A Proteção Internacional e a Realidade Brasileira da Criança e do Adolescente Refugiado

AutorAlexandre Sanson
Páginas24-33

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1. Introdução

A sensível e alarmante categoria de refugiado, assombrado pelo medo ou pela violência no país de que é nacional e vítima de deslocamento forçado na incerta busca por abrigo extrafronteiriço não é realidade recente, visto que, desde o limiar do século XX — e com mais intensidade no pós-Segunda Guerra — há o reconhecimento do problema como questão mundial e da própria necessidade de ações internacionais, principiadas, em 1921, no âmbito da Liga das Nações.

As ferramentas jurídicas e as instituições criadas, a despeito de sua incontestável relevância, não foram, no entanto, capazes de defender o indivíduo, na sua plenitude, de arbitrariedades perpetradas no plano interno de cada Estado. A hodierna afronta contumaz à universalidade dos direitos humanos pela hostilidade de grupos ou governos, manifestada em um cenário de crescente complexidade e intolerância — como as guerras civis e opressões religiosas/étnicas —, justifica a elevação do índice de mudanças obrigadas do local de residência habitual, que, no final de 2013, alcançou o patamar de 51,2 milhões de pessoas (16,7 milhões de refugiados)1.

A circunstância agrava-se com as dificuldades na identificação da figura do refugiado pelos países receptores, tanto por razões conceituais, pois não há uniformidade e as ampliações do alcance não têm força impositiva geral, quanto pelos fluxos migratórios mistos, em que se amalgamam quem precisa de proteção internacional com quem almeja melhores condições de vida. Ademais, entrevê-se, diante do fenômeno globalizatório neoliberal, o qual aprofundou desigualdades sociais e de ações de terrorismo, a tendência de enrijecimento das políticas de imigração, com reflexo no refúgio, sobrepondo-se interesses estatais a direitos supranacionais.

Se a falta de entendimento, o desrespeito e a rejeição das diferenças são condutas atentatórias à dignidade, provocando irremediáveis repercussões em um ser humano adulto, maior atenção merecem a criança e o adolescente pela sua vulnerabilidade a riscos coletivos. Não se olvide, ainda, que são

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rotineiros os abusos a jovens2, como, em 2014, os sequestros promovidos pelo grupo nigeriano Boko Haram ou o ataque a uma escola no Paquistão pelo Taleban. No refúgio é possível constatar degenerescências adicionais, como se tornarem apátridas ou órfãos e se sujeitarem a trabalho infantil, tráfico para prostituição, isolamento ou privações de direitos.

Nesse horizonte, deve-se recordar que um marco importante no resguardo internacional dos direitos da criança é a Convenção de 1989, decorrente da progressiva exigência de oferecer, prioritariamente, cuidados especiais e complementares ao ser humano infante, visando ao seu desenvolvimento e bem-estar. Ratificada em 1990, determina ao Brasil, como Estado-parte, a adoção de medidas que assegurem assistência humanitária adequada à criança reputada como refugiada, sendo pertinente analisar os obstáculos e as perspectivas desse processo integrativo.

2. A condição de refugiado: o desafio dos esquecidos

As lições de José Saramago, em seu Ensaio sobre a cegueira, enfatizam que a experiência dos tempos não tem feito outra coisa senão nos dizer que não há cegos, mas cegueiras; concluindo que, nesta “ablepsia”, as pessoas veem e, mesmo vendo, não veem3. Trata-se decerto de ideia a partir da qual se pode compreender o refugiado na sociedade pós-industrial, cujo status é, em regra, ignorado, figurando, contraditoriamente, como um espectador anônimo diante das perversidades na era da informação. O dinamismo derivado de avanços tecnológicos e redes de mercado não propagou, na mesma intensidade, a solidariedade ao sofrimento alheio.

Não se desconhecem nem mitigam as iniciativas e os esforços no combate a atos de barbárie e na conscientização de populações e governos quanto ao auxílio ao indivíduo em situação de perigo, como, em relação a refugiados, por meio de organismos locais (e. g. Cáritas Brasileira) e internacionais (e.
g.
Refugees International). Mas subsiste um longo caminho a ser trilhado. O deslocamento forçado — cujas causas atualmente se multiplicam e prolongam, provocando a “anulação dos estranhos”4 — sempre existiu na história humana em virtude da conflituali-dade a ela imanente (embates e persecuções), sendo que as conquistas inaugurais no seu tratamento residem na intervenção do direito pela regulação e publicização deste desajuste comunitário.

