Recusa brasileira à generalização do Direito do Trabalho e consequente exclusão das grandes maiorias

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas122-132

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A evolução jurídico-trabalhista no Brasil - em contraponto ao padrão europeu ocidental - evidencia, irrefutavelmente, a recusa sistemática à generalização do Direito do Trabalho em nossa economia e sociedade.

Essa omissão histórica tem constituído, no fundo, um dos mais poderosos veículos de exclusão social das grandes maiorias no País.

Na verdade, parece claro que o decisivo segredo acerca da impressionante exclusão social neste País reside no fato de o de senvolvimento capitalista aqui, ao longo do século xx, ter se realizado sem a compatível generalização do Direito do Trabalho na eco nomia e sociedade brasileiras - omissão que não permitiu a sedimentação de um eficaz, amplo e ágil mecanismo de distribuição de renda e poder no contexto socioeconômico.

Em síntese, há uma tradição na evolução do capitalismo neste País que se demarca pelo singular desprestígio e isolamento aqui conferidos ao Direito do Trabalho. Em contraponto à vitoriosa expe riência democrática europeia ocidental, no Brasil, cuidou-se de refre ar a expansão do ramo jurídico-trabalhista especializado ao conjunto da economia e sociedade - certamente objetivando atenuar seu comprovado efeito distributivo de poder e renda no contexto socio econômico.

Esse processo de isolamento foi patente na chamada Repúbli ca Velha.

Como se sabe, mesmo com a abolição da escravatura (1888), o País não chegou a construir, nas quatro décadas seguintes, um mercado de trabalho capitalista bem estruturado, com suporte no clássico instrumento de conexão do indivíduo a esse sistema econômico-social, qual seja, a relação de emprego. Muito menos instituiu um Direito do Trabalho efetivo, seja com fulcro na negociação coletiva, seja com base na legislação estatal, uma vez que ambas se mos traramrarefeitas até o início da década de 1930. Tudo isso certamente conectado ao fato

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de a industrialização - principal veículo de generalização das normas trabalhistas nas fases iniciais do capitalismo - ainda não se ter expandido de modo relevante na economia do País, já que apenas despontava, porém pressionada, nos meandros da hegemonia agroexportadora da época.

No período subsequente - entre os anos 1930 e 1945 -, é inegável que o Direito do Trabalho, à diferença da fase anterior, erigiu -se como inequívoca política pública oficial, no contexto de uma es tratégia estatal explícita de industrialização da economia e de incor poração política dos novos trabalhadores urbanos. Nessa medida, abriu-se importante exceção à tendência de recusa à generalização do Direito do Trabalho, afirmada nas décadas precedentes.

É bem verdade que essa generalização não seria plena, mes mo nos anos do desenvolvimentismo inaugurado em 1930. É que, nos marcos do compromisso político que dava sustentação à ditadura Vargas (1930-1945), que contava com o decisivo apoio das oligarquias estaduais conservadoras, o governo central cuidou de não permitir a extensão da legislação trabalhista ao campo brasileiro, deixando essa seara social e econômica ao arbítrio incontrastável dos fazendeiros oligarcas10.

Em consequência desse pacto político singular, cerca de 70% da população brasileira ficaria excluída dos efeitos modernizantes e progressistas do Direito do Trabalho, uma vez que a taxa de urbanização do País se situava, durante os anos 1930 e 1940, apenas em torno de 30%11.

No transcorrer do período democrático seguinte (1945-1964), deve ser reconhecido que o processo de generalização trabalhista se acentuou, embora ainda restrito às cidades. Essa acentuação de corria não só da continuidade do modelo econômico desenvolvimen tista iniciado em 1930 - naturalmente impulsionador da industriali zação e da urbanização -, como também do explícito interesse ofi cial em ver efetivado na sociedade o ramo jurídico trabalhista.12

Não obstante tais avanços, os governos democráticos desen volvimentistas dessa época não chegaram a implementar a efetiva extensão da legislação trabalhista ao campo brasileiro. Embora em 1963 tenham aprovado diploma legal nessa direção (Lei n. 4.214/63 - Estatuto do Trabalhador Rural), tal medida não produziu efeitos reais, em face da queda da democracia logo a seguir, em 1964.

