Redução da Maioridade Penal na Era da Sociedade do Espetáculo: de Novo e Mais uma Vez uma Proposta Legislativa Inconstitucional

AutorAna Claudia Pompeu Torezan Andreucci; MArcia Cristina de Sousa Alvim; Rodrigo Suzuki Cintra
Páginas357-366

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“O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens.”

Guy Debord

1. Respeitável público!!! Com vocês, os adolescentes, inimigos número 1 da Nação

E que rufem os tambores. E que se conte uma mentira 1000 vezes, para que ela se torne verdade, técnica mais do que hábil manejada por Joseph Goebells, Ministro da Propaganda Política Nazista do III Reich de Adolf Hitler. E que sejam omitidos os verdadeiros índices, as estatísticas e pesquisas que envolvem o tema. E que se somem números substanciais de audiência promovidos por programas televisivos carregados de tons fortes e sensacionalistas. E, no final, acrescentem ainda uma sociedade marcada pelo temor, pelo medo, pela intolerância

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e ânsia de justiça privada. Eis o espetáculo. Um cenário que se repete geração a geração, de tempos pretéritos a hodiernos.

A intolerância, o medo, a necessidade de perseguição a inimigos reais e/ ou imaginários é espetáculo recorrente na história da Humanidade, quando esta se vê “ameaçada” e busca “os seus culpados”, eleitos como os inimigos públicos número 1.

Esse estado de coisas enseja a recorrência aos discursos do medo e da insegurança da sociedade, ou seja, da necessidade de um controle, o que ocasiona o clamor por uma justiça mais punitiva e autoritária.

No momento da confecção desse artigo, março de 2015, o Brasil vive um momento de efervescência e comoção nacional quanto ao tema proposto: redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. O tema é recorrente, totalizando 46 Projetos de Emenda ao longo de 22 anos.

A lógica comunicativa utilizada para essa comoção nacional encontra-se, segundo Rubem Naves, pautada:

[...] nos cálculos político-eleitorais de lideranças e grupos conservadores revelam oportunidade de exploração da insegurança e do medo para obtenção de votos ou para desviar a atenção do eleitorado de questões “inconvenientes”, entre os inúmeros episódios de violência que ocorrem em um país de quase 200 milhões de habitantes, destacam-se alguns casos especialmente atrozes, cujos perpetradores têm menos de 18 anos. Ao mesmo tempo, ignoram-se completamente as estatísticas, evidências e experiências nacionais e internacionais que demonstram a trágica falácia de “soluções” focadas na ampliação do aprisionamento, sobretudo no que tange aos adolescentes infratores. Opera-se, desse modo, uma estratégia de comunicação na contramão de um efetivo processo de esclarecimento, pautado pela racionalidade, pelo pragmatismo e pela ética, que deveria ser a meta e a missão de autoridades públicas, partidos políticos e profissionais da mídia.1

No fundo, tal discurso, mais que impedir as pessoas de enxergar o efetivo problema, propicia a possibilidade de não querer enxergar o problema. A ânsia pela punibilidade embota a razão e se transforma, em si, no discurso de ordem e segurança que se pretende alcançar, custe o que custar. A sociedade, se não quiser ser o espaço do verdadeiro descompromisso com os jovens, precisa efetivamente rever seus conceitos.

Isso é um imperativo fático, jurídico, político e, sobretudo, ético.

2. Sociedade do espetáculo e redução da maioridade penal: o que diria Guy Debord?

Talvez valha a pena refletir sobre a maiori-dade penal, sobre os direitos das crianças e dos adolescentes e sobre a solução para o problema dos jovens em conflito com a lei a partir das teses sobre a sociedade do espetáculo enunciadas por Guy Debord. Mas, o que é, exatamente, a sociedade do espetáculo e como ela se liga ao debate sobre a redução da maioridade penal?

A sociedade do espetáculo é tudo que for o caso.

Trata-se de uma maneira de afirmar o real por intermédio das imagens. Mas esse real é a afirmação do falso, da aparência e, como não poderia ser de outro modo, da ideologia. A ideologia é inseparável da sociedade do espetáculo; ela é, inclusive, a materialização do mercado das imagens2. A tirania das imagens corresponde diretamente a um modo de realizar a manutenção de estruturas de poder e dominação tradicionais. A sociedade do espetáculo é avessa à mudança estrutural do sistema social. Ela solidifica discursos e práticas, transformando-os em mercadorias e, assim, ocupando totalmente a vida social3. Corresponde, em verdade, ao império da inércia moderna, obstáculo a qualquer discurso progressista.

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A sociedade do espetáculo é tudo que possa virar fato.

Intermediada pela imagem, cria-se uma reali-dade que satisfaz os anseios da sociedade sem, no entanto, satisfazer os anseios efetivamente sociais. A sociedade do espetáculo finge unificar o separado, dar coesão à vida social, mas assim o faz somente para reunir a sociedade em separado4. A sociedade do espetáculo, terreno das imagens, é indissociável da estrutura de classes característica dos discursos ideológicos.

A sociedade do espetáculo é tudo que possa ser vendido.

“O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social.”5 É o equivalente geral, moderno e abstrato de todas as mercadorias. Onde tudo pode ser consumido, tudo pode ser vendido.

Não é novidade que para realizar a gestão da violência existe uma exploração do medo que, naturalmente, as pessoas sentem ao ler e ver notícias de casos criminais envolvendo a participação de jovens. O discurso da redução da maioridade penal vai se formando, se estruturando, inclusive juridicamente, do fato para a posição política. E aparece aí o reflexo da violência televisionada: um discurso que se realiza por meio de argumentos abstratos, mas que, no fundo, provém do universo de imagens que a sociedade do espetáculo proporcionou.

A violência é vendida no mercado das imagens como um produto qualquer.

A solução da violência é vendida no mercado da política como um produto qualquer.

A pretensa união social, o coro em uníssono, a favor da redução da maioridade penal, pode parecer, à primeira vista, índice de unificação das pessoas em torno de ideias políticas e jurídicas. O espetáculo é a própria sociedade — instrumento de unificação, mas “a unificação que realiza é tão somente a linguagem oficial da separação generalizada”6.

A verdadeira lógica da redução da maioridade penal, aquilo que a mera imagem esconde, é a exclusão dos jovens pobres da efetiva vida social — por isso, é discurso ideológico. O que mais singulariza a união de pessoas favoráveis à redução da maioridade penal é a vontade de segregação do outro. Trocando em miúdos, a sociedade do espetáculo unifica o discurso sobre a maioridade, porém, assim o faz para separar cada vez mais os membros desta sociedade.

Parece ser evidente que a adesão ao argumento da redução da maioridade não passa de mais uma maneira de consumir. O espetáculo do real, mediado por imagens, é efetivamente um produto. Consomese a violência, como podemos ver nos programas de televisão que sobrevivem do escândalo do crime. Vende-se a solução da violência, como podemos ver, qual efeito que a espetacularização das imagens produz, na boca e na mente de juristas, políticos e do próprio cidadão.

A tirania das imagens, pensada como espetacularização do crime, opera a transição do fato para a política/o direito.

Mas é preciso ter em mente que a espetacularização da violência, em seu modo de operar, em si mesma, também é violenta. O caráter tautológico do espetáculo consiste em seus meios serem, fundamentalmente, seus fins7. O que significa dizer que o modo pelo qual são veiculadas as imagens da violência cometida por jovens também é violento. É violento porque não é ingênuo. Tem por fim advogar pela segregação dos jovens em conflito com a lei, sempre dando a impressão de que se tratam de pessoas incorrigíveis, irrecuperáveis e, nos discursos mais agressivos, más por natureza.

Fica a impressão de que a solução para o problema da criminalidade no país tem uma única resposta: a reforma na maioridade penal. A resposta, como veremos, não é verdadeira se levarmos em conta os dados reais, não é juridicamente possível se fizermos uma interpretação constitucional e não é politicamente desejável, se quisermos fazer um projeto de nação efetivamente justo, igualitário e, sobretudo, responsável. A espetacularização da

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violência tem servido, na ordem dos discursos sobre a redução da maioridade penal, como fabricação concreta da alienação8. Em vez de entender a questão da criminalidade como fenômeno altamente complexo, o discurso da redução da maioridade penal proporciona a sensação de que basta modificar a maioridade para que possamos acabar com a violência em nosso país.

3. Inconstitucional e de retrocesso social: as tônicas para uma reflexão crítico-reflexiva da idade penal no Brasil

O tema “redução da maioridade penal”, como já explicitado, desperta, além da midiática comoção nacional, amplos debates pautados em diversos argumentos. Entre os muitos argumentos utilizados nos discursos9, nosso recorte metodológico para análise científica no presente artigo encontra-se apoiado na investigação crítico-reflexiva a partir de duas premissas: a redução da maioridade penal é inconstitucional por ser cláusula pétrea e a redução da maioridade penal se afigura como retrocesso social.

Para tanto é necessário destacar em pequenas linhas acerca da história que há um marco divisório no status dispensado a crianças e adolescentes com a edição da Constituição Federal de 1988.

Até esse momento figurava no Brasil o Código de Menores de 1979, disciplinando o conceito de criança e adolescente como o de “menor em situação irregular”, considerados que eram à margem do sistema e protegidos apenas quando diante das situações não...

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