Reconfiguração dos institutos do repouso remunerado aos domingos e em feriados no comércio brasileiro entre 1997 e 2013

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas193-200

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1. Introdução

O modelo econômico capitalista deflagrou uma contínua disputa sobre o controle do tempo dos indivíduos. De um lado, o capital se apropria do tempo das pessoas e o instrumentaliza para servir a uma determinada racionalidade, fazendo com que elas se dediquem cada vez mais a produzir, consumir e gerar lucros. No lado oposto, os trabalhadores assalariados buscam limitar progressivamente os períodos de sujeição à lógica da acumulação.
é possível distinguir claramente três fases desse conflito ao longo da história: a primeira fase se inicia com a indus-trialização e sob a influência do pensamento liberal até a Segunda Guerra mundial. Nesse período, apenas as horas dedicadas à produção importavam no cálculo dos salários. O Estado somente intervinha no mercado para assegurar o funcionamento do capitalismo, criando normas que obrigavam os indivíduos a se sujeitarem à condição assalariada. As jornadas eram extensas e impostas unilateralmente pelo comprador da força de trabalho, gerando a resistência dos operários e sua organização coletiva. O sindicalismo e os direitos coletivos, a Organização Internacional do Trabalho e o ramo específico do Direito do Trabalho surgem nessa fase, resultantes da luta dos trabalhadores pela delimitação da jornada e da duração semanal do trabalho, e pelo descanso dominical.

A segunda fase corresponde ao período em que a resistência dos trabalhadores leva à superação do pensamento liberal e à constitucionalização dos direitos relativos à limitação da jornada, da duração semanal do trabalho e do descanso dominical. Nesse período, o Estado passa a assumir o papel de mediador social do conflito, tutelando o trabalho em troca da submissão dos trabalhadores à lógica da acumulação capitalista.

A terceira fase se inicia com os movimentos contestatórios do final da década de 1960, e se caracteriza pelo recrudescimento do pensamento liberal e por um revolucionário avanço tecnológico, capaz de destruir todas as fronteiras: entre os países, entre as mercadorias, entre os tempos de trabalho e os de não trabalho.

No final do século xx, o fenômeno da globalização, ou seja, o livre fluxo de capitais, pessoas, mercadorias e informações pelo mundo, propiciou às empresas adotarem uma formação em rede e empreenderem uma reestruturação em seu modelo produtivo, com a extinção e a transferência, dire-ta ou por meio de subcontratações, de plantéis inteiros para qualquer ponto do globo onde os custos do trabalho e das matérias primas fossem menores, no intuito de aumentar a competitividade e o lucro. Os Estados voltaram a adotar uma postura intervencionista protetora do mercado, já que as fronteiras da soberania progressivamente dissipadas possibilitavam a hegemonia de organismos financeiros multilaterais, como o Fundo monetário Internacional (FmI), a Organização mundial do Comércio (OmC) e o Banco mundial, a pautar as políticas econômicas internas.

Todos estes fatores contribuíram para uma grave crise paradigmática nas relações de trabalho assalariado, com o deslocamento de grandes massas de trabalhadores da indústria para os setores do comércio e de serviços, além de níveis inéditos de desemprego e informalidade. Os conceitos tradicionais de subordinação, contrato de trabalho, de empregado e empregador, construídos para o ramo específico do Direito do Trabalho, tornaram-se insuficientes para dar conta das inúmeras transformações ocorridas. Os novos arranjos

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espaço-temporais que emergiram da reestruturação produtiva e da rápida evolução tecnológica de comunicações e informações introduziram uma vertente qualitativa à duração laboral, pois já não bastava a quantidade de horas dedicadas ao labor, mas as diversas maneiras de composição de horários, em função das exigências da demanda.

Neste período de vácuo conceitual, ocorreram inúmeros debates sobre a necessidade de se reconstruir o arcabouço teórico juslaboral a fim de atender às novas exigências do mercado de trabalho presente e futuro, mormente aquelas relacionadas ao tempo.

No Brasil, os efeitos desse processo somente foram sentidos um pouco mais tarde, já que a mobilização popular conseguida com a campanha das Diretas Já (1983-1984) e a forte organização sindical estavam voltadas para a redemocratização do país e ofereciam grande resistência aos ímpetos liberalizantes. Estes movimentos tiveram grande influência sobre a Assembleia Constituinte de 1987 e garantiram a inserção de diversos direitos trabalhistas em lugar de destaque no novo texto constitucional. Contudo, logo depois da promulgação da Constituição de 1988, a nova lógica mundial do mercado livre aportou no país e alçou o poder, nele permanecendo por toda a década de 1990. O ímpeto de desconstrução da moldura constitucional de proteção ao trabalho incidiu primeiramente sobre os salários e, mais tarde, sobre o tempo de trabalho e sobre as formas de entrada, saída e configuração da relação empregatícia.

