Quem é o Trabalhador Boia-Fria?

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas210-233

Page 210

“É, boia-fria é um título que dá ao trabalhador rural é pelo fato dele levá, carregá o caldeirão, né? E chega lá, então come frio, né? Então ficô esse título aí aos panhadô de café, às pessoa que trabalha na roça de boia-fria, por causa disso, né? Mas o termo é falado. É falado porque, como se diz, já foi autorizado, né? De boia-fria por causa desse sistema, né?”

Francisco1

1. Introdução

Foi-nos incumbida a instigante tarefa de apresentar um ensaio sobre o trabalhador conhecido como boia-fria, o qual, para muitos, é meramente uma bucólica imagem do lavrador que se alimenta na plantação com a refeição trazida de seu lar e, por isso, já fria no momento do almoço.

Entretanto, após poucos segundos de reflexão, inevitavelmente surge o questionamento sobre os motivos pelos quais essas pessoas não podem ter um almoço digno, devidamente acomodadas e com comida quente. A resposta para tal indagação revela que aquele quadro é um: a miragem, escondendo a realidade brutalmente violenta do trabalho rural no Brasil, bem como trazendo terríveis lembranças do tempo da escravidão.

Com efeito, o estado de marginalização dessas pessoas atinge o cerne dos problemas sociais do Brasil: exploração desumana do trabalho, distribuição de riqueza e reforma agrária. Evidentemente, esse artigo não tem o intuito de fazer uma abordagem detalhada de todos esses aspectos, o foco será na exploração deste trabalhador e o tratamento jurídico conferido à questão. Contudo, como

Page 211

tais elementos estão intimamente ligados, é impossível não fazer referência a eles, ainda que de passagem.

Além de delinear o objeto do presente estudo, essa introdução tem o escopo de fixar suas premissas teóricas, sendo importante, desde logo, deixar claro nosso posicionamento pela centralidade do trabalho em nossa sociedade capitalista, na medida em que entendemos ser o trabalho o diferencial do ser humano como espécie. Neste diapasão, os ensinamentos de Karl Marx:

Precisamente por isso, na elaboração do mundo objetivo é que o homem se confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica e operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra e a sua efetividade. O objeto do trabalho é portanto a objetificação da vida genérica do homem: quando o homem se duplica não apenas na consciência, intelectualmente, mas operativa, efetivamente, contemplando-se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele.2

O trabalho ao qual estamos nos referindo é o trabalho útil:

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.3

Então, a crise do trabalho exaltada por alguns é a crise na sua vertente abstrata, como criador de valores de troca.4 Seja porque o trabalhador não mais desempenha papel estruturante na criação de valores de troca, seja porque assume forma de trabalho estranhado ou fetichizado mais do que em épocas anteriores.5

Por outro lado, não se pode desprezar que o valor social do trabalho foi erigido como um dos fundamentos da República no art. 1º, inciso IV, da Constituição, sendo certo que ele somente será relevante na medida em que, quantitativamente e qualitativamente, sirva à elevação da condição humana, não podendo ser destruidor de sua dignidade.6

A razão para darmos este relevo à Constituição é o entendimento de que este texto normativo tem uma força própria. Neste sentido, Konrad Hesse:

Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar esta ordem.7

Não se prega aqui o completo descolamento entre as normas e a realidade, visto que existe um condicionamento recíproco entre tais fatores. Assim, a Constituição é condicionada pela realidade

Page 212

fática e, ao mesmo tempo, condicionante desta. Contudo, ela não pode ser puramente concebida como expressão das relações de poder, ou seja, das condições sociais, políticas e econômicas.8Portanto, pretendemos realizar uma interpretação das normas constitucionais de modo que elas se concretizem com excelência, não sacrificando a finalidade de suas proposições em razão de uma mudança no ajustamento das forças políticas. Mais uma vez, as lições do autor alemão são precisas:

Em outras palavras, uma mudança das relações fáticas pode — ou deve — provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situação.9A interpretação do Direito não pode ignorar as mudanças ocorridas na sociedade, todavia há limites constitucionais para essa tarefa, bem como condições básicas do capitalismo que, por óbvio, não se modificaram: a produção e o lucro dependem da exploração do trabalho.

