Reflexões sobre a oralidade no processo eletrônico

AutorBruno da Costa Aronne
CargoMestre em Direito Processual pela UERJ.
Páginas109-124

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Introdução

O Estado retirou dos indivíduos a possibilidade de buscar por suas próprias forças a resolução dos conflitos, proibindo a justiça privada. Nesse passo, avocou para si a aplicação do direito, exercendo a função jurisdicional em substituição à vontade das partes. Em contrapartida, assumiu o poderdever de solucioná-los com justiça1. O método adotado para a resolução dos conflitos é o processo. Através desse mecanismo, as partes levam ao conhecimento do Estado-juiz os fatos, para que estePage 110solucione o litígio de maneira justa, à luz das fontes do direito e com base naquilo que foi alegado e provado nos autos.

Vê-se, claramente, que se trata de uma função extremamente relevante e delicada, na medida em que a decisão do litígio influencia sobremaneira a esfera jurídica e, muitas vezes, a condição patrimonial das partes. E, em um regime democrático, tal como o brasileiro, a justeza da sentença assume notável importância, em virtude da proteção constitucional à dignidade das pessoas. Nesse contexto, às partes devem ser conferidas as melhores condições possíveis para a atuação no processo, como medida de proporcionar uma justa decisão.

Assim, a justiça da sentença não depende apenas do conhecimento jurídico e do bom senso do juiz que a profere. Para se alcançar esse resultado, é necessário, também — e principalmente —, que o aparelho judiciário e as regras do processo estejam estruturados para esse fim. Consoante o entendimento de Sergio Chiarloni, para que se alcance uma decisão justa, deve ser realizada uma correta interpretação da norma em conjunto com uma adequada reconstrução dos fatos2. Na visão do citado autor, exige-se que a disciplina das provas seja endereçada a assegurar uma adequada descoberta da verdade e que sejam eliminadas as fontes que operam prejuízo ao contraditório, à paridade de armas e à imparcialidade do juiz3. A reconstrução dos fatos é, portanto, um dos pilares mais relevantes do processo justo. Sobre esse ponto, Luiz Guilherme Marinoni assenta que o direito à tutela jurisdicional não pode restar limitado ao tradicional conceito de acesso à justiça, visto que é fundamental a efetiva possibilidade de argumentação e produção de prova4. No mesmo sentido, José Roberto dos Santos Bedaque afirma que não basta assegurar o ingresso em juízo; é indispensável a efetividade da proteção judicial e da ordem constitucional, o que se alcança através da ordem jurídica justa5.

Com base nessas premissas, desenvolveu-se a concepção de que, para se alcançar uma sentença justa, é necessário um processo justo. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira sustenta que o processo justo e a tutela jurisdicional efetiva são os meios de que dispõe o Estado Democrático de Direito, essencialmente constitucional, para a realização desse objetivo.6 Nessa mesma direção, Italo Augusto Andolina acrescenta que um processo jamais será justo se a sua decisão for injusta.7

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Percebe-se, por conseguinte, que a sentença justa é consectário de um processo justo. Inclusive, Candido Rangel Dinamarco simplifica o conceito de processo justo, aduzindo que outra coisa não é senão o processo apto a produzir resultados justos.8 Em torno dessa perspectiva, o referido autor defende um processo acessível a todos e a todas as suas causas, ágil e simplificado, aberto à participação efetiva dos sujeitos interessados e contando com a atenta vigilância do juiz sobre a instrução e sua interferência até o ponto em que não atinja a própria liberdade dos litigantes9.

Para o alcance dessa meta, Cassio Scarpinella Bueno assenta que deve existir um modelo mínimo, mas indispensável, impositivo e vinculante para a atuação do Estado-juiz. Esse modelo abarca condições imprescindíveis para um processo justo e, consequentemente, uma sentença justa. Tais condições encontram-se atreladas a um "princípio-síntese", conhecido como devido processo legal10.

O princípio do devido processo legal é a base de sustentação dos demais princípios processuais11, ou, como comenta Rui Portanova, "verdadeiro princípio informativo de todos os princípios ligados ao processo e ao procedimento".12 É com observância a ele e aos princípios e garantias a ele ligados que o processo desenvolver-se-á de maneira justa, isto é:

Com absoluto respeito à dignidade humana de todos os cidadãos, especialmente das partes, de tal modo que a justiça do seu resultado esteja de antemão assegurada pela adoção das regras mais propícias à ampla e equilibrada participação dos interessados, à isenta e adequada cognição do juiz e à apuração da verdade objetiva: um meio justo para um fim justo.13

Os princípios e garantias, ligados ao devido processo legal — ou à concepção de processo justo —, estão previstos na própria Constituição, no Código de Processo Civil ou são concebidos e identificados pela doutrina e pela jurisprudência. Entre eles, tem notável importância o princípio da oralidade.

