Redefinindo o status jurídico dos animais

AutorThiago Pires Oliveira
CargoPesquisador-discente em Direito do Ambiente da Universidade Federal da Bahia
Páginas273-288

Ver nota 1

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na qual se realizaria uma "igual ponderação de interesses" para ter-se um Direito adequado aos imperativos éticos e morais que a sociedade humana exige.

1. Introdução

Este artigo pretende analisar um tema que seria considerado um dogma, ou melhor, um axioma pela doutrina do Direito Civil, conforme se observa do pouquíssimo espaço a que este tema é destinado nos manuais, isso sem citar a escassa relação de artigos e monografias que versem sobre esse tema que têm sido objeto de acaloradas discussões nos Estados Unidos e Europa, tanto no campo da filosofia do direito, conforme se observa as obras de filósofos como o australiano Peter Singer e o norte-americano Tom Regan, quanto no próprio Direito Privado, conforme se observam as obras paradigmáticas de autores como os juristas norte-americanos Gary Francione e David Favre, o jurista suíço Antoine

F. Goetschel e a magistrada francesa Suzanne Antoine e o jurista francês Jean-Pierre Marguenaud.

Assim, pretende-se refletir sobre o atual status jurídico dos animais no Direito brasileiro, fazendo-se uma abordagem realista, desconstruindo mistificações que são atribuídos àqueles que "ousam" enfrentar este tema, sem que isso signifique uma postura "pusilânime", ao contrário, pois serão tecidas as críticas cabíveis onde forem constatas as impropriedades do tradicional Direito Civil com relação aos animais.

Este texto está dividido em três partes: na primeira será feito um estudo sobre o tradicional tratamento dos animais no Direito Civil; para tanto, consulta-se a obra de grandes civilistas brasileiros, como Orlando Gomes e Clóvis Beviláqua, e estrangeiros como Martín Wolff e Karl Larenz; na segunda, será o animal analisado como bem público, difuso e ambiental; na terceira e última parte, serão feitas algumas considerações sobre a possibilidade do animal vir a ser considerado portador de um valor inerente a si próprio, analisando-se o seu status jurídico em recentes legislações de Direito Civil, de países como Alemanha e Suíça, e adequando à realidade brasileira, verificar a possibilidade de formulação de um status jurídico distinto do de "coisa".

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2. Visão civilista tradicional

Tradicionalmente, os animais2vêm sendo considerados pela Teoria do Direito como "coisas" submetidas a um regime de propriedade disciplinado pelo Direito Civil, especialmente pelos Direitos Reais. Estes, também denominados como Direito das Coisas, é na realidade um microssistema jus-civilístico dotado de normas e institutos que disciplinam "as relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação, estabelecendo um vínculo imediato e direto entre o sujeito ativo ou titular do direito e a coisa sobre a qual o direito recai e criando um dever jurídico para todos os membros da sociedade"3.

De acordo com clássica lição, os Direitos Reais se manifestariam sob duas formas: jus in re propria e jus in re aliena4. A primeira categoria seriam os direitos reais sobre a própria coisa, situação esta na qual o proprietário exerce seu domínio sobre de forma plena e imediata, e que é representada pelo direito de propriedade, enquanto a segunda corresponderia aos direitos reais sobre a coisa alheia, ou seja, aqueles direitos reais limitados que facultam a fruição direta e atual da coisa, sem o poder de disposição, ou que, sem permitir a utilização direta da coisa, destacam apenas determinada parte dos frutos para determinado fim, quando não propõe garantir o cumprimento de uma obrigação5.

Os direitos reais sobre a coisa alheia se subdividem, ainda, em: direitos reais de gozo ou fruição, formados pela enfiteuse, servidões, superfície, usufruto, uso, habitação e as rendas constituídas sobre imóveis; e direitos reais de garantia, constituídos pelo penhor, hipoteca e anticrese.

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Os direitos reais sobre a coisa própria somente se expressam com o exercício de um direito de propriedade sobre determinado bem. O termo "bem" tem sua origem na palavra latina bona, que, segundo Ulpiano, deriva do verbo latino beare, que significa "tornar feliz"6. Isto explica o significado filosófico do termo, segundo o qual bem seria tudo aquilo que proporciona ao ser qualquer satisfação7. Já a acepção jurídica se confunde com a própria noção de objeto de direito8; desse modo, seriam bens quaisquer valores materiais ou imateriais que podem ser objeto de uma relação de direito9.

A palavra "coisa" apresenta um duplo significado, segundo conceituação formulada em meados do século XIX pelo Conselheiro Antônio Joaquim Ribas: em uma acepção ontológica, coisa seria "tudo que existe ou póde existir"10, já numa acepção jurídica, "cousa é tudo quanto póde ser objecto de direitos, ou fazer parte do patrimonio de alguem, ou todo o objecto material susceptivel de medida de valor"11.

