Reconhecimento voluntário do filho

AutorZeno Veloso
Páginas59-82

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Ver Nota1

  1. Já se passou muito tempo, corria o ano de 1996, e uma eventualidade me fez passar quase um mês em Genebra. Aproveitei a oportunidade para fazer contatos na área acadêmica, visitar faculdades, bibliotecas, comprar livros, estudar. Naquela época, o doyen (decano, e, no caso, com signiicação de diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Genebra) era o famoso professor Martin Stetler, que eu conhecia de nome e de citações de vários mestres, autor de obras notáveis, dentre as quais o clássico “Le droit suisse de la iliation”, que adquiri numa livraria que ica próxima à faculdade e comecei a ler, imediatamente, com imenso proveito.

    Fiquei tão entusiasmado que, lá mesmo, na Suíça, resolvi escrever um livro sobre o tema. Finalmente, e graças a Deus, saiu o “Direito Brasileiro da Filiação e Paternidade”, editado pela Malheiros, São Paulo, em que já considerei os artigos do então Projeto de Código Civil sobre a matéria. O prefácio deste meu pequeno livro foi escrito por um querido amigo e mestre, jurista do maior mere-cimento, que é o nosso imenso João Baptista Villela.

    Procurei redigir um trabalho acessível e didaticamente pensado e elaborado, dirigido preferencialmente aos estudantes, apresentando a evolução histórica do instituto da iliação no ordenamento jurídico brasileiro.

    De lá para cá, muitas vezes retornei ao assunto, que é fascinante e ainda care-ce de muitos estudos e relexões. Com muito prazer, aceitei o convite para participar do 2º volume do livro “Temas Contemporâneos de Direito das Famílias”, e estou muito feliz em associar o meu nome a esse vitorioso empreendimento.

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  2. Começo o presente estudo com a mesma expressão com que iniciei meu citado livro: “A mais próxima, a mais importante, a principal relação de parentesco é a que se estabelece entre pais e ilhos”.

    Atualmente, muito mais que outrora, a iliação é um vínculo capital da organização da família. Por uma série de fatores econômicos, políticos, culturais, a família patriarcal cedeu lugar à família nuclear, e, neste novo modelo, os ilhos têm presença muito mais acentuada. A família moderna não é mais aquela numerosa do passado e, hoje, está praticamente reduzida ao seu núcleo fundamental – pai, mãe e ilhos.

    Em obra publicada pela Editora Saraiva – cujo Prefácio é escrito pelo caríssimo Rodrigo da Cunha Pereira –, denominada Direito Hereditário do Cônjuge e do Companheiro, combato a solução passadista e discriminatória do art. 1.790 do Código Civil, que faz o companheiro sobrevivente concorrer – e em posição de inferioridade – com os colaterais até o 4º grau do falecido, o que representa um absurdo, uma injustiça extrema, e, disse, repetindo observações que já apresentei em outros escritos: neste tempo em que vivemos, a concepção de família está se contraindo, para compreender, praticamente, o homem, a mulher e os ilhos, vivendo no lar conjugal ou no lar doméstico – e este é o modelo, apenas, do casal heterossexual. A família, agora, é muito diferente da família patriarcal. É menor, menos hierarquizada. Fala-se em família nuclear, na qual predominam os laços da afetividade e os princípios da liberdade e igualdade. O legislador não pode dar as costas para esse fato. Na sociedade contemporânea, já estão muito esgarçadas, quando não extintas, as relações de afetividade entre parentes colaterais de 4º grau (primos, tios-avós, sobrinhos-netos). Em muitos casos, sobretudo nas grandes cidades, tais parentes mal se conhecem, raramente se encontram.

    Vou tratar, a seguir, de alguns aspectos do reconhecimento voluntário da iliação, e esta matéria, igualmente, está impregnada desta nova ideologia, desta nova concepção da família, ou das famílias, para aproveitar a expressão plural e abrangente, que nossa colega Maria Berenice adotou e espalhou pelos quatro cantos do Brasil.

    Entretanto, numa síntese apertada, pretendo mostrar a evolução do tema em nosso ordenamento, que passou por etapas importantes.

  3. Em nosso direito pré-codiicado, quando vigiam as Ordenações Filipinas, os ilhos se distinguiam em legítimos e ilegítimos. Os ilegítimos se classiicavam em naturais e espúrios. Filhos naturais (ou simplesmente naturais, ou naturais em

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    espécie) eram os que nasciam de pais não casados um com o outro, não havendo, todavia, um impedimento que os levasse para a classe dos espúrios. Já os espúrios – desgraçadamente – eram os ilhos provindos do “coito danado e punível”, sendo assim considerado o ajuntamento entre o homem e a mulher, quando, ao tempo da concepção, existia alguma das restrições seguintes: I – impedimento de parentesco em grau proibido, denominando-se os ilhos incestuosos; II – impedimento resultante de investidura de ordens sacras maiores ou de entrada em ordem religiosa aprovada, classiicando os ilhos como sacrílegos; III – impedimento de vínculo matrimonial, chamando-se os ilhos de adulterinos. As duas subespécies, a dos adulterinos e a dos incestuosos, também eram conhecidas como de ilhos bastardos.