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A relevância da oralidade no processo

O Estado Democrático de Direito exige que a atividade jurisdicional seja caracterizada por um processo realmente efetivo, com sentenças justas e resultados úteis. Nesse diapasão, é indispensável que se coloque à disposição das partes meios eficientes de participação, a fim de que o contraditório seja plenamente exercido e, por consequência, a reconstrução dos fatos seja efetuada da maneira mais produtiva possível, de modo a levar ao conhecimento do julgador um quadro fático fiel à realidade. Impende repisar que, somente assim, respeitando-se as garantias do processo justo, é que o Estado-juiz pode proferir uma sentença justa.

Dentro da garantia do contraditório participativo, encontra-se a garantia do jurisdicionado à audiência oral com o juiz. Segundo Leonardo Greco, o diálogo humano e público com o juiz da causa é um indispensável instrumento de autodefesa, eis que pode influenciar eficazmente na decisão da causa, em virtude de sua capacidade de transmitir ao juiz impressões reais do conflito desaguado do Poder Judiciário.14

Realmente, a prova oral coloca o magistrado de frente com as partes e testemunhas, permitindo-lhe sentir as características psicológicas das pessoas envolvidas no processo. Sem dúvida, essa experiência fornece ao juiz uma boa noção do conteúdo do depoimento e do próprio comportamento dos depoentes, o que aprimora a cognição da matéria fática. Nesse sentido, o exercício da oralidade beneficia a colheita das provas pelo juiz, tendo em vista que este absorve impressões mais completas do contexto do litígio.15 Ademais, a oralidade impõe um curto espaço de tempo entre a audiência e a decisão, com o fito de evitar que o magistrado olvide os sinais e detalhes do caso que analisou pessoalmente. Assim, vê-se que a garantia em exame favorece a celeridade e a prolação de uma sentença justa, eis que atenta às provas produzidas em audiência.

Mauro Cappelletti ressalta que a oralidade também impacta positivamente a publicidade, em razão do caráter público das audiências, que permite um controle maior da sociedade sobre a atuação do juiz.16 Afinal, quando da realização das audiências, o juiz não é um mero espectador; suas responsabilidades são grandes, na medida em que deve promover uma equânime participação dos interessados. Ressalte-se, ainda, o caminho que a audiência com o magistrado abre para a realização de acordos. A prática forense demonstra que, na frente do juiz, as partes ficam mais propícias a aceitar a conciliação.17

A oralidade abarca alguns subprincípios, os quais são essenciais para a plena realização dos seus escopos. Seguindo a classificação idealizada por Chiovenda, os processualistas dividem os postulados fundamentais da oralidade na concentração dos atos processuais em audiência; na imediatidade entre o juiz e a fonte da prova oral; na identidade física do juiz; e na irrecorribilidadePage 113em separado das decisões interlocutórias.18 Rui Portanova ressalta que a finalidade máxima dessa corrente de princípios é a de que o mesmo juiz que colheu a prova oral prolate a sentença.19

Dentro dessa classificação, assume notável importância a concentração, a qual colima aproximar uns atos dos outros, preferencialmente no mesmo dia, para evitar que as informações e as impressões colhidas nas audiências não escapem da memória do juiz.20 Assim, procura-se realizar os atos em momentos muito próximos, no intuito de conservar na mente do magistrado os pontos mais marcantes dos relatos efetuados na instrução. Na condição de seres humanos, não se pode exigir dos juízes que guardem por muito tempo os detalhes dos depoimentos, mas deve-se exigir dos mesmos que procurem concentrar ao máximo os atos, de modo a não prejudicar a reconstrução dos fatos. Destaque-se que, justamente por promover a concentração dos atos, esse subprincípio opera, a reboque, maior celeridade ao processo.

A oralidade também pressupõe a imediatidade entre o juiz e a fonte da prova oral. Embora consista meramente no contato direto e pessoal que o magistrado tem com o depoente, trata-se de um dos elementos mais importantes dessa garantia, pois o juiz é o destinatário da prova. Isto é, como é o juiz quem valora a prova, é pertinente que ele a colha. E é imprescindível, nesse passo, que, no exercício da sua atuação imediata junto aos depoentes, o juiz tenha pleno conhecimento do processo, como medida de permitir um qualificado colhimento das provas, a fim de ensejar uma justa decisão.

Pontes de Miranda conceitua esse subprincípio como a "utilização da observação imediata, da intuição imediata, do sentir imediato e do pensar imediato. Imediatizando o juiz, a lei espera salvar o máximo de valor objetivo das provas e da percepção delas pelo juiz".21 Por isso, diz-se que nem mesmo as declarações judiciais prestadas por instrumento público, junto a um tabelião, têm o condão de sobrepujar o...

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