Meio Ambiente do Trabalho: a Questão do Poder Empregatício e a Violência Silenciosa do Perverso Narcísico

AutorAldacy Rachid Coutinho
Páginas37-46

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"‘Passamos de uma cultura fundada no recalque dos desejos e, portanto, cultura da neurose, a uma outra que recomenda a livre expressão e promove a perversão. Assim, a ‘saúde mental’, hoje em dia, não se origina mais numa harmonia com o ideal, mas com um objeto de satisfação. A tarefa psíquica se vê enormemente atenuada, e a responsabilidade do sujeito apagada por uma regulação puramente orgânica’. E você escolheu como título da sua comunicação: ‘Introdução à nova economia psíquica’." 1

1. Introduzindo a questão no meio ambiente do trabalho

Meio ambiente do trabalho é, ao mesmo tempo, o espaço no qual o trabalho (força de trabalho) é prestado como elemento e em proveito de uma organização de fatores de produção no mundo capitalista e o conjunto "significativo, simbólico e comunicativo que orienta os comportamentos",2 pelas "condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida" na forma de tempo de trabalho (art. 3º, inc. I, Lei n. 6.938/81).

Deve ser apreciado, sempre, no espectro dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana,3 em uma perspectiva não monetarista. É despiciendo, desta forma, perquirir sobre a natureza do vínculo jurídico que se estabelece com quem presta trabalho, pois afeta diretamente a constituição da subjetividade trabalhadora. As críticas direcionadas a ditas concepções, ante a ausência de precisão quanto a que tipo de trabalhador se referem, eis que não permitiria identificar

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e aplicar quais os direitos que seriam reconhecidos senão a partir de um certo enquadramento jurídico da relação (emprego, voluntário, autônomo, etc.), é reducionista da análise. As questões que envolvem o meio ambiente do trabalho não podem se restringir a aspectos obrigacionais/contratuais, nem a recortes econômico/financeiros, nem a quaisquer manifestações de poder e domínio.

A análise das questões afetas ao meio ambiente do trabalho não pode ser enfrentada por regras jurídicas correlacionadas a higiene, segurança e medicina do trabalho - saúde em sentido estrito; isto porquanto diz respeito ao direito constitucional ao trabalho, o direito à vida saudável no meio ambiente de trabalho, de sorte a permitir o pleno desenvolvimento das potencialidades profissionais, sociais e psicológicas do indivíduo. Desta forma, a necessidade apontada para aportar uma dimensão psicológica que envolve o trabalho é altamente relevante, atual e adequada diante das formas usuais de gestão de pessoas aplicadas no espaço empresarial atualmente.

Não por outro motivo os estudos sobre os impactos psicológicos do trabalho na contemporaneidade, vinculados à reestruturação produtiva, com a incorporação de novos paradigmas da produção, aos aspectos de violência, de patologias psicológicas (neuroses, perversões), vêm crescendo quantitativamente. Apontam, entretanto, para diferentes possibilidades de análise, quer pela via da SLN - Síndrome Loco-Neurótica, um verdadeiro gatilho para depressão, alcoolismo e outras drogas,4 quer pela possibilidade de existência de doença mental no trabalho, isto é, o trabalho como um fator de risco na psicopatologia (loucura no trabalho) 5,

ansiedade e angústia, quer pela via do stress no trabalho, tido como "processo de tensão diante de uma situação de desafio por ameaça ou conquista"6 cuja manifestação pode se dar por meio de práticas de assédio moral, quer por identificação de agressões pela via do mobbing, ou seja, "l’enchaénement, sur une assez longue période, de propôs et d’agissements hostiles, exprimés ou manifestês par une ou plusieurs personnes envers une tierce personne"7, privando a vítima de toda possibilidade de se exprimir, isolando-a de seu ambiente social, desacreditando-a, comprometendo a sua situação e saúde ou, enfim, estudos sobre a subjetividade.8 Várias são as tentativas de análise, embora todas tenham em comum o fato de que dizem respeito a práticas ocorridas no meio ambiente de trabalho, relacionadas com o poder e a organização.

Todavia, se é sobretudo no campo das relações sociais no meio ambiente de trabalho que são incentivadas pelas organizações certas práticas de violência silenciosa, dita simbólica 9 nem todas as formas de assédio moral são identificadas como manifestações de "assédio moral organizacional", sendo estabelecida uma distinção com práticas de "assédio moral perverso".