Para tanto, tentaremos colocar em prática o método do Direito Social discutido nas aulas de Teoria Geral do Direito do Trabalho ministradas pelo Professor Jorge Luiz Souto Maior na Pós- -Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, motivadoras dessa obra coletiva.

O método consiste na análise da realidade com os olhos daquele a quem se destina o Direito Social, o pobre, aquele que precisa de proteção jurídica ou de uma atitude promocional de natureza institucional, sendo esse o verdadeiro sentido da solidariedade.10Nas próprias palavras do jurista:

O Direito Social — e esta é a fase atual do Direito, tomada como pressuposto de análise —, afastando qualquer abstração, pressupõe, concretamente, a análise valorativa dos problemas identificados na sociedade capitalista a partir do postulado da necessidade de preservação e elevação da condição humana, tendo como método o olhar das pessoas que se encontram em posição economicamente débil no seio da sociedade, ou de alguma forma fragilizadas, em razão das limitações culturais que se produzem socialmente, embora, quanto aos efeitos, não se limite, exclusivamente, a tais pessoas, visto que a racionalidade provocada se irradia ao Direito com um todo, já que o capitalismo é, em última análise, um modelo de sociedade que acaba se introduzindo no próprio inconsciente das pessoas, as quais, desse modo, tendem a reproduzir essa lógica. O Direito Social, a partir desse olhar, objetiva a formulação das coerções eficientes para impor limites necessários às relações capitalistas, visualizando a superação das injustiças sociais geradas.11Desse modo, é possível, por meio da problematização da sociedade a partir das aflições alheias, efetuar uma análise crítica da realidade e estimular práticas emancipatórias da condição humana.12 O entendimento do trabalhador como pessoa permite a formação de uma consciência de classe, como seres humanos que vivem do trabalho, bem como o florescimento da solidariedade, conforme preleciona Marcus Orione Gonçalves Correia:

Page 213

Há que se buscar o posicionamento do trabalhador como verdadeiro sujeito não apenas no momento em que coloca a mercadoria (força de trabalho) à disposição do empregador, mas em todos os instantes da relação. Deve ter tido sempre como sujeito que não se desprende da sua parte da obrigação pactuada — prestar trabalho, mediante uso da força. Não há como conseguir a solidariedade entre trabalhadores, sem que estes possam, ainda que nas relações individuais de trabalho, ser vistos como homens e não como coisas (mercadorias). Afinal, coisas não são solidárias; homens sim podem ser solidários. Logo, cada interpretação jurídica no plano das relações individuais de trabalho se faz importante para devolver ao homem a sua dimensão humana, auxilian- do para que se possa afastá-lo do processo de reificação em que está envolto e contribuir para otimização da consciência de classe.13Não é por outra razão que o tópico seguinte versará sobre a exploração do trabalho rural no Brasil. Essa exposição é fundamental para que seja feita, na próxima parte, não só a abordagem das condições de trabalho do boia-fria e do tratamento jurídico dado ao problema, mas também apontamentos críticos decorrentes da utilização do mencionado método. Aliás, também ficará claro que nem ao menos a interpretação literal da Constituição tem sido feita, prevalecendo uma mentalidade escravagista aliada a interesses econômicos de grandes conglomerados.

2. Seus antepassados

O intuito desse artigo é apresentar o famoso trabalhador volante, sendo certo que para conhecer uma pessoa é imprescindível saber de sua história, motivo pelo qual será abordado, nos limites possíveis desse estudo, o desenvolvimento do trabalho rural no país.

Como é sabido, durante quase quatro séculos conviveu o Brasil com a escravidão, enraizando em nossa cultura um preconceito contra o trabalho manual e, fundamentalmente, contra os negros e índios, repercutindo até nos dias atuais. Sérgio Buarque de Holanda lembra que havia uma rotulação associada aos trabalhos do escravo, a qual infamava não só quem os praticava, mas igualmente seus descentes.14O ordenamento jurídico tratava essas pessoas como coisas, objetos de propriedade e sujeitos à vontade de seus proprietários, além de estarem impossibilitados de desempenhar tarefas do Estado ou escolher funcionários para desempenhá-las.15Ainda em relação ao Direito, Décio Saes faz também interessante...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT