Reescrevendo a história do direito penal a partir dos estigmas: o roteiro de uma tese

AutorCarlos Roberto Bacila
CargoDoutor em Direito e Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Facinter e da Universidade Federal do Paraná.

Você já ficou pensativo após a leitura de uma frase ou um texto especial? Há palavras que marcam o nosso dia a dia. Também expressões faciais de pessoas ou artistas. É como se fosse um processo intuitivo que nos diz que alguma coisa deve estar ali. Certa vez eu ouvi uma música no rádio e... até hoje aquela melodia não me sai da cabeça. Bem, mas uma das frases que ficou martelando na minha cabeça estava escrita no livro de um cara genial. Trata-se de Erving Goffman, um estudioso americano que desenvolveu teses sobre anti-psiquiatria numa época em que as pessoas apontadas como loucas eram tratadas como feras perigosas e enjauladas e separadas dos normais. Então, Goffman dá um jeito de empregar-se num hospício e ficar por ali um ano estudando o comportamento dos pacientes, dos empregados, da direção, do público e, no final, conclui que os loucos agem absolutamente da mesma forma que os normais: gostam de fazer sexo, de amar, de ganhar dinheiro, de fumar cigarros e charutos e de assistir filmes no cinema. São calmos ou agressivos, alegres ou deprimidos, verdadeiros ou falsos. Absolutamente iguais aos normais. Essa pesquisa de campo rendeu um livro maravilhoso denominado Manicômios, prisões econventos2. Mas antes de chegar nessa obra, estava lendo um outro clássico de Goffman que me foi recomendado por um professor de Sociologia que se chama Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada3. Aqui, Goffman constata algo muito curioso em um mundo repleto de preconceitos e litígios interpessoais decorrentes de repulsas raciais, sexuais, religiosas, econômicas e tantas outras: “...estudiosos, entretanto, não fizeram muito esforço para descrever as precondições estruturais do estigma, ou mesmo para fornecer uma definição do próprio conceito.4 ‘Precondições estruturais’, ‘definição’, ‘conceito’. Quem afirmara isso era ninguém menos do que um sujeito que se infiltra durante um ano num manicômio. Espera aí. E quanto à pesquisa histórica? Quantas pessoas sabem como começou a discriminação da mulher? Ou ela sempre existiu? Já houve igualdade racial? Já existiu sociedade nômade comunista? E a questão religiosa, qual a sua origem e a conotação com que ela invade as soluções sociais de conflitos? Como isso tudo influencia o Direito?

Ora, em julho de 2001 em Chade, na África Central, paleontólogos descobriram nosso ancestral mais antigo, o Sahelantropus tchadensis, apelidado de Homem de Toumaï (esperança de vida), que teria vivido há aproximadamente sete milhões de anos5. Se os dinossauros desapareceram há sessenta milhões de anos atrás, o que separa o nosso avô mais antigo deles são mais ou menos cinquenta e três milhões de anos, isto é, os Flintstones não poderiam ter o Dino em casa. Pessoas e dinossauros nunca conviveram. Mas há outra história a ser investigada nos Flintstones que é essa coisa do Fred e do Barney trabalharem, jogarem boliche e saírem para aprontar, enquanto a Beth e a Wilma ficam com as tarefas domésticas, como comportadas donas de casa. Será que os nossos avozinhos nômades eram assim? E quanto ao Sr. Pedregulho, um sujeito de classe social econômica mais elevada: os hominídeos mais antigos eram divididos em classes sociais? Bem, se a nossa história de sociedades estabelecidas em regiões determinadas ou sedentárias é de dez mil anos, o que nos separa da vida nômade são aproximadamente sete milhões de anos. Então há muita história para contar e para descobrir e, investigar a possível origem das distinções sociais parece muito importante. Sim, porque se houve igualdade originária, qual seria o motivo do aparecimento de discriminações entre as pessoas?

