Proteção: o princípio do Direito do Trabalho

AutorValdete Souto Severo
CargoJuíza do Trabalho
Páginas133-147

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1. Introdução

A doutrina trabalhista, especialmente desde Plá Rodriguez, reconhece o princípio da proteção como vetor que orienta e justi?ca a existência do Direito do Trabalho. Poucos, porém, são os autores que se preocupam em investigar o conceito de princípio, a ?m de compreender a razão por que a noção de proteção ?gura como tal. Soma-se a isso o fato de que a doutrina insiste em arrolar um número de princípios do Direito do Trabalho, que variam de acordo com a vontade de quem escreve. Este artigo tem por objetivo investigar o que torna (ou não) a noção de proteção um princípio, no

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âmbito do Direito do Trabalho. A partir dessa primeira investigação, tentaremos demonstrar se deve a proteção ?gurar como único verdadeiro princípio no âmbito trabalhista.

A “inflação principiológica”, dando o nome de princípio ao que é regra ou valor, esvazia de conteúdo e função os verdadeiros princípios. Daí a importância do tema. É essa uma das razões pelas quais parece hoje tão fácil invocar princípios contrários à proteção ou simplesmente afastá-la, em nome dessa ou daquela necessidade imediata. Por isso, antes de de? nir o princípio da proteção ou de reconhecê-lo como razão de ser e norte do Direito do Trabalho (e como verdadeiro princípio), temos de estabelecer o que é um princípio, distinguindo-o (ou não) das regras jurídicas. Precisamos reconhecê-lo dentre as normas, compreendendo que a noção mesma de princípios é historicamente recente, razão da di?culdade em lidarmos com ela.

Compreender o que é um princípio tem consequências práticas de extrema relevância. Ao Direito do Trabalho, por exemplo, é cara a ideia de princípio da proteção, tão bem desenvolvida por Plá Rodriguez, cuja obra até hoje é referência para os estudiosos das relações jurídicas trabalhistas. Esse autor, de forma simples e direta, de?ne princípios como “ideias fundamentais e informadoras da organização jurídica”1. A de?nição, embora diga tanto, parece insu?ciente diante da função transformadora assumida pelo Direito a partir da segunda metade do século passado.

A construção da teoria dos direitos fundamentais determinou uma mudança radical na função do Direito e do Estado, que passou a deter a missão não apenas de diagnosticar, determinar e coibir condutas, mas especialmente de operar mudanças que implicassem melhoria nas condições sociais. Da preocupação com a estrutura do direito e de sua de?nição como “ciência jurídica”, passamos à consideração de sua função enquanto instrumento de transformação social.

Este estudo não se dedicará à definição ou mesmo à reconstrução da origem e do desenvolvimento da noção de direitos fundamentais. É preciso, porém, tangenciá-la para compreender de forma adequada a mudança no papel dos princípios a partir de então. E é por aí que iniciaremos.

2. Os princípios no âmbito dos Direitos Fundamentais: novo conteúdo

Quando falamos de direitos fundamentais, logo remetemos nosso pensar à ideia de digni-dade da pessoa humana, exatamente porque no cern e da doutrina que reconhece e sistematiza alguns valores como “fundamentos do Estado”, está a noção de que o homem deve ser respeitado. E são justamente esses valores que irão inspirar e justi?car a categoria de direitos fundamentais. O conceito de dignidade humana em Kant é o de dignidade como “autonomia ética do ser humano”, ou seja, “o ser humano (indivíduo) não pode ser tratado — nem por ele próprio nem pelos outros — como objeto”2.

Parece tranquilo a?rmar que essa noção de dignidade está presente na organização social desde muito tempo3. Ela é, porém, retirada do âmbito exclusivo da moral e trazida para dentro do sistema jurídico, justamente em um período histórico no qual foi necessária sua (re)a?rmação.

É de registrar a crítica que podemos tecer ao conceito de dignidade em Kant, voltado que é à a?rmação do indivíduo como sujeito de direitos, dando pouca ou nenhuma atenção ao caráter social da noção de dignidade:

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à necessidade de compreender a dignidade a partir do Outro.

Para além dessa crítica, que não compromete a importância da dignidade como parâmetro para a criação e aplicação das normas, notadamente daquelas trabalhistas, o importante é perceber que todos os doutrinadores se reportam à época em que importantes revoluções determinaram uma mudança radical na forma de organização social.

A Declaração dos Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e a Constituição Americana, de 1787, são textos em que já se veri?ca preocupação com a inserção de direitos inalienáveis e fundamentais4. Todos editados depois da ruptura com um modelo de organização da sociedade. Todos, em certa medida, comprometidos com valores como liberdade e igualdade.

