Raízes da resistência humana aos direitos dos animais: Bloqueios psicológicos e conceituais

AutorSteven J. Bartlett
CargoProfessor Titular de Filosofia da Universidade de Oregon (EUA)
Páginas17-66

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I Introdução: animais como propriedade: este é o problema?

Animais são propriedade. Estas três palavras - e suas implicações jurídicas e conseqüências práticas - resumem as doutrinas e jurisprudências dominantes [...] e a realidade dos ativistas do direito animal.1

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Para muitas pessoas em nossa sociedade, a idéia de direitos subjetivos para outros animais é quase "inconcebível". Isso porque a nossa relação com a maior parte dos animais é baseada na exploração: nós os comemos, caçamos e usamos em uma variedade de formas que os prejudicam. A idéia de que estes animais sentem dor e que têm interesses que clamam por reconhecimento revela-se incômoda.

Enquanto forem considerados propriedade, vamos enfrentar severas limitações na nossa capacidade de proteger os animais e seus interesses.

Em todos os aspectos juridicamente relevantes, outros animais possuem características que nos motivam a desconsiderar convenções e posturas, e a perceber que temos ignorado e violado seus direitos por muito tempo. Os animais não são "coisas" e um sistema legal que os trate como mera propriedade é intrinsecamente falho.2Os partidários dos direitos dos animais e da mudança de seu status jurídico têm sido eloqüentes na defesa dos animais, mas costumam, quase universalmente, ignorar as mais importantes forças que tendem a comprometer ou bloquear a realização dos seus objetivos. Todo esforço em defesa da mudança de paradigma que feche os olhos para essa realidade estará prejudicado desde o início. Estarão fadados a serem ineficientes porque falham ao confrontar, enfrentar e tentar desfazer a realidade que define a experiência e a opinião daqueles que se opõem a seus ideais. Como ficará claro neste artigo, essas realidades estão profundamente enraizadas tanto no inconsciente psicológico da maioria dos homens quanto no sistema conceitual que essa mesma maioria aceita sem questionar.3Até o momento, as discussões a respeito do status jurídico dos animais não humanos têm sido centradas em questões como a

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propriedade e a capacidade processual, mas nenhuma delas tem dado a devida atenção à psicologia humana e às bases teóricas que freqüentemente estão em jogo por meio de reflexos automáticos e incontrolados. A lei e o direito são produtos da atividade humana e carregam, inevitavelmente, os padrões da mentalidade humana.

Gary Francione recentemente escreveu: "Rotular alguma coisa como propriedade, é, de qualquer maneira, concluir que a entidade rotulada não possui nenhum interesse que mereça proteção, sendo apenas um instrumento para os fins determinados pelo proprietário".4Tal ponto de vista enfatiza a questão da propriedade e, em última análise, a relativa à personalidade jurídica. Entretanto, precisamos questionar: são essas questões as mais importantes se desejamos entender as dificuldades vivenciadas na luta daqueles que advogam pelo direitos dos animais?

Derek St. Pierre afirmou que o discurso jurídico atinente ao tema se desenvolve em torno de três preocupações básicas: "reconhecimento do valor social dos animais não-humanos através de ações de responsabilidade civil, reconhecimento legislativo do relevante interesse dos animais não-humanos em sua própria vida e na quebra da barreira entre as espécies, desafiando e reestruturando as doutrinas da capacidade jurídica".5Apesar de mais abertas, tais perspectivas ainda não tratam de maneira suficiente os obstáculos que freqüentemente frustram os advogados dos direitos dos animais.

O que está em jogo, de acordo com Nussbaum é "uma das questões morais mais cruciais de nosso tempo".6Essa é uma questão que certamente demanda a nossa atenção e preocupação, assim como um nível bem mais profundo de análise. Como os leitores desse artigo sabem muito bem, existem conseqüências jurídicas e morais que decorrem da visão que valora os animais não-humanos como simples coisas inanimadas e disponíveis. Enquanto muitas das conseqüências jurídicas

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têm sido articuladamente enfrentadas, o problema fundamental ainda precisa ser revelado.7Um problema pode ser definido como a distância que existe entre o estágio atual e um estágio a ser alcançado.8Para os defensores dos direitos dos animais o estágio a ser alcançado é acertadamente definido por Joyce Tischler, Diretora Executiva do Animal Legal Defense Fund [Fundo Legal de Defesa dos Animais], que escreveu:

Aqueles que, como nós, estão no coração do movimento em defesa dos animais, almejam um mundo no qual a vida e os interesses de todos os seres sencientes sejam respeitados pelo sistema jurídico, de modo que os animais de estimação tenham uma morada confortável e boa durante toda sua vida, que os animais silvestres possam viver livremente de acordo com seus instintos, em um meio ambiente que atenda suas necessidades, num mundo onde os animais não sejam explorados, aterrorizados, torturados ou controlados para servir a propósitos humanos gananciosos ou frívolos.9Este objetivo permanece relativamente distante do estágio atual das coisas, e, portanto, um vazio pode ser identificado e um problema definido. É imperativo que nós entendamos quais as forças que definem o presente estágio se nós queremos construir a ponte para o futuro

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descrito por Tischler. O presente estágio das coisas é mal compreendido porque tem sido apenas parcialmente traduzido em termos que se tornaram familiares: o status de propriedade dos animais não-humanos, o conceito de personalidade jurídica, as doutrinas relativas à capacidade jurídica, entre outros.10O estágio atual da legislação de proteção dos animais pode ser descrito em dois níveis: o primeiro, em termos de discurso jurídico; o segundo, em termos das estruturas conceituais e psicológicas que influenciam e realçam o primeiro.

No discurso jurídico, tem ocorrido um gradual aumento no número de casos em que os Tribunais têm decidido que o valor de um animal não pode ser reduzido e equiparado ao valor de uma mera propriedade.11Em paralelo, tem havido um aumento considerável no número de ações bem sucedidas por dano moral decorrente de maus-tratos e morte de animais não-humanos12. Finalmente, houve casos esporádicos nos quais

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o autor foi um animal não-humano cuja capacidade processual não foi contestada13. Em muitos desses casos, mudanças jurídicas e atitudes humanas relacionadas à coisificação jurídica dos animais não-humanos parecem estar ocorrendo.

Entretanto, precisamos discernir se esses casos representam verdadeiras mudanças no status de propriedade dos animais ou apenas refletem um aumento no reconhecimento judicial dos sentimentos humanos para com eles14. O Juiz Andell, em seu alardeado voto em Bueckner v. Hamel15, parece recomendar que o valor de um animal nãohumano seja determinado em função do seu valor para as pessoas e, ao assim proceder, ele enfatiza prioritariamente o papel do sentimento humano nessa ponderação de valores:

O direito deve ser sensível à dinamicidade dos conhecimentos e dos fatos. Não sendo assim, corre o risco de se tornar irrelevante como instrumento de

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resolução dos conflitos. Há muito que a sociedade já ultrapassou a insustentável visão cartesiana de que os animais seriam meros autômatos, insensíveis, reconhecendo que os animais são seres emotivos e sencientes capazes de fornecer companhia para as pessoas com as quais convivem. Sendo assim, os Tribunais não deveriam hesitar em reconhecer que, na atualidade, um grande número de pessoas neste país trata seus animais de estimação como membros da família. De fato, para muitas pessoas, eles são os únicos membros da família.

Perder um animal de estimação querido não é o mesmo que perder um objeto inanimado, por mais estimado que o objeto possa ser. Mesmo um legado de grande valor sentimental, se perdido, representa uma perda comparável à de um ser vivo. Essa distinção se aplica ainda que o ser vivo em questão seja não-humano.

[...] Como dito acima, concordo com a análise e com os rumos da opinião majoritária. Esclareço, porém, que o simples testemunho de que um animal é um companheiro querido deveria, em regra, ser suficiente para justificar uma valoração dos danos muito acima do valor de mercado deste animal e de sua prole eventual.16Em algumas ocasiões, os tribunais têm admitido explicitamente o especial valor de um animal de companhia em relação ao seu proprietário17, mas, ao assim procederem, seguem o padrão de se estabelecer valores em termos antropocêntricos. Raramente o Poder Judiciário considera os animais não-humanos como fins em si mesmos, seres que possuem interesses próprios. Quando o foco do debate se desvia para esta direção, tem-se discutido a tentativa de situar o status legal de animais não-humanos em algum lugar entre a propriedade e as pessoas.

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A "propriedade" possui valor enquanto agregada a um fim. "Pessoas", de outro lado, são fins em si mesmas. Os direitos reais constituem um "grupo de relações jurídicas entre pessoas regulando o uso das coisas". Doutrinadores argumentam que não pode existir qualquer relação jurídica entre pessoas e coisas, e que as coisas não podem ter direitos. Por estar na última categoria, a propriedade está inserida entre aqueles institutos que não possuem quaisquer interesses próprios que devam ser respeitados.18Neste contexto, a questão jurídica central é atualmente resumida da seguinte maneira: "Animais não são humanos e não são objetos inanimados. No entanto, até o momento, o Direito possui apenas duas categorias claramente separadas para lidar com essa distinção: propriedade ou pessoas".19Os parâmetros observados nas ações de responsabilidade civil costumam se basear não sobre a perda do animal não-humano em...

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