Ascensão e queda da estabilidade no emprego no Brasil

AutorJoão Paulo de Souza Carneiro
CargoProcurador do Estado de Santa Catarina
Páginas5-10

Page 5

Introdução

O presente artigo aborda a questão da estabilidade no emprego no Brasil. O instituto, hoje visto como "privilégio" dos servidores públicos, já beneficiou trabalhadores da iniciativa privada no passado, antes mesmo da edição da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A recordação das origens da nossa legislação trabalhista demonstra que o reconhecimento da estabilidade no emprego para os trabalhadores da iniciativa privada, que hoje é algo praticamente impensável, era um dos fundamentos da disciplina das relações de trabalho em nosso país. Somente com a criação do sistema do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, em 1966, é que a estabilidade deixou de ser obrigatória.

O resgate da história da estabilidade no emprego é oportuna para revelar que a admissão da despedida imotivada de forma irrestrita é fruto de um retrocesso civilizatório sofrido pelo Direito do Trabalho brasileiro.

1. A Revolução Industrial brasileira e a afirmação social do operário

A percepção social da relação de trabalho como categoria específica, do ponto de vista jurídico e econômico, verifica-se somente com o avanço da industrialização. É esse processo, juntamente com a urbanização, que vai despertar a necessidade de regular ligações de produção que não são sustentadas em imperativos morais, como a lealdade e afidelidade, disciplinadores da interação entre senhores e servos, nos feudos, ou entre aprendizes e mestres, nas corporações de ofícios. No Brasil, a industrialização, com a consequente percepção social da relação de trabalho, inicia-se de forma consolidada na década de 30 do século XX.

Antes de deflagrada a sua "Revolução Industrial"1, o Brasil apresentava uma estrutura social típica de país agroexportador.

A classe dominante era composta por uma reduzida oligarquia rural, cujo poderio assentava-se no cultivo da terra e na exportação de produtos agrícolas, notadamente o café. A esse grupo de fazendeiros, inteiramente associados ao capitalismo britânico e depois ao norte-americano, interessava a preservação do padrão de inserção da economia brasileira no cenário internacional, caracterizado pela exportação de alimentos e matérias-primas e pela importação de bens industrializados.

De outro lado, a classe baixa, em que se concentrava a grande maioria da população, era formada essencialmente por trabalhadores agrícolas. Como um todo, constituía uma grande massa cuja vida era marcada pela pobreza, pelo analfabetismo e porcondições de saúde precárias. Do ponto de vista da produção, desenvolviam um trabalho de baixa produtividade, dentro de uma economia de subsistência altamente subdesenvolvida. A personagem "Jeca Tatu", criada por Monteiro Lobato, ilustra com precisão como era o típico homem do povo de então.

Entre a oligarquia agrário-comercial e a grande massa de trabalhadores estava situada a pequena, mas crescente, classe média. Geralmente ligada por relações familiares com a classe alta, compunha os quadros do funcionalismo público e do Exército, realizando fundamentalmente os serviços burocráticos.

A estrutura social vigente no Brasil antes de 1930 não propiciava condições para um desenvolvimento industrial consolidado, ao contrário: favorecia a perpetuação do domínio dos grandes fazendeiros. Contudo, a crise de 1929, iniciada com a quebra da Bolsa de Nova Iorque, fornecerá a variável externa necessária à desestabilização do esquema de poder econômico então vigente no país.

A crise de 1929 teve como epicentro os Estados Unidos, que já naquela época era a maior economia capitalista, e afetou drasticamente todas as demais nações industrializadas, consumidoras de nossas exportações. Em decorrência da crise nos países importadores, houve uma baixa expressiva dos preços dos produtos agrícolas, o que prejudicou a oligarquia agrário-exportadora brasileira, cuja riqueza baseava-se no comércio de café2. Diante desse cenário, ficou patente a necessidade de diversificar a economia nacional, podendo-se dizer que, no plano interno, a crise de 1929 é a crise da economia cafeeira, monotemática e centrada no campo.

O enfraquecimento da economia cafeeira favorece os opositores internos da oligarquia agroexportadora, composta por industriais e membros insatisfeitos do Exército, dando-lhes a força necessária para promover uma mudança política. Essa alteração é consumada com a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder.

Umavez no poder, Vargas adota uma política de defesa do preço do café, promovendo a compra e posterior queima de estoques. Com isso, logra-Page 6 se a manutenção das cadeias produtivas associadas ao nosso principal artigo de exportação, mantendo-se o nosso nível de demanda interna. Isso, associado à perda de poder aquisitivo externo, causada pela queda vertiginosa nas exportações, leva a um grande aumento no preço dos artigos manufaturados no mercado nacional, tornando proibitiva a importação de tais artigos. Abre-se, assim, uma grande oportunidade para que os empresários nacionais realizem investimentos altamente lucrativos no setor industrial: entre 1930 e 1939 foram criados 12.232 estabelecimentos industriais no país, contra 4.697 no decênio anterior3.

Aalteraçãonovetordodesenvolvimentoeconômico acarreta uma alteração correspondente na estrutura social. Se, antes, os principais atores econômicos eram o fazendeiro e o trabalhador rural, com o processo de industrialização passam a ser o empresário industrial e o operário. O empresário industrial típico era imigrante ou filho e neto de imigrante pertencente à classe média4, ao passo que o operário provinha do campo, atraído pelos salários mais altos da indústria e pelas melhores condições de saúde, educação e alimentação oferecidas pela cidade. Como agente relevante do processo de desenvolvimento econômico emergente, o operário ganha posição social suficiente para ser enquadrado como grupo à parte, detendo um razoável poder de reivindicação política:

"Este novo setor da classe baixa, constituído fundamentalmente pelos operários industriais, além de gozar de um padrão de vida superior ao dos camponeses, de poder ter melhor alimentação, mais saúde e melhor educação, veio apresentar uma diferença fundamental de caráter político em relação ao setor tradicional, formado de trabalhadores rurais. Enquanto estes jamais tiveram participação política, sendo sempre completamente dominados e controlados pelos "coronéis" do interior, os operários industriais vão-se constituindo pouco a pouco um grupo relativamente organizado, participante, e com razoável poder de reivindicação."5

O operário, antes relegado a espaços marginais e associado ao anarquismo, ganha reconhecimento social. Essa valorização torna-se visível no momento em que os textos legais tratam o operário como "empregado", o que denota a sua equiparação aos demais trabalhadores urbanos, inclusive no que concerne à concessão de direitos, rompendo com uma distinção terminológica até então feita pelo meio empresarial. A esse respeito, observam Augusto Zanetti e João Tristan Vargas:

"Na fala dos empresários e seus representantes, os empregados eram os trabalhadores de escritórios, vendedores, etc., enquanto os operários eram os trabalhadores manuais. Nos textos patronais, a palavra empregado só passou a ser usada para designar operários a partir da década de 1930, devido às necessidades de referência à legislação de trabalho produzida naquele tempo, a qual adotou essa nova terminologia. O fato lingüístico que distinguia operários de empregados denotava um abissal diferenciação no modo como os representantes patronais viam a possibilidade de serem concedidos direitos a um e outro grupo de trabalhadores. A idéia de conceder férias, por exemplo, só era admitida para os empregados.6

O processo de industrialização em curso e o aparecimento do operário como agente econômico relevante reclamam uma novadisciplinajurídica, adequada às novas circunstâncias fáticas emergentes. A relação de trabalho passa a ser encarada como uma relação específica, não enquadrável nos institutos do Direito Civil. Em atendimento a essa demanda regulatória, nasce a legislação trabalhista, condensada na Consolidação das Leis do Trabalho em 1943.

2. De operário a empregado: a edição da CLT

A "Revolução Industrial Brasileira" iniciada em 1930 provoca uma mudança na identificação do trabalhador-paradigma: em substituição ao camponês da lavoura cafeeira, o operário torna-se o principal agente do desenvolvimento econômico, ao lado do industrial. À afirmação do operário como personagem social relevante seguem reflexos na seara legislativa.

No período anterior a 1930, houve diversas tentativas de implantação de leis trabalhistas avançadas em nosso país, que não obtiveram êxito. Dentre essas tentativas, vale mencionar os projetos de lei de Moraes e Barros, sobre locação agrícola, de 18957, de Nicanor do Nascimento, sobre locação no comércio, de 1911, e o de Maximiliano de Figueiredo, que pretendia instituir um Código de Trabalho, de 1915. Contudo, não se pode dizer que a inércia legislativa sobre o tema era total, podendo-se citar como leis relacionadas ao mundo do trabalho a Lei 4.682, de 19238, que criou as caixas de aposentadorias e pensões para os ferroviários, e a Lei 4.982, de 19259, que dispunha sobre o direito a férias. Cabe ressaltar que tais leis não regulavam as relações de trabalho de forma global, limitando-se a uma disciplina fragmentária e seletiva.

O governo que assumiu o poder depois da Revolução de 1930 demonstrou empenho em dotar o país de uma legislação trabalhista, sendo intensa a atividade nesse campo: somente no período 1931-32, foram editados o Decreto 19.671-A10, dispondo sobre a organização do Departamento Nacional do Trabalho, o Decreto 19.77011...

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