Recriar a vida contratual e servir ao ser humano: Comunicação e informação nos contratos de adesão

AutorRafael Augusto de Moura Paiva
CargoDoutorando da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Investigador Associado do CEDC - Centro de Estudos de Direito do Consumo de Coimbra
Páginas61-144

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1. Noções iniciais: teoria geral do direito civil

Sendo o fato jurídico aquele ao qual o direito confere reconhecimento, não lhe sendo indiferente [contrariamente ao que ocorreria quanto (i) ao cair de uma pluma ou (ii) à utilização de uma gravata de certa cor, respectivamente fatos não jurídicos de natureza natural e social], os atos jurídicos possuem a particularidade de derivarem de uma "ação humana cujo efeito jurídico se prende à vontade do agente" (diferentemente dos acontecimentos fortuitos ou de ordem natural juridicamente relevantes, mas involuntários, como o nascimento, o decurso do tempo ou a morte)1.

Dentro da categoria dos atos jurídicos lato sensu situam-se os simples atos jurídicos (ou atos jurídicos stricto sensu) e os negócios jurídicos (Rechtsgeschäfte). Estes são atos jurídicos integrados por uma ou mais declarações de vontade (unilaterais no primeiro caso, bilaterais ou plurilaterais no segundo), com vista à produção de determinados efeitos prático-jurídicos (normalmente de caráter patrimonial), com ânimo de que o direito os tutele - e que o direito efetivamente tutela porque e na medida em que foram queridos2.

Enquanto no ato jurídico simples o efeito é produzido pela vontade do agente por mais que esta não estivesse direcionada para esta produção (sendo somente ex lege e não ex voluntate, como ocorre na gestão de negócios alheios ou na descoberta de tesouro), no negócio jurídico "os efeitos são produzidos justamente porque foram queridos e na medida em que o foram"3, como se verifica em relação ao testamento e ao contrato.

Assim, o contrato é, antes de mais nada, um negócio jurídico bilateral ou plurilateral, formado pela integração de duas ou mais vontades, visando à produção de todo e qualquer efeito reconhecido pelo direito4.

Ao conceito de contrato explicitado, costuma-se acrescentar um princípio tido como basilar para a definição do seu regime: a autonomia. Esta significa, em direito, autodisciplina: é uma atividade e um poder de regulamentação de interesses - sendo o interesse a relação entre aquele que sente necessidades e aquilo que é idóneo para as satisfazer - pelos próprios interessados (opondo-se à ideia de heteronomia, na qual este poder e esta atividade são provenientes de um terceiro ente, como as leis ou as decisões provenientes do Estado).

Da referida autonomia emana a liberdade contratual, isto é, a possibilidade que as partes têm de celebrar contratos. Contudo, a partir daqui - conforme salientou, nos ensinamentos do curso de doutoramento em direito civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, o professor doutor Sousa Ribeiro - podem surgir problemas: se é certo que a liberdade contratual vem

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ligada à liberdade em geral, também não se pode negar que possui algumas especificidades que podem fazer estremecer esta ligação.

De fato, o exercício da liberdade contratual conforma a conduta futura do contraente, acabando por implicar a perda de alguma liberdade ao vincular os interessados. Dito por outras palavras, é preciso saber, de verdade, que nos contratos busca-se a liberdade, mas o efeito várias vezes é o inverso5.

Assim, é conveniente ressaltar que a autonomia, enquanto nota integradora da ideia de contrato, não deve ser tida como (i) um poder absoluto e ilimitado de autorregulamentação de interesses pelas partes, nem como (ii) uma manifestação - não obstante a importância dada ao caráter volitivo dos atos e negócios jurídicos, consoante o que foi anteriormente exposto - de exaltação das vontades integradas, de tal modo que o contrato crie - como já se disse outrora - "lei entre as partes".

No que respeita ao primeiro ponto deste debate, superando-se o plano meramente teorético e ingressando na "pujança da vida real", a verdade é que nem sempre as partes poderão prever e querer o efeito jurídico que caracteriza o negócio: "os negócios jurídicos não são monopólio dos jurisconsultos", advertia, elegante e humanamente, Galvão Telles. De fato, face à complexidade das operações contratuais, queremos acreditar que nem mesmo o mais arguto e experimentado jurista poderia pensar, no momento da prática do ato, em todos os seus efeitos6.