Interessante notar que esta definição, construída pela doutrina civilista do século XIX, ainda é utilizada pelo Direito Privado contemporâneo, conforme se observa nas palavras de autores como Orlando Gomes e Washington de Barros Monteiro para quem, a coisa seria "tudo quanto seja suscetível de posse exclusiva pelo homem, sendo economicamente apreciável"12.

Para que determinada coisa possa se constituir como objeto do direito, e assim, adquirir sentido jurídico, deve reunir os seguintes

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elementos: economicidade, permutabilidade e limitabilidade13. A economicidade é a possibilidade de avaliação econômica de um bem. A permutabilidade é a possibilidade de a coisa ser transferida do patrimônio de um proprietário para outrem. E a limitabilidade deriva do potencial de escassez que incide sobre certa coisa.

Assim, a "coisa", se encarada sob a semântica jurídica de objeto material suscetível de medida de valor, se diferencia do "bem" por ter um significado mais restrito que este, pois a coisa se limitaria àqueles bens que podem ser objeto de apropriação econômica, enquanto a palavra "bem" seria mais ampla designando todos os elementos que se configuram como objeto de uma relação jurídica.

O jurista alemão Karl Larenz não diferencia "bem" de "coisa", referindo-se a qualquer objeto de direito como "coisa", através da palavra alemã sachen, a qual qualifica perante o Direito como "objeto de direito de primeira ordem" se referindo como "objeto de direito de segunda ordem" aos direitos subjetivos e relações jurídicas dos indivíduos14.

Segundo a classificação de Larenz, um animal que estivesse sob domínio de alguém (ex: um chimpanzé sob o domínio de um circo) seria um objeto de direito de primeira ordem, pois também seres viventes seriam "coisas em sentido jurídico", de acordo com preleção deste mestre alemão15, enquanto que seria objeto de segunda ordem o direito de propriedade sobre o animal.

Orlando Gomes classifica os bens em três grandes grupos: os bens considerados em relação à própria natureza, os reciprocamente considerados e os considerados em relação ao sujeito. No primeiro grupo, os bens podem ser: a) corpóreos e incorpóreos, b) móveis e imóveis, c) divisíveis e indivisíveis, d) fungíveis e não-fungíveis, e) consumíveis e não-consumíveis, f) simples e compostos, g) singulares e coletivas, h) presentes e futuras16.

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No segundo grupo, podem ser os bens serem classificados em principais e acessórios. Já no último, quando os bens são considerados em relação ao sujeito, seriam aqueles divididos em públicos e particulares17. Nesta classificação ainda se inserem outras subdivisões de grande relevância para a consideração da natureza jurídica dos animais que são a divisão dos bens móveis em móveis stricto sensu e bens semoventes e a divisão dos bens móveis quanto a sua forma de aquisição quando os animais podem ser adquiridos pela tradição, o caso dos animais domésticos em geral (de companhia, de produção e de tração), ou, então, pela ocupação como é o caso dos animais entendidos como res nullius, coisas cuja propriedade não pertence a ninguém18, e como res derelictae, ou seja, coisas cuja posse e direito de propriedade foram renunciados pelo seu proprietário com a intenção de abandono19, e ainda, quando não poderiam ser apropriadas, mas sim utilizadas por qualquer pessoa, como é o caso das res communes ominium.

Analisando a legislação civilista brasileira no tocante ao status dos animais, percebe-se que a mesma considera os animais como simples "coisas", desconsiderando as diferenças que existem entre os animais entre si e outros seres vivos. Assim, são desprezadas quaisquer diferenças dos animais entre si quanto à espécie, gênero, família, ordem, classe, filo, pois todos seriam a mesma coisa; isto sem falar que, inclusive, são equiparados a seres de outros Reinos da biologia (como as plantas e os fungos), e, até com objetos sem vida como uma cadeira, ou uma peça mobiliária.

Diante desse quadro, o Código Civil de 1916 coerente com sua natureza patrimonialista, oriunda do ideário liberal-burguês do século XIX que se expressou juridicamente sob a forma do Códe Napoleón na França e do Bugerlich GesetzBuch (BGB) na Alemanha, este último fonte da qual "bebeu" o jurista Clóvis Beviláqua na elaboração do primeiro Código Civil brasileiro, concebeu os animais sob a forma mais

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patrimonialista e reificada possível, estando previstos como bens semoventes em seu artigo 47, "São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio (...)", o que implicaria em serem regidos sob o regime de propriedade previsto no artigo 524, segundo o qual o proprietário teria "o direito de usar, gozar e dispor de seus bens", e por estarem sem nenhuma proteção estatal, é plenamente explicável o fato de muitas espécies terem sido extintas no Brasil, pois o segundo o Código Civil da época se limitou a disciplinar a caça e pesca, estabelecendo as formas de "ocupação" e como o caçador ou o pescador adquiria seu direito...

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