Reflexões e cautelas na implementação do processo judicial eletrônico

AutorFrancisco Ferreira Jorge Neto/Jouberto de Quadros Pessoa Cavalcante/Judson Sales de Meneses
CargoDesembargador Federal do Trabalho (TRT 2ª Região) Professor convidado no Curso de Pós-Graduação Lato Sensuda Escola Paulista de Direito Mestre em Direito das Relações Sociais ? Direito do Trabalho (PUC/SP)/Professor da Faculdade de Direito Mackenzie Professor convidado no Curso de Pós-GraduaçãoLato Sensu(PUC/PR) Mestre em Direito Político e ...
Páginas9-18

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1. Introdução

Um dos traços característicos da sociedade contemporânea é o excesso de informação. Não é exagero afirmar que o volume de informação que um indivíduo mediano recebe em um ano é superior àquele que, cem anos atrás, levaria toda a vida para acumular. Alguns cientistas chegam a afirmar que este movimento, especialmente acentuado pelo advento da internet, pode causar danos irrever-síveis ao cérebro humano1. Trata-se de uma realidade inimaginável há algumas poucas décadas, cujos con-flitos gerados demandam atenção diferenciada, para que a evolução seja benéfica à organização social.

Do mesmo modo, vivemos em tempos de constante transformação. As técnicas de trabalho e produ-ção sofrem permanentes mutações, sempre visando formas mais eficientes de se obter o mesmo resul-

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tado. É um movimento que sempre existiu, mas que ganhou intensida-de extrema com a revolução dos meios de comunicação. A interação mais fácil entre os múltiplos polos e agentes do conhecimento tem propiciado uma mecânica mais fluida no caminho do surgimento de novas e revolucionárias tecno logias.

Inúmeras formas de tecnologia que hoje dominam os noticiários e ocupam parte bastante considerável do dia das pessoas sequer existiam há menos de uma década. A internet de alta velocidade era restrita a um grupo de privilegiados na virada do milênio, o aparelho de telefonia celular era um luxo e as redes sociais inexistentes2. Tratam-se de tecnologias que permeiam a vida dos cidadãos comuns, causando impactos relevantes no modo como as pessoas se comportam e se relacionam em todos os aspectos de seu cotidiano, inclusive no ambiente de trabalho.

Adotando uma outra data aleatória, mas especialmente sugestiva, as conclusões a que chegamos podem ser ainda mais alarmantes. O atual Código de Processo Civil data de 11 de janeiro de 1973, quando Martin Cooper terminava o seu protótipo de um aparelho de telefonia móvel e desembarcavam no Brasil as pri-meiras unidades do Ford Maverick. Ainda que tenha sofrido reformas sensíveis, sua essência ainda é mui-to similar à original, bem como à de seu antecessor (DEL 1.608/1939), ano em que sequer a máquina foto-copiadora havia sido inventada.

A grande maioria dos métodos de gestão utilizados à época já são considerados obsoletos. Anotações em cartões, o culto ao papel e a in-segurança das informações foram gradualmente vencidos pelo implemento de novas tecnologias. Neste processo, o formalismo da adminis-tração pública sempre esteve alguns passos atrás da iniciativa privada, impulsionada por mecanismos de concorrência e a necessidade de so-breviver em um mercado que exige redução de custos com incremento da eficiencia. Disto também decorre o constante descrédito dos cidadãos em relação à possibilidade de o Estado gerir de modo satisfatório os interesses públicos, que culminou na aceitação pouco crítica das reformas neo liberais que privatizaram boa parte dos serviços públicos. O Judiciário, poder estatal justificadamente avesso a qualquer forma de privatização, sofre as consequências desta evolução lenta na moderniza-ção dos métodos de gestão.

Exemplo bastante claro da revolução administrativa trazida pelo uso de novas tecnologias é o sistema bancário. O que há poucas décadas era um termo comum, hoje beira o ridículo, como o vocábulo "caderneta" de poupança (derivado do uso de anotações de controle de aplicações e resgate). O papel-registro perdeu muito de sua relevância e mesmo o papel-moeda caminha na mesma direção. As transações eletrônicas, quer por meio de cartão magnético quer pelo uso de sistemas de internet, dominaram o fluxo de capital nas cidades mais desenvolvidas, em um movimento que recebeu o apoio de todos os agentes envolvidos na operação.

O nível de segurança das opera-ções eletrônicas, ao contrário do que possam sugerir as notícias mais fre-quentes sobre o assunto3, é bastante alto e faz com que os custos do sistema bancário despenquem, ao mesmo tempo em que seus usuários (pessoas físicas e jurídicas que lançam mão destes serviços) ficam satisfeitos com as comodidades de uma opera-ção desburocratizada. A segurança das transações eletrônicas leva inú-meros estabelecimentos comerciais a abandonar o título de crédito antes mais usado, o cheque, e correntistas a preferir a comodidade de cartões de crédito e débito4.

