Reconhecendo a responsabilidade por dano Social

AutorJorge Luiz Souto Maior/Ranúlio Mendes Moreira/Valdete Souto Severo
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí/Juiz do Trabalho do TRT da 18ª Região; Ex-juiz do trabalho do TRT da 3ª Região/Juíza do Trabalho, Mestre em Direitos Fundamentais pela PUC/RS, professora e vice-diretora na FEMARGS/RS
Páginas59-115

Page 59

Vimos, no capítulo anterior, que a ordem jurídica brasileira optou claramente por adotar o paradigma da social-democracia, em detrimento de uma concepção individualista e liberal, que até então parecia de algum modo perpassar não apenas o texto constitucional como também as legislações daí derivadas. A modificação não se deu por benesse do Estado ou em decorrência de particularidades que interessam apenas ao jurista brasileiro.

O Brasil, em verdade, aderiu a um movimento em nível internacional, que diante de fatos significativos, vivenciados no século XX, entendeu por bem reconhecer a fundamentalidade dos direitos sociais para a construção de uma sociedade democrática como única forma aparentemente viável de permitir a continuidade do sistema.

É nesse contexto que a noção de dano social se faz presente.

Ao conceituá-lo, António Junqueira de Azevedo o apresenta como reflexo do momento atual de desenvolvimento civilizatório. Trata-se, de acordo com o jurista, de uma nova modalidade de dano, que se impõe diante das possibilidades da vida moderna. A viabilidade de praticar atos que extrapolem a esfera de alguém com quem mantenho determinada relação juridicamente relevante é o que impõe a necessidade de reconhecimento de uma nova espécie de dano, capaz de ser ressarcida de modo peculiar, justamente porque peculiares são suas consequências.

Nas palavras de António Junqueira de Azevedo:

Os danos sociais são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento do seu património moral — principalmente a respeito da

Page 60

segurança — quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva, por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as condições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população.76

Trata-se, pois, de responsabilidade firmada em pelo menos duas circunstâncias diversas: o caráter reparatório e o caráter pedagógico. Nesse segundo aspecto é que reside a principal diferença entre a noção de responsabilidade por dano social, confrontada à ideia de pena privada, que em certa medida dela se aproxima, como veremos a seguir.

O dano social, portanto, é género, do qual derivam as espécies, dano moral coletivo, que tem natureza jurídica de dano extrapatrimonial coletivo causado pelo ato ilícito e o "dumping social", que tem natureza jurídica de dano material coletivo77 (mensurável ou não), ocasionado também por ato ilícito, sendo, pois, perfeitamente cumuláveis, ainda que derivados do mesmo ato.

A pena, via de regra, destina-se a corrigir fato passado. A responsabilidade por dano social tem um relevante aspecto dissuasório, a fim de evitar a reiteração da conduta em momento futuro. Aqui reside seu caráter pedagógico, de prevenção78.

A prevenção apresenta-se como instituto importante no âmbito de um Estado que se pretenda democrático e, especialmente, inclusivo. Apenas prevenindo conseguimos evitar alguns danos que decorrem da complexidade mesma da sociedade contemporânea. No âmbito da administração pública, Juarez Freitas confere especial atenção à noção de prevenção, aduzindo que "a administração pública, ou quem faça as suas vezes, na certeza de que determinada atividade implicará dano injusto, se encontra na obrigação de evitá-lo"79.

Em outras palavras, o administrador "tem o dever incontornável de agir preventivamente", sendo mesmo inadmissível no contexto atual a mera inércia administrativa "perante o dano previsível". Em seguida, o autor afirma que "não se admite a inércia administrativa"80.

Page 61

O dever incontornável de agir preventivamente também se aplica ao juiz, que, diante da violação dos direitos humanos fundamentais trabalhistas e da reiterada prática da delinquência patronal, deve promover as tutelas de remoção do ilícito, ressarcitória e dissuasória, ainda que sem pedido da parte, para resguardar a eficácia e a higidez do ordenamento jurídico e, principalmente dos princípios que norteiam o Estado Democrático de Direito.

É fácil compreender que a ideia de prevenção de danos, como dever do Estado, impõe a esse agente público, inclusive, a obrigação de persuadir agentes privados a agirem em conformidade ao direito. Ou seja, a possibilidade de condenação, independentemente de pedido da parte, ao pagamento de indenização por dano social se inscreve, justamente, no conceito do dever de prevenção.

Tem especial importância, portanto, esse caráter dissuasório que é reconhecido ao instituto da responsabilidade civil e que atua por meio do Estado-Juiz, como decorrência do dever estatal de prevenção de danos, especialmente daqueles cujos reflexos prejudicam toda uma comunidade, e não apenas o sujeito diretamente envolvido.

