A recepção do direito romano nas Universidades: Glosadores e Comentadores

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas29-41

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O presente texto corresponde à versão fidedigna da prova escrita realizada pelo autor (então candidato), durante o período de cinco horas contínuas, em concurso público voltado ao ingresso no quadro docente do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Área de História do Direito). Conquanto não tenha se mostrado suficiente à obtenção da indicação então pretendida, resta-nos, tão somente, trazer à lume o material então apresentado, com o fito de que venha a ser analisado por um público mais amplo – aliás, nos moldes da sabatina pública por que passava qualquer candidato ao “doutoramento” durante o procedimento que outrora se conduzia no âmbito da universidade medieval. Que venham, pois, as críticas mordazes do leitor voraz. A única alteração que se fez no texto seguinte corresponde à transposição – quando possível e sem prejuízo para a adequada compreensão do sentido da exposição – das referências bibliográficas lançadas originalmente no corpo do texto (e que nesta versão integrarão, quando possível, as notas de rodapé que o acompanham). Contudo, nenhuma inovação – mesmo quanto a esse particular aspecto (salvo ao aludido reposicionamento) – foi promo-vida, preservando-se a integridade do documento então produzido. Faça-se, apenas, uma ressalva: o texto apresentado é incompatível com as extensas (e fatigantes) notas de rodapé que acompanham os escritos que temos a oportunidade de produzir esporadicamente. Peculiaridade decorrente das circunstâncias em que tal exposição foi ultimada. Pois, por óbvio, a abundância dos materiais de pesquisa, bem como a vastidão dos temas abordados se mostra incompatível com a necessidade de síntese que então nos premia. Naturalmente, assim, procurou-se desenvolver um estudo sério, estruturado, balizado e – sobretudo – estribado na demonstração atrelada à enunciação da autoridade de algum “caput scholae” que se dedicou “ex professo” ao assunto tratado.

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§ 1. Introdução: o declínio do direito romano no “Ocidente” com a queda de Roma (476 d.C.). A queda do Império Romano do Ocidente assinala não apenas o encerramento da Idade Antiga (e a inauguração da Alta Idade Média), mas também o declínio do direito romano na feição ocidental do Império, outrora dividido por Diocleciano; sob o prisma estritamente jurídico (ou seja, tomando-se em consideração o panorama das fontes do direito romano), pode-se dizer que a evolução do direito no Ocidente não ultrapassa o período pós-clássico, beneficiando-se tal porção do “extinto” Império dos “benefícios” da cristianização e da centralização da produção legislativa, conquanto não tenham aí infiuído, ao menos em um primeiro momento, os resultados da obra sintetizadora justinianéia. Com efeito, nesta porção do Império Romano encontraremos, em princípio, uma projeção tão somente de fontes como o Código Teodosiano, o Epítome de Gaio, as obras de juristas como Paulo e Papiniano, além de fragmentos de compilações privadas, como os Códigos Gregoriano e Hermogeniano; tudo reunido em uma obra de síntese, típica do domínio visigótico, designada por “Lex Romana Visighotorum”.

§ 2. Questão prejudicial I (conjectura): a permanência de um direito romano “vulgarizado”, com projeção, inclusive, no âmbito peninsular. Feitas tais considerações, resta cercada de cautela – quando não mesmo controvertida – a alusão a um “renascimento” do direito romano por meio da universidade medieval. Com efeito, conquanto inegável sua importância no que concerne ao resgate do direito romano justinianeu, não se pode desprezar a infiuência que, durante toda a Idade Média Alta, o “direito romano pós-clássico” desenvolveu na porção oci-dental do Antigo Império Romano1.

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§ 3. Questão prejudicial II (na Península Ibérica): a infiuência durante o período de dominação visigótica de um direito pós-clássico, com infiuência cristã e centralizadora. Com efeito, a aná-lise da evolução histórica por que passou o direito romano nos revela que nem sempre todas as suas fontes se evidenciaram providas de uma mesma exuberância e vigor; assim, os costumes, as leis e os plebiscitos, que outrora desempenharam uma função significativa, agora (estamos a falar do período pós-clássico) cedem espaço a fontes diversas, com especial destaque às constituições imperiais. Por tal razão, este direito romano que remanesce nas fontes bárbaras (“leges romanorum”) tem um acentuado perfil centralizador, evidenciado pela preponderância dos Códigos Teodosiano, Hermogeniano e Gregoriano, em detrimento das autoridades de Paulo (“Sententiae”), Papiniano (“Responsorum”) e da jurisprudência clássica; com efeito, tal manancial será extremamente importante no esforço que os primeiros monarcas (particularmente no contexto português) dispensarão, no sentido da mitigação das fontes populares e conciliares – incluam-se aí também as oriundas das Cortes – em detrimento de um processo de centralização da produção legislativa2.

§ 4. A história tradicional: o surgimento da universidade medieval sob os moldes de uma corporação de ofício. Observe-se que grande parte da evolução tecnológica humana não decorre da invenção de novos instrumentos, mas sim da atribuição – a instrumentos preexistentes – de novas funções (divisadas pelo usuário). Assim, a “universidade medieval” não desponta como uma criação ab-rupta (“ex novo”), mas sim com base na experiência preexistente das “corporações de ofício”; de fato, espontaneamente despontam na Baixa Idade Média – ora por iniciativa dos alunos, ora de seus mestres – as primeiras universidades. Paris, Oxford, Bolonha... Exemplos mais lapidares, respectivamente, do centro de produção intelectual devotada à teologia, à filosofia, ao direito. Mas o surgimento da “universitas magistrorum et scholarum” não coincide com a opulência que podemos divisar em uma história contemplativa de uma

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realidade já desenvolvida (conquanto não acabada); em verdade, o início da universidade medieval é caracterizado pela simplicidade e pela participação ativa dos estudantes. Cientes de que certo professor passaria pela localidade, se arregimentavam no sentido de obter do mestre seus valiosos conhecimentos; ainda mais valiosos em um cenário no qual “inexistiam” (quase) as obras de consulta com que estamos familiarizados3.

§ 5. A fundação do Estudo Dionisiano. Como não poderia deixar de ser, ainda que com um ligeiro atraso, Portugal também contou com uma universidade, já em 1290, conforme se pode depreender da Bula papal que autorizou a criação do Ensino Dionisiano. Com efeito, a tradicional Universidade de Coimbra de hoje conta com mais de sete séculos de existência, caracterizada por profundas reformulações pedagógicas que assinalam sua história. Contudo, por ora, basta-nos destacar que até meados do século XIII os estudantes portugueses não eram formados senão à custa do recurso a pessoal e instituições estrangeiros, nem sempre a recebê-los de maneira extremamente calorosa e gentil. De fato, os estrangeiros agrupavam-se em “nationes” nas diversas universidades de então (tomemos Bolonha, por exemplo); após seus estudos, no mais das vezes, retornavam às suas origens. Uma ou outra exceção poderia se verificar, por meio de estudantes mais brilhantes que permaneceram na Universidade, após a realização dos respectivos exames, com o intuito de ali lecionar. Toda a vida universitária era cercada de um “ritual” bastante diferente do que podemos divisar hoje: durante o seu “doutoramento”, por exemplo, o candidato era primeiramente examinado em sessão secreta, por uma Banca Examinadora (presidida por seu mestre orientador) que deveria trata-lo como se “filho” fosse; após, era então lançado às “feras” (os...

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