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Com o regime militar (1964-1985), retomou-se a tradição de isolamento do Direito do Trabalho na história brasileira.

De fato, a falta de prestígio desse ramo jurídico no concerto das políticas públicas autoritárias era, sem dúvida, indissimulável. Não se pode esquecer, a esse propósito, que o regime se inaugura com centenas de intervenções nos sindicatos do País e a prisão e processamento dos mais combativos líderes do sindicalismo brasi leiro. Ainda em seu primeiro governo (1964-1967), estabeleceria po lítica salarial contracionista e inflexível, além de abrir combate mortal à sistemática de estabilidade no emprego e de indenização por tempo de serviço, regulada pela CLT dos anos 1940, por meio da criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (Lei n. 6.107/66).

Com a redemocratização de 1985 e a Constituição de 1988, conferiu-se novo status ao ramo jurídico trabalhista, reconheça-se. Despontava novo momento em que aparentemente se tornaria pos sível a reversão dessa antiga tendência isolacionista conferida ao Direito do Trabalho no capitalismo brasileiro. De fato, assegurou-se liberdade sindical e conferiu-se respeitabilidade às questões trabalhistas no bojo da vitória alcançada na luta contra o regime autoritário. Logo a seguir, com a Constituição de 1988, o Direito do Trabalho alcançou significativo destaque, com a ampliação da estrutura institucional para o implemento de sua efetividade (generalização da Justiça do Trabalho ao território brasileiro e incremento de novas e mais abrangentes funções para o Ministério Público do Trabalho). Ao lado disso, regras constitucionais importantes foram direcionadas ao Direito Individual e ao Direito Coletivo do Trabalho.

Contudo esse novo status foi imediatamente fustigado por nova linha de desgastes que se erigia quanto ao ramo jurídico especiali zado trabalhista.

É que, já desde o início da década de 1990, a contar do Gover no Collor, a velha tradição de isolamento e desprestígio do Direito do Trabalho - que tem respondido, em boa medida, pela brutal e inflexível concentração de riqueza e poder no cenário socioeconômico brasileiro - iria ganhar inusitadas cores culturais. De fato, nesse último período, iria se disseminar, no plano institucional e da socie-dade civil, o conveniente discurso sobre o suposto envelhecimento de tal ramo jurídico.

1. Dados Históricos

Ainda que seja inevitável reconhecer que o período iniciado na década de 1930 até 1945 - não obstante os graves efeitos da ideologia e prática autoritárias então dominantes - tenha se demarcado por significativo processo de inclusão social, o fato é que, também nessa época, o Direito do Trabalho não se generalizou para o conjunto do mundo laborativo brasileiro.

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Nessa medida, também esse período conferiu alguma continui dade à clássica tendência de forte exclusão oriunda da história precedente, dado que a modernização jurídico-trabalhista ficou restrita, à época, apenas aos segmentos urbanos da sociedade brasileira.

Ora, conforme visto, a legislação trabalhista estruturada ou ampliada naquela fase histórica não se aplicou aos trabalhadores ru rais, não obstante cerca de 70% da população do país ainda estivesse situada no campo. Isso permite concluir-se pela presença de uma dualidade no tocante à política pública e seus impactos socioeconômicos em tal momento histórico: de um lado, a constatação da existência de um real processo de inclusão social, via Direito do Trabalho, sistematizado a partir de 1930, com repercussões até meados da década de 1960 - e que teve grande relevância socio econômica, se contraposto às características da sociedade e eco nomia anteriores à década de 1930. De outro lado, também a constatação de que esse processo não deixou de ser...

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