Esse é o panorama em que se insere a luta dos comerciários em torno do descanso dominical e do repouso em feriados de que trata o artigo. Em 1988, o instituto de repouso semanal remunerado aos domingos no comércio era configurado a partir das disposições do art. 7º xV da Constituição da República, dos artigos 67 a 70 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), pela Lei Federal n. 605 de 1949, regulamentada pelo Decreto n. 27.048 do mesmo ano, e por posturas municipais, tendo em vista a competência dos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local, inclusive o horário de funcionamento do comércio. O repouso em feriados não foi inserido no texto constitucional, sendo regido pelas disposições constantes da CLT, da Lei n. 605 de 1949 e seu decreto regulamentador.

O direito de não trabalhar aos domingos e feriados não era absoluto, já que as empresas que comprovassem, ao ministério do Trabalho, a necessidade de funcionamento, obtinham autorização, permanente ou provisória, por meio de decreto do Poder Executivo1. Em tais circunstâncias, o empregador deveria elaborar uma escala de revezamento tal que possibilitasse ao comerciário repousar periodicamente aos domingos e conceder folga compensatória na mesma semana.

Em agosto de 1990, o Decreto n. 99.467 foi promulgado, e seu art. 1º “facultava o funcionamento aos domingos do comércio varejista em geral, desde que estabelecido em acordo ou convenção coletiva”, mantendo a competência dos municípios para legislar sobre assuntos de interesse local. A partir de então, o trabalho aos domingos no comércio varejista foi tornando-se cada vez mais comum, por meio das Convenções Coletivas negociadas entre os sindicatos das categorias envolvidas2.

2. As reconfigurações do repouso semanal aos domingos no comércio

Em 1994, o presidente Itamar Franco3 editou a medida Provisória (mP) n. 794, cujo texto estabelecia as regras de participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, a qual foi reeditada trinta e oito vezes, ganhando nova numeração devido à demora do legislativo em apreciá-la.
Quando encontrava-se em sua trigésima nona reedição4

– em 08 de agosto de 1997, já no primeiro mandato do Presidente Fernando henrique Cardoso – foi inserido um sexto artigo à norma, cujo teor nenhuma relação mantinha com o conteúdo original da medida Provisória, auto-rizando o funcionamento do comércio varejista em todos os domingos.

A inserção desse dispositivo deflagrou uma disputa judicial no Supremo Tribunal Federal (STF), entre os trabalhadores e os empregadores do comércio, que perdura até os dias atuais, e que se caracteriza por um embate em torno de uma mesma norma que sofreu um contínuo processo de desenho e redesenho ao longo dos anos.

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Tabela 1

Ações diretas de inconstitucionalidade sobre repouso remunerado aos domingos no comércio entre 1988 e 2012

O art. 6º da mP n. 1.539-34 retirou a previsão de prévia negociação coletiva para que o comércio varejista em geral pudesse exigir o trabalho aos domingos, sendo este um dos motivos5 para que a Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio (CNTC) ajuizasse a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 1.650. A demora do Congresso Nacional em convertê-la em lei, ou rejeitá-la, provocou nova reedição à medida Provisória n. 1.539, acarretando a extinção da ADI
n. 1.650 por perda de objeto, já que a jurisprudência do STF exige o aditamento da petição inicial a cada reedição de medida Provisória, objeto de impugnação por ADI6.

A CNTC promoveu nova ação (ADI 1.675) em face da medida Provisória n. 1.539-35, logrando obter, desta feita, decisão liminar para sustar os efeitos do art. 6º7, levando o governo do Presidente Fernando henrique Cardoso a reeditar a medida Provisória com modificações na redação do art. 6º e a inclusão de um parágrafo único, em que se estabelecia o repouso aos domingos em no mínimo um a cada quatro semanas, e a remissão para a negociação coletiva, acarretando a extinção da ADI n. 1.675 por falta de aditamento da inicial.

O recuo do governo não impediu o ajuizamento de mais uma ação direta de inconstitucionalidade pela CNTC (ADI
n. 1.687), mas foi suficiente para o indeferimento de nova liminar, já que o texto alterado passou a prever o repouso em um domingo a cada quatro trabalhados. Após seis meses e sucessivas reedições da mP n. 1.539, a falta de aditamento da inicial levou mais uma vez à extinção da ação por perda superveniente do objeto.

Em agosto de 1998, a CNTC voltou a impugnar a referida medida Provisória, que nesse momento assumia o
n. 1.698-46, com a propositura da ADI n. 1.8608. Daí em diante, a medida Provisória continuou a ser reeditada até ser convertida na Lei n. 10.101, de 19 de dezembro de 2000, sem alterações no texto. Nesse momento, o instituto do repouso semanal remunerado aos domingos no comércio varejista

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