O assédio moral organizacional é identificado como a opção pelo emprego da violência como política de gestão.10 A partir do momento em que acarretam um incremento da produtividade e eficiência, são recebidas como legítimas formas de administração dos interesses empresariais no mercado competitivo e não como práticas de violência.

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O assédio moral perverso agregaria, como a referência indica, manifestações reiteradas, contínuas, de "perversão moral" nos atos de gestão, com a consequência da aniquilação do outro decorrente da incapacidade de considerar os outros indivíduos como seres humanos. Hirigoyen define o assédio moral perverso como sendo "qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho".11

Diz-se sobre tal manifestação, que esta se revela como uma das condutas mais difíceis de serem percebidas, dada a multiplicidade e sutileza com que se apresenta. A questão é de máxima relevância pelas consequências negativas das práticas destrutivas de pessoas. Mas o ponto principal da dificuldade, o busilis da questão, está na identificação do momento em que o ato praticado deixa de ser uma legítima e jurídica manifestação do poder empregatício para se caracterizar como uma manifestação de violência real, do tipo assédio moral. Ora, no direito do trabalho transita sempre certa violência, legitimada pelo direito, pois o emprego é caracterizado pela extração da mais-valia, ou seja, do trabalho não pago (violência da exploração), sendo ainda o espaço e domínio sobre a classe trabalhadora pelos capitalistas (violência simbólica). E, agregue-se, ainda, outro complicador: o combate a tais práticas de aniquilamento do outro, que se vê transformado em objeto por meio de uma estrutura discursiva, pressupõe o reconhecimento do outro enquanto pessoa, mas a doutrina laboral é voz uníssona ao precisar que o conteúdo e o objeto do contrato de trabalho é exatamente a força de trabalho (mercadoria) - objeto, eis que não seria possível, após a superação do modelo econômico escravista, que um sujeito/indivíduo/trabalhador fosse reduzido a conteúdo do contrato de trabalho. O sujeito da contratualidade, pessoa trabalhadora, permanece oculto na relação jurídica por detrás do trabalho-força de trabalho que seria, no ideal, o escopo das manifestações do poder e domínio.

É preciso, então, desde logo, precisar que a dominação do capital sobre o trabalho, a dominação de classe, se manifesta como expressão de um poder simbólico de construção da realidade. As produções simbólicas são instrumentos de dominação e de integração social, por meio de conhecimento e comunicação para formação do consenso, que pressupõe um sentido do mundo social e a reprodução da ordem social. E, ainda, como pondera Bourdieu,

É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’ cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a ‘domesticação dos dominados’.12

Há de se estabelecer uma distinção entre poder simbólico e a violência simbólica. Só se exerce o poder se ele for reconhecido (crença) como legítimo, ignorado como arbitrário, transformado, dissimulado, mascarado, sem o uso da força: "poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário".13

Já a violência simbólica transita pela força. Assim, ao passo que o exercício normal do poder empregatício se manifesta pelo poder simbólico, o assédio moral transita nos caminhos da violência simbólica ou real.

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Ditas manifestações de violência, por submissão interna, nem sempre são perceptíveis, nem as vítimas se sentem intimidadas: atuam no silêncio; grande parte das vezes são assumidas como contingência de um modelo próprio de gestão de pessoas ou são introjetadas e assumidas enquanto culpa.

Parece ser a projeção de uma das características da atual sociedade ocidental, mais do que uma simples identificação de uma contingência em um ambiente de trabalho. Aspectos da cultura contemporânea são particularmente propícios a tais manifestações de violência simbólica no exercício do poder, sendo possível a identificação de consequências sobre as subjetividades.

O enfrentamento da questão que interessa ao presente texto passa, então, pelo reconhecimento de uma sociedade atual pautada pela perversão comum, tendo como marco teórico a obra de Jean--Pierre Lebrun, que se traslada para o meio ambiente do trabalho, no qual a perversão narcísica se expressa como violência silenciosa, não encontrando resistência, como pontuado nos estudos do psicanalista e filósofo André Martins.

Merece destaque a necessária advertência ao leitor sobre o fato de que não se está a generalizar a análise aqui empreendida, nem se quer afirmar que todo ambiente de trabalho é nocivo ao sujeito trabalhador, nem que todo empregador ou titular de poder é um perverso...

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