A criação de agência nas Nações Unidas (ACNUR), em 1950, e a aprovação da Convenção de Genebra, que consolidou mecanismos legais protetivos, em 1951, representam, no contexto de internacionalização dos direitos humanos ulterior às atrocidades nazistas, passos fundamentais na assistência ao fugitivo de guerra, reafirmando-se o asilo lato sensu da Declaração de 1948. A norma convencional, não obstante codificar os standards de amparo a refugiados (direitos, obrigações, requisitos de definição), previu, quanto à sua incidência, limites temporal (eventos anteriores a 1º de janeiro de 1951) e, facultativamente, geográfico (Europa), dos quais adveio uma classe de deslocados (estatutários), a qual abarca os titulares do “Passaporte Nansen”.

O refugiado seria, segundo o art. 1º-A(2), aquele que, por fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, participação em grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade, ou, na sua carência, onde possuía residência habitual, e não pode ou não queira se valer da sua proteção ou a ele regressar. Considerada por Flávia Piovesan como a “carta magna” que demarca, em caráter universal, a condição de refugiado e que tem determinado a situação de milhões de pessoas no mundo5, a Convenção revelou ineficiências6 ante a emergência de novas conjunturas do refúgio, pois não alcançaria casos como as fugas impelidas pela Revolução Húngara ou pela descolonização afroasiática.

A percepção de que o citado ato internacional não deveria ser uma regulamentação casuísta, posto

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que seu escopo não se esgotaria ao ocorrido nas Grandes Guerras, resultou no Protocolo Adicional assinado em 1967, na sede da ONU, em Nova Iorque, com autonomia quanto à adesão, não restrita aos signatários do Estatuto de 1951. No seu artigo I (2º e 3º), buscou-se, por conseguinte, suprimir restrições7 constantes na Convenção — então acordadas pelos governos de modo a delimitar suas obrigações a um pretenso fato isolado de êxodo maciço —, estendendo o intuito de abrigo a não europeus e a quem se enquadre, em qualquer época, como refugiado. Sem o alargamento terminológico, a Convenção cingir-se-ia a mero documento histórico.

Frise-se que, dentre as “cláusulas de inclusão” — denotativas dos critérios objetivos e subjetivos a serem preenchidos pelo estrangeiro —, era passível de crítica, outrossim, o rol aparentemente taxativo dos motivos originadores da perseguição, em que pese a Ata Final da Conferência de Plenipotenciários que adotou a Convenção de 1951 sugerir uma intelecção mais abrangente. O quadro normativo foi gradualmente aprimorado, com a superação de padrões estabelecidos, por meio de instrumentos no âmbito regional, embora despontem modalidades de migrações desprovidas de auxílio que demandam soluções, como as ocasionadas por desastres climáticos (refugiados ambientais) ou por questões de pobreza/desemprego (refugiados econômicos8).

A Convenção da Organização da Unidade Africana, aprovada em 1969, não exclui o regime jurídico preexistente, mas o aproxima da realidade continental dos deslocados (e. g. guerras de independência da Argélia e civil da Rodésia). Acrescenta-se, no art. I(2), como fundamento de proteção aos que são compelidos a abandonar a residência, um cenário de ofensa difundida ao ser humano, derivado de agressão externa, dominação estrangeira ou grave perturbação da ordem pública — independentemente da existência do temor de perseguição. A Declaração de Cartagena, elaborada em 1984, com influxos do documento africano, voltou-se aos problemas centro-americanos (e. g. guerra civil na Nicarágua) — oriundos de golpes políticos e da eclosão de regimes ditatoriais — e corroborou com a tradição latina de concessão ampla de asilo.

A sua recomendação, inserida no processo de expansão conceitual do termo “refugiado”, visa, portanto, à utilização de definição que, além de conter elementos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967, abarque também as pessoas que fugiram de seus países porque a sua vida, segurança ou liber-dade foram ameaçadas pela violência generalizada, agressão estrangeira, conflitos internos, violação maciça de direitos humanos e outras circunstâncias de perturbação grave da ordem pública. A ausência de feitio vinculativo e a imprecisão ao adotar hipótese aberta para o refúgio não retiram o relevo da Declaração9, cujo texto, mesmo sem contar com a assinatura de alguns países, é invocado e até incorporado por ordenamentos internos.

No Brasil, que é país notório pela política de acolhimento a estrangeiros, com dois escritórios do ACNUR em seu território, representando lugar usual de destino — e, recentemente, de rota — de refugiados, prevê-se como preceito protetivo, além das próprias disposições constitucionais de 1988, a Lei n. 9.474/97, que internalizou as normas internacionais. Sob as inspirações das definições dilatadas, prescreve, além dos motivos clássicos (Convenção de 1951), a “grave e generalizada violação de direitos humanos” e, redigida em parceria com o ACNUR e com a sociedade civil, é considerada pela ONU como uma das regras mais modernas,abrangentes e generosas do planeta, contemplando todos os institutos assistenciais à vítima deslocada10.

Não é recente, contudo, a experiência pátria em se relacionar às questões...

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