Da obra de Goffman e da sua constatação da ausência de precondições estruturais e de conceito de estigma, até a pobreza de pesquisa histórica sobre a origem dos estigmas, surgiu a primeira indicação sobre a necessidade de procurar mais respostas e tentar trazer alguma contribuição sobre os preconceitos. Poder dizer alguma coisa para nossas mães sobre como começou a discriminação das mulheres, separando-as de uma vida igual, parecia um grande desafio. Nesse momento ouço uma música cantada por Louis Armstrong, o primeiro cantor negro americano que obteve sucesso internacional e pode mostrar o seu valor, como ser íntegro. Como é que começa essa desigualdade racial? Por quê? Qual a influência sobre o Direito? Existe algum reflexo na aplicação do Direito nos dias atuais? E a separação entre ricos e pobres: onde podemos buscar respostas? E sobre os portadores de necessidades especiais físicas ou psíquicas? E sobre os gordos e magros? E sobre os viciados em drogas lícitas e ilícitas? E sobre homossexuais e bissexuais? E sobre os estrangeiros que perambulam pelas ruas em busca de trabalho? E sobre os mendigos ou vagabundos? Certa vez CECÍLIA, uma amiga que pertence a um segmento religioso disse para mim que não aceitava as pessoas que não trabalhavam. – O trabalho dignifica o ser humano. Então, perguntei-lhe como seria visto Jesus Cristo nos tempos de hoje. Qual era a ocupação profissional dele? – Andar pelas ruas, pregando o evangelho. E as pessoas que perambulam pelas ruas não desempenham papéis, não são seres íntegros ou são metade de uma pessoa? Você já conversou com um sujeito que vaga pelas ruas, sabe como ele acabou lá? – Não. Você já cumprimentou um cara que junta o lixo das ruas? Já viu como ele se assusta quando alguém lhe diz – bom dia!? Para algumas pessoas, um ‘– bom dia!’ dito por um transeunte pode ser o evento do dia, do mês, ou da vida! Mas essas pessoas são tratadas como estranhos ou, como denominou Howard Becker, como outsiders6. Parece que não falta alguma coisa para um mendigo ser um humano: ‘Ser mendigo é ouvir o apito do trem. É ter o pé na estrada. É fazer a refeição numa lata de feijão. É o amor pelo caminho...’, disse alguém, certa vez. Mas os políticos, os politicamente corretos e os normais acham que falta alguma coisa para os vagabundos e, ao invés de dialogar e ouvi-los... bem, fui conversar sobre isso com alguém que acreditei que poderia orientar-me sobre o assunto, para que eu pudesse investigar mais sobre o tema e, quem sabe, escrever alguma coisa. Essa pessoa foi o Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. E sabem o que ele me falou sobre o mendigo? Bem, então se as pessoas acreditam que falta alguma coisa para o mendigo ser um sujeito por inteiro, então, ao invés de procurá-lo ou topar com ele e dizer e ouvir, apenas aponta-se-lhe soluções assistenciais, como se ele fosse menos gente. Não se procura ouvir, mas só dizer, porque quem só se propõe a dizer pensa que está acima de ter que ouvir, afinal, os pobres seriam inferiores precisando de ajuda. Então vamos ajudá-los e, quando o Grande Alexandre procura Diógenes, o pobre que vive no barril, bate com a cara na parede, porque Diógenes tem mais a dizer do que Alexandre imaginava. Mas o discurso é assim: ‘- Eu ajudarei os favelados’. ‘– Eu resolverei o problema das populações marginalizadas.’ ‘Eu resolverei a questão da violência doméstica.’ ‘ – Eu acabarei com a criminalidade.’ Sim, ‘eu’, porque o ‘outro’ não existe nesse discurso. O outro é um estranho. Um outro que não poderia ser eu mesmo, porque eu não consigo me ver no outro e daí, criamos um eu absoluto e um outro distante. Mas o mendigo consegue sorrir, apertar sinceramente a mão do outro e compartilhar um pouco de feijão. Então, onde está a falta de ser? Onde está a falta de integralidade? Miranda Coutinho sugeriu que eu fizesse um estudo mais detalhado sobre questões como essas, que são tão próximas do nosso cotidiano. Schopenhauer tinha razão, a rotina cria uma inércia que faz com que não se crie nada, nada de novo apareça, nem ciência, nem arte e, podemos acrescentar, nem vida. A rotina dos preconceitos nos transforma em seres inanimados e amorfos, que não cumprimentam certas pessoas, não sorriem para outras, não respondem um aceno, não falam com estranhos, não pedem ‘por favor’, não dizem ‘muito obrigado’. Ninguém é nada sem o outro. Eu jamais pesquisaria sobre estigmas se não fosse a frase do Erving Goffman, ou a observação de Miranda Coutinho. Quem não está disposto a ouvir, só diz, mas diz ditando, por isso é um ditador, sempre o dono da razão. Nenhum ditador é confiável, nunca confie em um ditador.

Hoje o livro: Estigmas: um estudo sobre os preconceitos foi acolhido pela Editora Lumen Juris e publicado e a sua razão de ser fundamental está em apontar as precondições estruturais dos estigmas, o conceito e as raízes históricas dos preconceitos. Neste breve registro, gostaria de esclarecer ao menos o conceito de estigma. Quando assistimos o bom filme Gladiador tivemos um exemplo do significado antigo de estigma. Era um sinal ou marca, como foi aquela presente no braço de Máximo Décimo Merídio, que representou o papel histórico de Narciso Mérida, um gladiador que efetivamente matou o Imperador Cômodo na arena, no ano de 192 d.c7. Mas se tratava de marca presente em pessoas de classe inferior e portanto, a palavra stigma que expressa em latim ‘tatuagem’, passou a ter um outro significado social negativo. Atualmente o conceito de estigma parece ser bem claro ao apresentar um aspecto objetivo como características de uma raça ou do sexo feminino ou de atos e comportamentos religiosos ou de visível pobreza, mas também consiste em valoração subjetiva: ‘se é pobre é ruim’, ‘se é deficiente físico’ não pode trabalhar tão bem quanto um ‘normal’, ‘se é mulher é inferior ao homem’ etc. O estigma gera descrédito e desvantagem e a idéia de que o estigmatizado não é completamente humano8. Uma das explicações sobre os motivos da criação de estigmas nos é fornecida por Ayush Morad Amar no sentido de diminuir o valor do outro: “Se não posso ser tão bom quanto Sócrates, posso, pelo menos, neutralizar seu sucesso, rebaixando-o para meu nível.”9 Quer...

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