A Regulamentação da Publicidade Dirigida a Crianças: Um Ponto de Encontro Entre o Direito da Criança e do Adolescente e o Direito do Consumidor

AutorTamara Amoroso Gonçalves
CargoAdvogada graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo
Páginas121-147

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1. Introdução – direitos difusos e coletivos: criança e adolescente e defesa do consumidor

Em diversos países, a tutela dos direitos difusos e coletivos relacionase intimamente com o desenvolvimento da sociedade de consumo. As drásticas e rápidas mudanças trazidas pelas transformações nos processos de produção e consumo mudaram não apenas a forma como vivemos, mas consequentemente a maneira como o direito passa a lidar com as relações que então se estabelecem. Em poucas palavras, observa-se uma radical alteração no sistema de responsabilidade civil.

Para Lipovetsky1, pode-se identificar três grandes fases que marcam o desenvolvimento da sociedade de consumo: o nascimento dos mercados de massa (invenção do consumo-sedução); a sociedade de consumo de massa (sociedade da abundância/desejo) e a sociedade do hiperconsumo (período atual). Nesse processo, a produção deixou de ser artesanal para se dar em processos fabris contínuos (produção em massa), mediante a organização científica do trabalho. O escoamento da produção também mudou. As compras passam a ocorrer em grandes centros comerciais e observa-se a democratização do acesso a bens de consumo, disseminada em particular por diferentes estratégias de marketing. Aos poucos, a publicidade vai ocupando um papel cada vez mais relevante enquanto movimentador dessa nova sociedade que vai se formando.

Com as crescentes mudanças nos processos de produção e distribuição de bens, o tradicional sistema jurídico de responsabilidade civil, baseado na persecução da culpa, começou a se mostrar insuficiente para tratar das novas problemáticas. Desenvolve-se, aos poucos, o que se convencionou chamar de “sociedade de risco”. Um risco que nem sempre é precisamente identificável ou particularizado. A expressão mais evidente desta mudança de paradigma em termos de responsabilização se observa no campo do direito ambiental, em que eventuais riscos transcendem o individual e particularizável. Portanto, para lidar com novos direitos e novas relações jurídicas, novos instrumentos se fazem necessários.

No Brasil, a partir de 1988, com a nova constituição, os assim chamados direitos difusos e coletivos foram constitucionalizados, sendo revestidos de proteção especial, na qualidade de direitos fundamentais e também sociais. A constituição também determinou a elaboração de normativas infralegais que assegurassem a sua plena efetividade. Abriram-se caminhos para a regulamentação de diversos direitos sociais, de determinados grupos

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vulneráveis, bem como para a tutela de direitos que, embora possam ser exercidos individualmente, comportam uma inegável dimensão coletiva. Ganham impulso regulamentações relacionadas à: proteção de direitos de futuras gerações, principalmente com forte cunho ambientalista; garantia de direitos de grupos vulneráveis, como mulheres, crianças, idosos; promoção e defesa dos direitos dos consumidores, dentre outros.

A normativa consumerista surge em meio a discussões eminentemente sociais e em um momento de crise econômica, diversamente do que ocorre em outros países em que a proteção aos consumidores se desenvolve em um momento de expansão e consolidação da sociedade de consumo. Embora já existissem algumas normas no país que trouxessem balizas para determinados temas de consumo, a definição de um campo de atuação de forma coletiva, um pouco antes da constituição de 1988, estimulou significativamente a discussão de problemas de consumo massificados2:

“É possível ser tão preciso, ao apontar o ano de 1985 como o ano de passagem para uma nova etapa, em razão do surgimento de duas leis extremamente importantes e inovadoras, e que, não por acaso, foram editadas exatamente na mesma data – dia, mês e ano – o que permite dizer que uma existe por conta da outra: a chamada Lei da Ação Civil Pública, Lei Federal 7.347, e o decreto federal que criou o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, Dec. 91.469. (...)

Essa lei [Lei de Ação Civil Pública] é importantíssima na exata medida em que aponta para a possibilidade da organização da sociedade com o objetivo de pleitear os chamados direitos coletivos. Pela primeira vez, na legislação brasileira, os consumidores organizados podem efetivamente intervir judicialmente nas questões coletivas mais importantes, pleiteando, tanto dos fornecedores como dos governos, sua proteção.”3A definição de um marco normativo para atuação judicial coletiva foi responsável pelo impulso fundamental para a organização do campo dos direitos difusos e coletivos. Ganham vazão, nesse processo, não apenas as demandas relacionadas a relações de consumo, como também as afeitas ao meio ambiente, problemáticas enfrentadas por crianças e adolescentes e, futuramente, também idosos.