É preciso novamente sublinhar o corte necessário pela dimensão desse estudo: não nos deteremos nas características das revoluções dessa época, das quais a Revolução Francesa destaca-se por sua expressiva importância para a construção do (novo) direito. Também não teremos espaço para dissecar a falácia contida nos ideais de liberdade e igualdade desses movimentos de libertação. Poucos fruíram verdadeiramente a liberdade ou puderam lançar mão da igualdade idealizada no movimento revolucionário francês. Já sabemos disso.

É importante, porém, refletir acerca da radical modi?cação de estrutura social que se opera nesse momento histórico. Ao estabelecer uma ?agrante “abertura” em termos de acesso (a bens e à in?uência política), essas revoluções introduziram no imaginário jurídico a noção de que o homem, como destinatário da norma, deve ser protegido inclusive de si mesmo, porque esse é o único caminho capaz de garantir uma convivência minimamente saudável. Na gênese dos direitos fundamentais, portanto, está a noção do homem entre seus pares.

Olhando para trás, no momento de “dar nome” a essa categoria de direitos que deve ?gurar no “fundamento de um Estado”, a doutrina reconhece como direitos fundamentais de primeira dimensão ou geração, aqueles típicos do ideário liberal-burguês do século XVIII, de cunho individualista5. Embora a aparente contradição possa surpreender, mantemos a convicção de que os direitos fundamentais são direitos reconhecidos para além da condição humana individual. Constituem-se uma categoria de direitos tornada especial em face da constatação de que apenas assim seria possível um convívio saudável entre os homens.

Estão, pois, umbilicalmente ligados ao chamado “princípio da comunidade”6. Assim, ainda que sua sistematização, ocorrida a posteriori, identi?que os direitos tipicamente liberais como fundamentais, um exame crítico da matéria nos revela que essa fase inicial, de extrema importância por valorizar a liberdade como fundamento do Estado, era apenas um primeiro e tímido passo para a construção do que realmente identi?ca a ideia mesma de direitos fundamentais.

O que a doutrina denomina direitos fundamentais de segunda dimensão7, ou seja, os direitos sociais, são, em nosso sentir, o cerne do conceito de direitos fundamentais, porque é com eles que começamos a pensar o Estado como uma organização social e jurídica que tem que se preocupar com e garantir o bem-estar de todos.

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O desenvolvimento da noção de direitos fundamentais tem relação mais íntima do que a principio pode parecer, com o Direito do Trabalho e com o princípio/dever de proteção. A sociedade se industrializa e o capitalismo se instala como forma de organização social, sob o manto do ideal liberal e é em nome de uma proposta de participação de parte mais expressiva da sociedade na economia (lato sensu), que o conceito de liberdade se modi?ca. À noção de propriedade agrega-se a noção de acúmulo de riqueza. E essa capacidade de acumular (vendida como qualidade individual em tempos de liberalismo clássico e reforçada com esse mesmo viés pelo chamado neoliberalismo) passa a constituir o principal elemento de divisão (ou reconhecimento) das classes sociais.

Em pouco tempo, a sociedade passa a ser identi?cada como uma composição formada por homens que vivem-do-trabalho (expressão utilizada por Ricardo Antunes e para a qual Marx utilizava a denominação proletariado) e homens que vivem da exploração do trabalho alheio (capitalistas). O trabalho humano subordinado à vontade e aos fatores de produção de outrem é a mola propulsora dessa nova forma de organização social.

O Direito do Trabalho, como ramo especí?co do Direito, nasce desse con?ito entre os que trabalham (e dependem do trabalho para sobreviver) e aqueles que lucram com o trabalho, ambos em situação necessariamente contrária8.

É interessante perceber que até hoje povoa o senso comum a ideia de que o capitalismo é inerente à natureza humana, pensamento que nega qualquer possibilidade de sua superação enquanto sistema econômico e social. Trata-se de um equívoco de avaliação que, ao mesmo tempo, faz transparecer o que acabamos de a?rmar: o modelo de exploração do trabalho e do acúmulo de riquezas foi “vendido” no período pós-revolução francesa como o perfeito encontro do homem social com sua natureza humana individual. É claro que uma re?exão breve sobre o assunto nos levaria a argumentar que o capitalismo não existiu por vários séculos. E nada mais é do que uma das tentativas do homem de organizar-se de forma satisfatória em comunidade. Desde o início, deu sinais de sua falibilidade e precisou, ele mesmo, criar mecanismos de autocontenção, dos quais o Direito do Trabalho é um exemplo.

Precisamos perceber, porém, que esse senso comum, evidentemente, não é gratuito. O capita-lismo talvez seja mesmo a forma de organização que melhor se amolda à natureza humana primitiva, o que não signi?ca compreendê-lo como a única ou mesmo como a melhor...

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