    As Ordenações Filipinas (L. IV, Tít. 93), reproduzindo o direito romano, mencionavam “os ilhos de clérigo ou de algum outro danado e punível coito” – nati ex damnato coitu vel nefariis nuptiis – e o nosso grande Clóvis Beviláqua – um jurista, um santo –, escrevendo no im do século passado, airmava não haver mais a iliação sacrílega, nem havia mais razão de ser aquelas “expressões deprimentes”.

    O ilustre autor do Projeto de Código Civil, que redundou em nosso primeiro Código Civil, de 1916, um dos maiores jus-ilósofos do Continente, nasceu em Viçosa, Ceará, em 4 de outubro de 1859, e era ilho de um sacerdote católico, o padre José Beviláqua, que vivia em concubinato com a mãe do nosso mestre, d. Martiniana Maria de Jesus. Sílvio Meira – romancista mundialmente reconhecido, nascido no Pará, o maior biógrafo de Clóvis – observa que era habitual, naquele tempo, nos sertões do Brasil, os sacerdotes criarem e educarem ostensivamente seus ilhos, e a moral da época isso permitia, lembrando que numerosos ilhos de padres ilustram a história brasileira: José do Patrocínio, Nilo Peçanha, Teodoro Sampaio, José de Alencar (cf. Sílvio Meira, Clóvis Beviláqua – Sua vida, sua Obra, p. 32).

    Quanto aos ilhos ilegítimos, Coelho da Rocha (Instituições de Direito Civil Português, t. I, §§ 296 e 297, p. 203), invocando Mello Freire e as Ordenações
    (L. II, Tít. 35, § 12) garante que os mesmos podiam ser reconhecidos (ou perilhados, como também se dizia), não só os naturais, mas também todos os espúrios. O nosso Lafayette Rodrigues Pereira (Direitos de Família, §§ 109, 127 e 128) leciona que não podiam ser legitimados, por matrimônio seguinte, os ilhos nascidos do adultério ou de incesto, mas podiam ser perilhados, tanto os ilhos naturais como os espúrios.

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    Proclamada a República, com a laicização do Estado (Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890), o Governo Provisório editou o Decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, cuja redação foi coniada ao jurista piauiense Antônio Coelho da Rocha, e não a Ruy Barbosa, como alguns autores supõem, equivocadamente. Dada a separação entre a Igreja e o Estado, esse decreto veio secularizar o casamento civil, e é um dos melhores textos legais que já tivemos.

    O Decreto n. 181, nos arts. 7º e 8º, ampliou os meios de prova da iliação natural, previstos na Lei n. 463, de 1847 – e há um primoroso estudo de Perdigão Malheiro sobre esta lei –, admitindo que o reconhecimento fosse feito: por conissão espontânea; por escritura pública; no termo de nascimento; ou em outro documento autêntico, oferecido pelo pai.

  4. O Código Civil de 1916, que entrou em vigor a 1º de janeiro de 1917, manteve a distinção dos ilhos em legítimos e ilegítimos. O direito brasileiro da iliação foi concebido e estruturado diante dessa classiicação, o que também ocorreu na legislação de quase todos os países. Isso mudou, radicalmente – graças a Deus –, mas a odiosa discriminação perdurou por um longo tempo.

    Por esse Código, segundo a sua redação original, legítimos são os ilhos concebidos na constância do casamento; ilegítimos são os ilhos cujos pais não estão unidos pelos laços do casamento, distinguindo-se em naturais, se entre os genitores não havia impedimento matrimonial na época de sua concepção, e espúrios (que expressão terrível, não acham?), se existia impedimento dirimente absoluto. Por sua vez, esses pobres seres humanos, classiicados como ilhos espúrios, podiam ser incestuosos e adulterinos. Incestuosos os ilhos de parentes ou ains em grau proibido para o casamento (o ilho havido de relações sexuais entre irmão e irmã, por exemplo). E adulterinos, os ilhos de homem casado ou de mulher casada com outra pessoa que não o cônjuge, podendo, portanto, a adulterinidade ser a patre e a matre.

    Dizia o art. 355 do Código Civil de 1916 que o ilho ilegítimo pode ser reconhecido por seus pais, conjunta ou separadamente. Foram admitidas três formas de reconhecimento voluntário da iliação: I – no próprio termo de nascimento; II – mediante escritura pública; III – por testamento. Tratava-se de enumeração taxativa; nenhuma outra forma poderia ser utilizada para a perilhação, sob pena de nulidade absoluta. O reconhecimento podia preceder o nascimento do ilho ou suceder-lhe ao falecimento, se tivesse deixado descendentes (art. 357, parágrafo único). Não se podia subordinar o reconhecimento do ilho a condição ou

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    a termo (art. 361). A eicácia do reconhecimento do ilho maior dependia do seu consentimento, e o menor podia impugnar o reconhecimento, dentro nos quatro anos, que se seguirem à maioridade ou emancipação (art. 362).

    O leitor atento e bem informado já deve estar concluindo que, mesmo tendo ocorrido, nas décadas que se seguiram, profundas transformações com relação a essa matéria, muitas das normas previstas no Código de 1916, sobre o reconhecimento voluntário da iliação, estão presentes na legislação atualmente em vigor.

    Observe-se, não obstante, que, pelo sistema do Código velho, os ilhos ilegítimos...

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