Aos poucos, as normativas infraconstitucionais foram sendo aprovadas, assegurando os direitos materiais passíveis de tutela coletiva. Curiosamente, no mesmo ano (1990), foram editadas duas normas centrais para o tema ora em debate: o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90).

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Ambos os campos se desenvolveram muito desde a década de 1990 e trilharam caminhos até certo ponto independentes. Mas recentemente uma temática que vem ganhando cada vez mais espaço na sociedade forçou um ponto de encontro entre ambas as áreas: a discussão sobre a regulamentação da publicidade dirigida a crianças. Conforme será abaixo indicado, o tema provoca uma interpretação sistemática entre os dois diplomas legais, apontando, para muitos, a necessidade de maior regulamentação, com o objetivo de cumprir o mandamento constitucional de assegurar a proteção integral de crianças e adolescentes.

O debate vem sendo marcado pelo posicionamento de organizações da sociedade civil de defesa dos consumidores e de crianças e adolescentes e por representantes dos setores industriais e de empresas e comunicação – agências de publicidade, emissoras de TV etc. No debate público, o conflito que se tem forjado apresenta uma oposição entre liberdade de expressão e proteção à infância no âmbito das relações de consumo. Esse conflito, no entanto, mostra-se apenas aparente, conforme se mostra a seguir.

2. Publicidade infantil: panorama jurídico
2.1. Marcos normativos

No Brasil, tanto a proteção aos direitos dos consumidores (CF, art. 5º, XXXII) quanto de crianças e adolescentes (CF, art. 227) derivam de expresso mandamento constitucional. No caso de crianças e adolescentes, a determinação é de que os direitos destes sujeitos sejam assegurados com absoluta prioridade. Trata-se do único caso em que a constituição explicita este tipo de priorização.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) vem regulamentar no país a doutrina da proteção integral, reforçando a disposição constitucional de que cabe a todos, família, sociedade e Estado, assegurar integralmente os direitos humanos destes sujeitos em peculiar processo de desenvolvimento.

Por sua vez, o Código de Defesa do Consumidor trouxe balizas e princípios fundamentais norteadores das relações de consumo no país. Tratase de normativa de referência inclusive para outros países, extremamente atual e dinâmica, haja vista o seu caráter eminentemente principiológico, que permite sua ampla adaptação mesmo aos problemas mais modernos, trazidos pelo desenvolvimento da sociedade de consumo no país.

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A publicidade em geral encontra-se regulamentada no Código de Defesa do Consumidor e por algumas legislações esparsas, sendo que o ECA silencia em relação à publicidade, determinando, no entanto, um dever geral de proteção a crianças e adolescentes face aos mais diversos conteúdos midiáticos – em especial artigos 4º, 76, 78 e 79.

Pode-se dizer que a publicidade constitui-se no instrumento pelo qual o fornecedor faz com que seu produto ou serviço seja conhecido pela coletividade. Mas, em verdade, é muito mais do que isso. A publicidade, atualmente, estimula não apenas o interesse dos consumidores sobre determinados bens, como também induz ao seu consumo. Para tanto, além de produtos, a publicidade difunde valores, modos de vida, padrões de beleza e de comportamento. Ela apresenta parâmetros (sejam refletidos ou forjados) daquilo que pode ser considerado normal, desejável, esperado. Para ser bem sucedida, a mensagem deve dialogar ou refletir, em alguma medida, valores e sentimentos dos indivíduos de determinada sociedade. Sendo assim, impacta profundamente a sociedade, em uma relação de troca mútua: ao mesmo tempo em que reflete valores, os forja; ao mesmo tempo em que sinaliza o que seria um comportamento adequado, normal ou desejável, o estimula. Com isso, marca profundamente os processos de formação dos indivíduos, em especial aqueles em desenvolvimento biopsicológico, como as crianças4.

Boa parte dos doutrinadores diferenciam publicidade de propaganda, sendo a primeira dotada de intuito manifestamente venal e a segunda do objetivo primordial de disseminar ideias políticas, filosóficas, religiosas (campanhas políticas, governamentais etc.). Essa diferenciação é fundamental para a discussão que hoje se coloca sobre a regulamentação da publicidade dirigida a crianças. Para fins de estudo e aplicação do Código de Defesa do Consumidor, neste trabalho será utilizado apenas o termo publicidade, que é a mensagem que se insere no contexto de uma relação de consumo, como expressão da atividade empresarial e instrumento essencial ao seu desenvolvimento nos dias atuais.

A publicidade, como ação empresarial destinada a promover o incremento da comercialização de produtos e serviços, é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, que estabelece uma disciplina, indicando...

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