e para a ciência jurídica, segundo Karl Larenz11, é o tipo de totalidade ou configuração. A lei serve-se dele para caracterizar um grupo de pessoas, atendendo ao papel social que d e s e m p e n h a m , vinculando-as às instituições das...

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