Punibilidade como Elemento na Teoria do Delito. Impressões Atuais da Teoria do Delito

AutorAntônio André David Medeiros
Páginas315-340

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1. Introdução

A punibilidade é tema recorrente na seara do direito penal e na teoria do direito penal. Em geral, a punibilidade é tratada nos manuais somente sob o aspecto de sua extinção; muito poucos se aventuram a defini-la, passando pelo assunto sem a devida atenção.

Aqueles, todavia, que buscam um estudo do fato punível de forma mais profunda acabam necessariamente se deparando com questões que remetem à punibilidade, mesmo que seja esta mera consequência dos demais elementos do fato típico, como aponta Juarez Cirino dos Santos, em regra basta a tipicidade, da antijuridicidade e da culpabilidade para determinar a punibilidade respectiva, porém existem casos onde são necessários outros elementos para a configuração da punibilidade do crime.1Não há dúvidas de que, verificadas as condições que não se encaixam no conceito clássico do delito, busca-se organizar e sistematizar o tema. A saída mais comumente encontrada é a criação de um novo elemento do crime, a punibilidade. Com isso, na busca de um tratamento uniforme, surgem vários estudiosos que pesquisam perseguindo uma legitimação teórica desse novo elemento. Essa tentativa, que vem se mostrando cada vez maior na doutrina nacional e estrangeira,

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por vezes recebe críticas pesadas por apontar soluções completamente diferentes da solução da punibilidade.

No entanto, mesmo as obras mais modernas não solucionam a questão em definitivo, e inclusive não partem da teoria do delito para resolver o problema, adotando o método indutivo, para tentar resolver os casos nos quais os três componentes clássicos do delito não atendem as expectativas.

Francesco Palazzo2lembra que, mesmo como quando temos a realização de um fato típico, antijurídico e culpável, quando pelo princípio da inevitabilidade da pena se espera seja uma pena aplicada - mesmo de caráter pecuniário - em muitos casos existe uma ligação necessária entre o crime (típico, antijurídico e culpável) e a pena. Isso o autor chama de punibilidade.

Assim, na verdade, o sistema penal apresenta uma "sujeição de pena" que pode ou não se concretizar por razões de oportunidade; o exemplo mais claro está na própria prescrição, em que permanecem a ilicitude e a culpabilidade, mas o fato deixa de ser punível pelo decorrer do tempo.

A visão da punibilidade inserta no tipo penal, ou seja, vista como mera consequência do fato típico, antijurídico e culpável, não se mostra eficiente para explicar os casos práticos, não permitindo um desenvolvimento dogmático da categoria ao incorporar-se política criminal na fundamentação.

Nesse contexto, a análise das diversas visões do conceito analítico do crime é essencial para se entender as visões consequentes das condições objetivas de punibilidade de cada autor. É essencial ainda para a análise dos diferentes elementos do crime, que são limitadores do ius puniendi, e traçam aos julgadores a forma de aproximação do crime, o que elimina a abstração e direciona à uma garantia da segurança jurídica dos cidadãos, necessária ao Estado Democrático de Direito3.

2. Teorias do crime na atualidade

O crime4pode ser visto de várias formas. Num primeiro momento, temos a visão do crime formal ou substancial, em que o crime seria a ação que viola a lei penal, vendo-o de uma perspectiva unitária.

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O crime, sob esse prisma da visão unitária do delito, é um "todo incindível" que pode apresentar os mais diversos "aspectos", mas que não se deixa dividir em "elementos" individuais5.

As teorias do crime, conforme Jesus-Maria Silva Sanchez, "[...] se ocupam da exposição sistemática dos pressupostos, que devem concorrer de modo genérico para imposição de uma sanção penal e das consequências intra-sistemáticas que resultam da presença ou ausência de cada um deles"6.

Isso ocorre com a concepção analítica do crime, ou visão estratificada7, uma vez que a concepção unitária do delito não permite um estudo dogmático do crime, bem como das consequências do crime, sem infirmar que o crime não é uno8, uma vez que o papel da "teoria do delito pode ser definido como o responsável por apresentar um determinado fato como violação de um dever possuidor de todos os requisitos para ser imputado a alguém"9.

Não existe, todavia, uma unanimidade quando falamos no conceito de crime para a dogmática penal. Ora coloca-se como fato típico e antijurídico, ora como fato típico, antijurídico e culpável; ora como fato típico, antijurídico e punível; ora como fato típico, antijurídico, culpável e punível.

Interessante notar ainda que não se pode incidir no erro de vincular a adoção de teoria analítica do delito com a escola penal adotada pelo doutrinador. Afirmase isso pelo motivo de, muitas vezes, se vincularem os ditos autores clássicos à teoria tripartida (fato típico, antijurídico e culpável) e os finalistas, com a bipartida (fato

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típico e antijurídico). Na verdade, basta ver que o precursor do finalismo, Hans Welzel10, sempre adotou a teoria tripartida11.

