Racializando as diferenças regionais: São Paulo x Brasil, 1932

AutorBarbara Weinstein
CargoDepartment of History - University of Maryland ? College Park
Páginas281-303
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Barbara Weinstein
Department of History
University of Maryland College Park.
Os paulistas formaram dentro da raça e da Pátria uma clamorosa
aberração. São Paulo era grande demais para o Brasil... O Brasil
não chega bem a ser uma civilização, é uma precariedade, em
grande parte de carácter equatorial, [enquanto] São Paulo é uma
civilização européa cristã, com a mentalidade, o clima, a internaci-
onalidade, os recursos duma civilização européa crist ã.2
A narr ativa padrão da história pós-colonial brasileira re trata a consolida-
ção do Estado ce ntralizado sob o do mínio de Getúl io Vargas nos a nos 30 com o
tendo efetivamente suprimido as robustas identidades regionais, as quais e ram
um traço saliente da polít ica e da cultura bras ileira durante o primeiro século de
inde pendência. De acordo com essa crôni ca da formação do Estado-naç ão,
sob a nova ordem pós-f ederalista, as oligarquias polít icas regionai s subordina-
ram-se à heg emonia do estado central e as elites econô micas locais gradual-
mente articularam seus i nteresses vis ando um projet o para a in tegração econ ô-
mica nacional3. Brasile iros de todas as regiõe s e de todas as classes sociais
adotaram a “democracia rac ial” co mo um discurso hegemônico da identid ade
nacional, em lugar da ideo logia do “branqueamento” que domino u o pens amen-
to racial durante a República Velha (1889-1930). O conceito de democracia
racial, c omo defi nido pel o seu principal arquiteto intelectual, Gilb erto Fre yre,
imaginou uma nação ba seada numa fusã o harmoni osa entre cult uras euro péias,
africanas e indígenas, perfazendo uma única nacionalidade que, a despeito do
papel “principal” desempenhado pelos brasile iros desce ndentes de e uropeus,
rejeitou a discriminação racial e valorizou as t radições cu lturais não europé i-
as4. Em resumo, o regime Vargas não apenas operou para a centralização da
política e da economia, mas também promov eu uma identidade nacional homo-
gênea que transce ndeu à s vari ações regionais e aos costum es.
Em déca das rec entes , ho uve uma enxurr ada de livr os e ar tigos r ejei-
tan do o conce ito de “de mocraci a r acial” como um mito que obsc urece a
con tínua di scrimin ação sof rida pelas pessoas de co r no B rasil , ou c omo u m
dis curso ofic ial que tem sido o m aior obs táculo p ara o s movime ntos em fa-
vor da iguald ade racial e da justiça so cial.5 Tais est udos têm sido muito
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val iosos para as lutas polític as c ontempo rânea s no Brasi l mas, fre qüente-
men te, têm como defeit o ocu ltar a fal ácia fu ncion alista que t rata a “de mo-
cra cia raci al” como um co nceit o que emerg e com o únic o propós ito de obs-
cur ecer a dis crimina ção racial e abs olver as e lites de q ualquer cul pa pel a
des igualda de raci al.6 Com cer teza, ess e aspec to do dis curso aju da a expl i-
car sua longa popu laridad e ent re os segm entos m ais p odero sos da soc ieda-
de bras ileir a, m as difi cilme nte expli ca c omo e por que a dem ocrac ia r acial
eme rgiu co mo um elemento imperativo de identidade nacional (com um ape -
lo que foi m uito al ém de e lites v oltadas para s eus pró prios intere sses), em
pri meiro lugar, e não con sider a as circ unstânc ias his tóric as (e dis curso s
rac iais c ontra ditór ios) q ue pro duzir am o traba lho de Freyr e e possib ilita ram
o flo resci mento de suas id éias.7
Novamente, há muito tempo supõe-se que a noçã o de “democracia raci-
al”, quaisquer que sejam seus defeitos e limitações, superou e deslocou o dis-
curso racial, e serviu para homogeneizar ainda mais a identidade nacional. Neste
ensaio, contudo, argumentarei que continuou existin do uma pluralidade de dis-
cursos sobre raça e s eu lugar na i dentidade nacional brasileira, e que esses
discursos estavam intimamente con ectados com identidades regi onais que per-
sistiram além dos an os Vargas. Crucial para a continuidade do des envolvimen-
to d a identidade regional (mas ao mesmo tempo nacional) foi a c onstrução da
diferença racial com b ase em origens re gionais, com imagens de modernidade
e p rogresso econômico, tradição e atra so, as quais foram estreitamente inter-
conectadas com representações de raça. De fato, em uma nação “racialmente
democrática” em que a discussão explícita sobre raça era cada vez mais desa-
provada, a i dentidade regional poderia convenientemente substituir as n oções
de “escurecimento” e “embranquecimento ”. Mais especif icamente, sustento
que a identidade regional no Estado de São P aulo, id entidade paulista, pa ssou
a se r associada, na cultura brasileira, não apenas à indústria, à modernidade e
ao progresso ec onômico, mas t ambém ao embranquecimento e a uma narrativa
parti cular na hist ória brasil eira que marginali zou o papel dos afro-brasil eiros na
construção da nação. Além disso, ess a identidade conti nua a info rmar os deba-
tes sobre cidadania e inclusão política no século XXI.
Há muitas maneiras diferentes de explorar a relação entre raça e regiona-
lismo no Brasil, mas nenhum momento parece ser mais adequado a esse propósi-
to do que o períod o de 1931/1932, o qual assistiu a uma escalada de tensão entre
São Paulo e o recém instalado regime Vargas, culminando numa guerra civil, com
duração de três meses, entre um governo do esta do insurgente e as forças fede-
rais.8 A Revolução Constitucionalista de 1932 foi um momento crucial para se
considerar o que significava ser paulista, como isso se relacionava com o ser
REVIS TA ESBOÇOS Nº 16 — UF SC

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