Fato é que no último século, década ou mesmo ano todas as ciências evoluíram, contando com o especial apoio da tecnologia. Sobre o assunto, escreve Otávio Pinto e Silva5 que "com efeito, todas as artes depende-ram de algum suporte tecnológico: a literatura precisava de tinta e papiro (mais tarde, do papel); a pintura e a escultura, de materiais e ferramen-tas; a dramaturgia, de técnicas e locais adequados para sua exposição. Vale dizer, a história da civilização humana é profundamente marcada pela constante evolução tecnológica, que repercute diretamente no modo de ser e de viver das pessoas: como demonstra Fábio Konder Compara-to, as grandes etapas históricas de in-venção dos direitos humanos coincidem com as mudanças nos princípios básicos da ciência e da técnica".

Por outro lado, não se pode des-prezar a inteligência contida na for-mulação processual sedimentada, a qual levou séculos para se estabilizar e que carrega em si a experiência e os debates de todos aqueles que se dedicaram ao estudo da ciência processual. Há que se agir com cautela de modo a preservar a integridade do Estado e a relevância da função social do processo. Movimentos mal planejados neste trajeto podem arruinar a credibilidade do próprio judiciário e afastar os jurisdiciona-dos da promoção de seus direitos.

Nas lições de Cândido Rangel Dinamarco6, "as técnicas procedi-mentais constituem o resultado de experiências multisseculares, às quais o legislador aporta as inovações e aperfeiçoamentos que na prática lhe pareçam úteis. As significativas re-visitações aos institutos processuais, que se vêm fazendo utimamente, vão produzindo também alterações nos procedimentos em si mesmos, como modo de adequar a técnica do processo às novas conquistas da ciência".

O que o presente estudo pretende analisar e discutir é a necessidade de

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que o processo, instrumento de paci-ficacáo social, proteção e efetivação de direitos, siga o mesmo caminho. Mas também atentar para as arma-dilhas que se escondem no percurso rumo à efetiva modernização do judiciário. Lido de outra forma: alertar para os riscos da adoção apressa-da da tecnologia da informação nos processos judiciais, mas sem perder de vista que se trata de um caminho irreversível e necessário à efetivação de um poder judiciário célere e justo. "A tecnologia é instrumento a serviço do instrumento - o processo - e, portanto, sua incorporação deve ser feita resguardando-se os princípios do instrumento e os objetivos a serviço dos quais está posto o instrumento."7

O processo do trabalho é instrumento para proteger e dar efetivi-dade aos direitos trabalhistas. Atingir este objetivo passa necessaria-mente pela adoção de mecanismos céleres de resolução de confutes, métodos de reconhecimento e exe-cução ágeis de dívidas trabalhistas, bem como pela presença certeira do judiciário na resolução de casos urgentes, aqui compreendido tanto aqueles de natureza alimentar quanto os que atinjam diretamente a saúde e o bem-estar do trabalha-dor.

A assimilação de novas tecno-logias8 é essencial no sentido de buscar novas técnicas organizacio-nais. Partes, patronos, magistrados, servidores, todos podem ter seus trabalhos otimizados com o estudo e implementação de novas técnicas. Modernizar é reorganizar, adaptar o instrumento processo aos acessórios hoje existentes. Resta ter cuidado na execução deste projeto.

2. Exclusão digital

Em maio de 2012, a Fundação Getúlio Vargas, por meio de seu Centro de Políticas Sociais, em par-ceria com a Fundação Telefônica, publicou um profundo estudo sobre o acesso dos brasileiros aos meios de comunicação via internet9. Os dados, que colocam o Brasil na 63 a. posição do ranking mundial de acesso domiciliar à internet, evidenciam um país que replica no acesso à rede suas características desigualdades. Bairros vizinhos, como a Barra da Tijuca e Rio das Pedras têm índices de acesso diametralmente opostos (94% e 21% respectivamente). O mapa amplo evidencia o abismo que distancia as regiões mais ricas e pobres do país.

As dificuldades de acesso impac-tam o próprio uso da internet. A mes-ma pesquisa revela que apenas 35% dos entrevistados utilizaram a internet nos três meses anteriores à pesquisa. Ao lado da dificuldade de acesso (29,79%), não saber usar o computador (31%) e não ter interesse (35%) foram os fatores mais relevantes que afastaram os brasileiros da grande rede.

São dados que, por si, já inco-modam aqueles que veem na tecnologia da informática uma solução de médio prazo para a morosidade do judiciário. Se osjurisdicionados não têm acesso à internet, quer por não ter aparelhos, quer por não dominar o uso, não se pode esperar que este-jam inseridos neste processo de in-formatização. Todavia, o problema pode ser ainda mais grave do que os números indicam.

Enquanto alguns defensores do processo judicial eletrônico podem alegar que os excluídos digitais já estão também excluídos dos autos físicos, acessando-os por meio de terceiros (advogados), justamente por não terem conhecimento mínimo da técnica processual, o fato é que a exclusão digital também atin-ge advogados e magistrados. Possi-velmente não na sua acepção mais cruel, que é aquela retratada no estudo da Fundação Getúlio Vargas. Mas o fato é que, para a desejável desenvoltura no ambiente virtual, é necessário um conhecimento da técnica que transcende o mero uso do computador. É indispensável saber dialogar com a...

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