Isso ocorre, pois a diferença entre causalistas e finalistas situa-se no âmbito da conduta, na teoria da ação. O único problema surge quando tratamos da teoria bipartida, como comentaremos abaixo.

3. Teoria bipartida

A teoria bipartida do crime considera que, no conceito analítico do crime, são elementos somente o fato típico e a antijuridicidade, sendo a culpabilidade mero pressuposto da pena12.

Antes de entrarmos na teoria propriamente dita, faz-se necessária a ressalva de que os causalistas não podem adotar tal teoria facilmente. Isso porque têm o dolo como normativo (onde a conduta não era valorada), e não um dolo naturalístico ou puro, ou seja, têm o elemento subjetivo do crime na culpabilidade e somente lá se verifica o dolo e a culpa, que para os finalistas está na conduta.

Assim, se os que adotam a teoria causalista da ação adotassem uma teoria bipartida (fato típico e antijurídico), somente teriam a parte objetiva no crime - pois para eles o dolo e a culpa estão na culpabilidade - logo, tornar-se-iam partidários de uma responsabilidade penal objetiva, dado que a parte subjetiva (dolo e culpa), que está na culpabilidade, seria ignorada.

Diante disso, temos, pela presente teoria, que o crime é formado pelo fato típico, isto é, a conduta humana comissiva ou omissiva e antijurídica, contrária ao direito, mantendo-se a culpabilidade separada e para um momento posterior.

Esse posicionamento tornou-se forte no Brasil após as colocações de René Ariel Dotti13. Nelas ele defende a culpabilidade como um juízo de reprovação post factum, tornando-se um pressuposto da pena.

Alega, ainda, que a passagem da culpabilidade para elemento do crime ocorreu em razão da teoria da causalidade adotada, pelo motivo que acima já comentamos. Assim, não coloca a culpabilidade como elemento, o que poderia resultar numa

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responsabilidade penal objetiva, já que havia uma separação objetivo-subjetiva e não ficaria incluída no processo causal, objetivo, uma vez que a parte subjetiva estava concentrada na culpabilidade14.

O autor informa também que, com a passagem para a teoria finalista, trazendo o dolo e a culpa na conduta e não mais na culpabilidade, a qual carrega em si somente a potencial consciência da ilicitude, não mais se justificaria a necessidade de colocação da culpabilidade como elemento do crime, dado que a culpabilidade deixou de abrigar o dolo e a culpa, como era na teoria clássica. O próprio autor reconhece, contudo, que sua opinião não é a dominante na doutrina15.

O principal motivo dos que adotam tais teorias é o fato de a culpabilidade não incidir sobre o fato, ou seja, a culpabilidade que deverá incidir sobre o autor, logo não poderia incidir sobre o crime, a não ser que tivéssemos uma norma específica para o delito, ou então tivéssemos um fato "culpado"16.

Tal argumento não parece sustentar-se, visto que a sentença criminal irá analisar o caso concreto, que antes somente existe no mundo do dever-ser, sendo a sentença o direito aplicado ao caso concreto. Assim, somente podemos verificar se existiu o crime, e o Estado pode infligir uma pena quando efetivamente houver uma ação, e aí as condições do autor já farão parte do fato, quando se dará uma análise, na verdade, da ação.

Adotam a teoria bipartida no Brasil: René Ariel Dotti17, Júlio Fabbrini Mira-bete18, André Estefam19, Damásio Evangelista de Jesus20, Celso Delmanto21, César Dario Mariano da Silva22, Flavio Augusto Monteiro de Barros23, entre outros.

Rogério Greco afirma, sobre o entendimento de que a culpabilidade seria somente um pressuposto na aplicação da pena, ser um engano, pois não só a culpa-bilidade é pressuposto de aplicação da pena, mas também o são o fato típico e a antijuridicidade, dado que, não constatado qualquer deles, também não há que se falar em pena24.

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Igualmente, Juarez Tavares, apontando os problemas de adotar-se tal teoria, ensina: "O primeiro problema que surge dessa posição é que não se pode dizer que o pressuposto de pena seja tão-somente a culpabilidade, mas, igualmente, todos os demais elementos do delito e ainda as condições objetivas de punibilidade"25.

Todos os que tratam da teoria do crime afirmam que o conceito analítico vingou entre os doutrinadores pelo fato de permitir aos aplicadores e estudiosos do delito sua dissecação e verificação, com base em conceitos científicos de elementos que compõem o delito, incrementando a segurança jurídica para os cidadãos e servindo como freio ao poder estatal de impor uma pena.

A isso chamam de pressupostos de aplicação da pena, ou seja, todos os elementos do crime, de qualquer que seja a teoria adotada, seriam, em última análise, pressupostos de punibilidade ou de aplicação da pena, o que demonstra a contradição conceitual que nasce na teoria objetiva em relação à posição dada para a...

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