Como solução para esse problema, fala-se em finalidades da autonomia da vontade7, de tal modo que a sua manifestação deve ter como destino a realização de valores (segundo pensamos, valores protegidos pelo direito8). A não realização destes valores, estejam eles representados na causa contratual ou até mesmo nos motivos individuais que levaram uma pessoa a contratar, será fonte de inúmeros problemas, os quais serão melhor analisados adiante.

Para já, o importante é sublinhar que a vontade das partes não paira acima da lei: a autonomia da vontade como poder supralegal é um dogma em que a ciência do direito já não crê há longo tempo... De fato, a verdade é que a própria lei impõe limites à autorregulamentação de interesses pelas partes, mas tais limitações não conflitam com a ideia de autonomia: basta os interessados disciplinarem por si as suas relações em inteira harmonia com os valores protegidos pelo direito.

Estes valores, como é natural, têm mudado com o decorrer do tempo, acompanhando o desenvolvimento da sociedade. Como veremos a seguir, vivemos numa mudança de épocas em que os tradicionais princípios - entre os quais a autonomia da vontade - apresentam-se como ultrapassados - quando

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menos parcialmente - e superados por outros mais novos e condizentes não só com a realidade que pulsa no seio social como naquilo que respeita à preocupação em relação às gerações futuras.

No plano destas mudanças, os contratos de adesão - em que aparece eliminada a fase de negociação do conteúdo contratual, restringindo-se a manifestação da vontade e dos interesses do aderente - estão como que "encravados" exatamente no meio das transições que marcaram o início dos períodos industrial e pós-industrial, respectivamente9. Assim, são o maior exemplo de como a exaltação da vontade (em nome da desigualdade) imperou - e de fato frequentemente ainda impera - e de como são necessárias as mudanças quanto a este tipo de pensamento. Lançando as suas bases sobre um princípio cuja elevação absoluta está fadada ao insucesso - conquanto à altura poucos se tenham apercebido disto - os contratos de adesão representaram, a um só tempo, a vitória e a ruína da teoria contratual. A nosso ver, parecendonos impossível - ou mesmo indesejável - eliminá-los do universo jurídico, a presente tarefa consiste em repensar esta forma de contratação face aos novos valores vigentes e em constante transformação.

2. A sociedade industrial moderna e o surgimento dos contratos de adesão

A noção de contrato acima exposta, associada dogmaticamente a uma ideia de autonomia ampla (enquanto princípio de direito contratual) dominou especialmente no século XIX, com a chamada sociedade industrial ou moderna, perdurando até meados do século XX. A nosso ver, embora tal "modelo social" se encontre, atualmente, ultrapassado, é conveniente relembrar o avanço destas ideias (a seu tempo), pois estão na origem da expansão dos contratos de adesão.

Naqueles tempos, enfim "livre" (designadamente do clero e da monarquia absolutista), a burguesia assume o comando da sociedade. No campo jurídico, exemplo primordial das mudanças que se delineavam é dado pelo Code Civil francês, conhecido como o "Código Burguês" por excelência, o qual reflete uma concepção de vida extremamente liberal e individualista, permitindo, durante o referido período, o crescimento e a difusão de ideias de autonomia privada - de onde emana a liberdade contratual - claramente exaltadas.

Sob tal óptica, fundada numa ideia de igualdade formal (o "eu" metafísico e sem vínculos históricos, abstratamente reduzido ao "ser", numa irredutibilidade

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essencial que torna todos como "iguais", simplesmente), é indiferente ao direito civil - e ao direito contratual - a posição que o destinatário de suas normas ocupa na sociedade.

Assim, no plano contratual, coloca-se uma excessiva importância na formação e manifestação da vontade de contratar, esquecendo-se - ou procurando omitir - que o poder de autodisciplina não é absoluto e difundindo uma ideia de que a celebração do contrato seria sempre justa, na medida em que atendesse à liberdade individual dos contratantes. Com efeito, se a vontade fosse formada e declarada por livre e espontânea vontade, tinha-se a ideia de um contrato justo, independentemente do seu conteúdo, generalizando-se a ideia consubstanciada no mote "quem diz contratual, diz justo"10.

Em relação à análise econômica deste período, como é sabido, a burguesia - ávida pelo lucro - passa a produzir em massa, potenciada pelos avanços tecnológicos da Revolução Industrial (como a descoberta da energia elétrica, da locomotiva e até mesmo do pára-raios, fornecendo a impressão de que o homem podia domar, mesmo nas suas manifestações mais terríveis, a natureza) e pelas Revoluções Americana e Francesa (as quais permitiram o acesso dos burgueses à "sala de controlo" do poder)...

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