O caráter punitivo e dissuasório da responsabilidade vem sendo revigorado no direito italiano, em face da premissa de que "Ia responsabilità civile ha conservato lafunzione preventiva di comportamento sociale"81 de tal forma que o juiz deve agir mais para prevenir comportamentos antissociais do que para reprimir comportamentos imorais82.

Embora a doutrina italiana mantenha a denominação de "pena privata", instituto de caráter flagrantemente reparador que, como bem pontua Rodrigo Trindade de Souza, não deve ser confundido com a noção de "punitive damages", do direito anglo-saxão83, há um forte movimento no sentido de conferir novos contornos ao instituto, justamente para lhe emprestar a função pedagógica de que tratávamos.

Quando trata da função de "pena privada" que a responsabilidade pode assumir, o doutrinador italiano Guido Alpa, por exemplo, faz expressa menção ao fato de que a importância desse viés da responsabilidade civil cresce significativamente no Estado Social, na exata medida em que cresce a industrialização e "Ia presa di coscienza dei diritti dei lavoratori" e das consequências do consumo de massa84.

Do mesmo modo, Paolo Gallo, em obra especialmente dedicada às chamadas "penas privadas", aponta que a responsabilidade da empresa em face de seus

Page 62

empregados e dos produtos que coloca no mercado, é a primeira realidade a determinar a criação de uma doutrina de responsabilidade sem culpa85, panorama dentro do qual ganha força o caráter punitivo e dissuasório da responsabilidade.

O autor refere hipóteses nas quais é necessária a consideração do caráter pedagógico da responsabilidade: quando não há dano, quando o enriquecimento de quem provocou o dano é maior que o dano em si, e quando o custo social do fato danoso é superior ao dano individualmente provado à vítima, notadamente nos casos de responsabilidade da empresa86. Faz referência, como de resto toda a doutrina que trata do tema, ao leaãing case Ford Corporacion x Grimshw, buscando na teoria do punitive damages, da qual trataremos a seguir, os fundamentos para essa "revigoração" do conceito e do objetivo das "penas privadas".

A discussão no caso Ford Corporacion x Grimshw versa sobre um modelo de automóvel produzido pela Ford que explodiu, matando seus passageiros. A perícia detectou que a explosão se deu em função de o motor haver sido colocado na parte dianteira e que essa medida havia sido adotada pela empresa em face da redução no custo de produção do automóvel de quinze dólares por carro.

A condenação por responsabilidade civil considerou não apenas o dano gerado à vítima direta, mas a necessidade de que a Ford compreendesse que condutas como aquela não são toleradas dentro de um Estado de Direito87. Ou seja, para coibir sua reiteração. Paolo Gallo sublinha o fato de que em tal caso, a aplicação da função punitiva e dissuasória da responsabilidade não decorreu da culpa da empresa automobilística, mas sim da extensão (social) do dano (e do risco) provocado88.

Exatamente aqui encontramos o fundamento para a responsabilidade por dano social.

A dificuldade na aplicação de uma indenização robusta em face do dano verificado, apontada pelos autores italianos que tratam da matéria, diz especialmente

Page 63

com a circunstância de que a decisão nesse sentido poderá gerar enriquecimento exagerado de uma das vítimas, em detrimento das demais. Esse argumento pode ser superado com a adoção da técnica de reverter o valor da indenização em favor de um fundo de execuções ou de amparo aos trabalhadores89, ou mesmo em prol da comunidade em relação à qual o dano é praticado. Sobre isso, melhor discorremos posteriormente.

O importante é perceber, desde logo, que na doutrina italiana o instituto ganha em importância pela percepção de que a indenização "punitiva" tem "fun-zione moralizzãtrice dei mercato" e isso significa que contra certos valores não se pode avançar, nem mesmo nos casos em que de um ponto de vista estritamente económico seria oportuno agir de outro modo90.

Mauro Cappelletti, desde a década de 1970, já preconizava essa necessária avaliação da realidade. Como escreve o referido autor:

Atividades e relações se referem sempre mais frequentemente a categorias inteiras de indivíduos, e não a qualquer indivíduo, sobretudo. Os direitos e os deveres não se apresentam mais, como nos Códigos tradicionais, de inspiração individualista-liberal, como direitos e deveres essencialmente individuais, mas metaindividuais e coletivos Continuar, segundo a tradição individualista do modelo oitocentista, a atribuir direitos exclusivamente a pessoas individuais [...] significaria tornar impossível uma efetiva proteção jurídica daqueles direitos, exatamente na ocasião em que surgem como elementos cada vez mais essenciais para a vida civil.91

Na perspectiva da reparação dos interesses e direitos coletivos (sociais), esse autor demonstra a insuficiência das soluções jurídicas que mantêm a legitimidade da correção no âmbito das ações individuais dos lesados, nos limites estritos de seu dano, e mesmo de outras que...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT