A Redução da Maioridade Penal no Brasil e o Contexto da Crise Econômica

AutorCamila Souza; Vinícius Magalhães Pinheiro
Páginas349-356

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1. Introdução

A redução da maioridade penal é tema recorrente na história dos direitos de crianças e adolescentes brasileiros, na busca da criminalização desse público como os maiores responsáveis pela prática de infrações contra o Direito Penal. A matéria tem sido objeto de diversas Propostas de Emendas Constitucionais desde 1989, menos de um ano após a Constituição Federal instituir a idade de 18 anos, um critério biológico, como marco de imputabili-dade penal. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por sua vez, instituiu a adolescência, de 12 a 17 anos (ou 18 anos incompletos), como período de responsabilização pela prática de atos infracionais. Essa repressão penal precisa ser observada sob o viés econômico, numa leitura em que o Estado penal atuante sobre as classes trabalhadoras tende a se recrudescer nas crises da economia, com reflexos também sobre a população infantojuvenil.

Neste artigo, os autores identificam a cone-xão entre o aprofundamento da crise econômica no Brasil, originada nos Estados Unidos em 2008, relacionando infraestrutura e superestrutura, e as propostas de tendencial crescimento do Estado penal sobre os adolescentes. A análise procura compreender, sem ser uma ligação mecânica entre ambos os fatores, como os adolescentes sofrem o controle estatal e a ideologia por trás do reforço da repressão penal por meio da redução da maioridade penal. Na metodologia, foi utilizada pesquisa bibliográfica em livros, artigos e estudos técnicos e realizado levantamento via internet de todas as Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) apresentadas à Câmara dos Deputados e ao Senado sobre o tema. A hipótese é de que há interdependência entre contextos de crises econômicas e aumento da repressão penal, incluindo a exacerbação do discurso da criminalização dos adolescentes envolvidos com ato infracional.

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2. Relação entre estrutura econômica e ideologia penal-repressiva

O modo de produção capitalista caracteriza-se, numa concepção panorâmica, por mecanismos de exploração da força de trabalho para a extração de mais valor. Numa relação social provida de igual-dade e liberdade formais (pois unicamente jurídicas e jamais político-econômicas) para a disposição de vontade num contrato (jurídico) de trabalho, a classe trabalhadora entrega seu tempo e sua energia físico-mental em troca de um salário. Tal troca é desigual, pois a classe trabalhadora produz uma riqueza além do valor da sua força de trabalho — por conta de um tempo de trabalho tomado dos trabalhadores para além do necessário à reprodução das suas condições de existência. É possível entender o mesmo mecanismo realizando-se uma aparente inversão de sentido: o contrato de trabalho envolve uma igualdade meramente jurídica ou uma desigualdade político-econômica. Referido conjunto de relações sociais de produção é conhecido como infraestrutura. No âmbito de uma troca desigual, surgem mecanismos ideológicos de controle social sobre os trabalhadores. Tais mecanismos ideológicos são representações (ideias) decorrentes das práticas sociais de produção capitalista, daí serem convenientemente tendenciosos (ainda que nunca se apresentem como tais) em favor da perspectiva burguesa. Referido conjunto de ideias político-jurídicas é conhecido como superestrutura. A relação entre infraestrutura e superestrutura não é estanque. Ao contrário, são duas faces de uma mesma realidade de controle social.

O modo de produção capitalista gasta um tempo de trabalho muito além do necessário para a reprodução das condições de existência da classe trabalhadora. Assim sendo, suas representações e práticas ideológicas giram em função, por exemplo, da meritocracia, do esforço pessoal e do individualismo, da livre-iniciativa, da propriedade privada, da liberdade e da igualdade. E, em função dos exemplos mencionados, também a ideologia burguesa gira em função do tempo. O tempo é um bem precioso na troca capitalista de trabalho por salário. Assim, sua forma de controle social mais eficiente (pois das mais violentas), o encarceramento, é medida em tempo1. O sistema penal tem sido historicamente um instrumento burguês de fortalecimento e reprodução da ideologia burguesa. Encarcerada, uma massa popular indisciplinada para o trabalho é coagida à disciplina penitenciária, cujo aproveitamento vai para além das grades: a disciplina do sistema carcerário pode ser útil à conversão de “indisciplinados criminosos” em trabalhadores resignados e disciplinados para a produção capitalista. Nesse sentido, nos cristalinos dizeres de Melossi e Pavarini, “[o sistema penitenciário promove] a produção de sujeitos para uma sociedade industrial, isto é, a produção de proletários a partir de presos forçados a aprender a disciplina da fábrica”2.

3. Traços e reflexos da crise econômica no Brasil e crescimento do Estado penal

A crise do capitalismo iniciada em 2008 tem impedido a acumulação de capitais na mesma escala que até então se verificava. Com a queda das taxas de produção e comércio internacionais, deu-se a estagnação das taxas de acumulação e, mais grave ainda, ocorre a queima de capitais em função da manutenção de serviços públicos (em prejuízo aos pobres em geral e, tendencialmente, à classe trabalhadora em particular) e subsídios ao empresariado.

Aos trabalhadores resta o ônus de suportar uma crise à que não deram causa. Com o agravamento geral da crise — de natureza social, política, econômica e, especificamente quanto ao objeto deste texto, ideológica —, as classes dominantes, nas diferentes frações da burguesia, tenderão cada vez mais à ofensiva ideológica sobre os pobres, dentre os quais tendencialmente se encontram os trabalhadores. Ofensiva ideológica esta com traços repressivos bastante concretos: a criminalização da pobreza e o crescente encarceramento. Tal ofensiva repressivo-ideológica, vale ainda ressaltar, conta com a tendência à fascistização, ou seja, à hegemonia do autoritarismo apaixonado e moralizante enquanto ideologia dominante.

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Neste processo tendencial de crescimento do fascismo, a proposta de redução da maioridade penal nos parece mais um capítulo entre tantos outros constantes nas ideologias autoritárias, tais como a resistência à legalização das drogas, as proibições de exercício de atos da vida civil por homoafetivos (como adoção, casamento, etc.), as opressões em geral (tais como racismo, machismo, homotransfobia, xenofobia, etc.). Num contexto de crise econômica, com a necessidade de uma classe trabalhadora ainda mais disciplinada e resignada à produção capitalista, criminalizar a juventude (potenciais trabalhadores e trabalhadores, no caso dos adolescentes com idade a partir dos 16 anos, quando lhes é permitido juridicamente ser empregado) é uma medida coerente com a ideologia geral de um Estado penal crescentemente repressivo.

4. História jurídica brasileira na repressão aos “delitos” da juventude, sua relação com o trabalho infantil e o discurso da redução da maioridade penal

A repressão do Estado sobre os ilícitos penais praticados por crianças ou jovens brasileiros remonta ao período do Brasil Colônia, quando vigoraram as Ordenações Portuguesas...

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