Direito de propriedade e a questão quilombola: eficácia jurídica do artigo 68 do ADCT

AutorLuis Carlos A. Merçon de Vargas
CargoBacharel em Direito pelas Faculdades de Vitória (FDV)
Páginas141-187

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“Em todo o mundo... Minorias étnicas continuam a ser desproporcionalmente pobres, desproporcionalmente afetadas pelo desemprego e desproporcionalmente menos escolarizadas que os grupos dominantes. Estão sub-representadas nas estruturas políticas e super-representadas nas prisões. Têm menos acesso a serviços de saúde de qualidade e, conseqüentemente, menor expectativa de vida. Estas, e outras formas de injustiça racial, são a cruel realidade do nosso tempo; mas não precisam ser inevitáveis no nosso futuro”.

Kofi Annan

Introdução

A idéia de se elaborar uma pesquisa cujo objeto fosse o direito de propriedade dos remanescentes das comunidades de quilombos surgiu ao longo das aulas da disciplina de direitos reais ministradas pela professora Cristina Pazó na FDV. Mais especificamente, a curiosidade foi despertada durante um exercício de sala de aula que propunha uma reflexão de qual a forma de aquisição de propriedade se tratava o artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias.

Aliado a esse interesse pelo direito de propriedade e pelas peculiaridades desse dispositivo, foi esse o objeto de investigação que elegemos para nosso projeto de pesquisa. Faltava, porém, um método de trabalho e um corte metodológico mais específico desse objeto.

Apesar de nos interessar muito o enfoque social e histórico acerca dos institutos jurídicos, durante a graduação também foi despertando grande interesse por métodos mais analíticos e lógicos dos dispositivos legais. Esse interesse surgiu principalmente a partir do contato com professores que tem uma visão mais analítica do direito, como o professor Tárek Moussalem e a professora Christine Mendonça, assim como com colegas que também se interessavam pelo assunto.

Logo, surgiu em nós uma grande vontade de realizar um estudo de um objeto - que comumente é tido sob o enfoque sociológico e antropológico - e realizá-lo com um enfoque analítico utilizando as ferramentas disponíveis de uma teoria geral do direito normativista.

Para isso, nos aprofundamos nos conceitos fundamentais dessa teoria como o conceito de direito, de norma jurídica, de ordenamento jurídico, de validade, vigência e eficácia das mesmas.

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Mais especificamente, nosso corte metodológico passa pela eficácia jurídica da norma que assegura o direito de propriedade aos remanescentes de quilombos, tendo sido utilizada a concepção de José Afonso da Silva para analisar qual a espécie de eficácia jurídica se trata a referida norma.

Assim, a curiosidade em um objeto de grande relevância social e o interesse em uma nova metodologia que preza mais por uma análise lógica do direito fez com que dessa comunhão surgisse o presente trabalho.

Porém, mesmo usando as ferramentas proporcionadas por uma teoria geral do direito normativista, não abrimos mão de outros métodos, como o método histórico, por exemplo.

Assim, o método histórico não foi deixado de lado e foi amplamente usado, principalmente no que tange a trajetória do direito de propriedade no Brasil. Durante o trabalho traçamos a trajetória desse instituto e todo o seu desenvolvimento no ordenamento jurídico brasileiro, desde às sesmarias até a função social da propriedade disposta na Constituição Federal de 1988. A compreensão dessa trajetória se tornou fundamental para a compreensão de vários dispositivos legais sobre a propriedade no Brasil.

Também, a visão da antropologia foi-nos essencial para compreender a semântica do artigo 68 do ADCT, uma vez que as comunidades remanescentes de quilombos é objeto de diversas pesquisas nessa área específica do saber.

Portanto, esse trabalho se trata de um esforço de utilizar uma metodologia de uma teoria geral do direito de forma analítica em objeto que possui grande apelo social, uma vez que propriedade e minorias raciais sempre são assuntos polêmicos na realidade brasileira.

1. Aspectos gerais sobre validade, vigência e eficácia na teoria normativa

Esse primeiro capítulo pretende, de forma sucinta, fixar os preceitos de uma teoria normativista do Direito, para que dessa forma possamos adentrar no problema da eficácia, validade e vigência das normas jurídicas.

1.1. Noções sobre a idéia de sistema

A palavra direito é ambígua e por isso alude a mais de uma significação. Entre essas significações interessa-nos as que indicam a palavra “direito” como sistema. Para o presente trabalho, adotaremos como conceito de sistema “um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada” (CARVALHO, 2004, p. 43).

Ainda sobre noção de sistema, complementa o conceito supracitado as idéias do professor TÁREK MOYSES MOUSSALEM, que oportunamente adiciona a essa definição a característica de que todo sistema é constituído por meio de linguagem (2001, p. 64).

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A partir dessas breves considerações conceituais, podemos afirmar que - dentre as diversas significações possíveis - a palavra “direito” pode ser entendida como sistema de normas jurídicas, ou seja, direito positivo, e sistema da Ciência do Direito.

O professor PAULO DE BARROS CARVALHO entende a Ciência do Direito, ou Dogmática Jurídica, como um sistema de linguagem desenvolvido sobre o sistema de direito positivo, “feita de proposições descritivas, associadas organicamente debaixo de um princípio unitário” (2004, p. 11).

Desse modo, percebe-se que há uma íntima relação entre os dois sistemas tornando-se de extrema importância que se distinga a linguagem que está sendo estudada (direito positivo) da linguagem utilizada para estudar aquela outra (Ciência do Direito), uma vez que cada uma possui particularidades e métodos específicos.

Logo, levando em consideração o que já expomos acima, concluiremos que a Ciência do Direito se trata de uma metalinguagem, ou seja, uma linguagem sobre outra linguagem.

Em contrapartida, o sistema de direito positivo, segundo PAULO DE BARROS CARVALHO, “é o conjunto integrado por elementos que se inter-relacionam” (2004, p. 10) abstraídos da leitura da legislação. Ainda na esteira de seu pensamento,

As unidades desse sistema são as normas jurídicas que se despregam dos textos e se interligam mediante vínculos horizontais (relações de coordenação) e liames verticais (relações de subordinação-hierarquia) (Grifamos). (2004, p. 10)

Desse modo, os elementos que compõem o sistema de direito positivo são as normas jurídicas, as quais passarão a ser analisadas no tópico subseqüente.

1.2. Conceito de norma jurídica

A norma jurídica se trata de algo que não podemos ver nem tocar. Trata-se de uma construção interpretativa feita por cada intérprete. Portanto, o substantivo “norma” aduz a um objeto abstrato, que opera unicamente com idéias e não com a realidade sensível.

Nas palavras de PAULO DE BARROS CARVALHO: “As normas jurídicas são as significações que a leitura do texto desperta em nosso espírito, e nem sempre, coincidem com os artigos em que o legislador distribui a matéria, no corpo escrito da lei. Advém daí que, muitas vezes, um único dispositivo não seja suficiente para a compreensão da regra jurídica, em sua integridade existencial” (2004, p. 235).

Portanto, segundo esse entendimento, a norma jurídica é uma significação obtida através de uma leitura sistemática de um veículo introdutor, ou seja, o texto legal.

Essa significação, segundo NORBERTO BOBBIO, se expressa através de proposições prescritivas, sendo que, ainda para esse mesmo autor, uma proposiçãoPage 145 é um “conjunto de palavras que possuem um significado em sua unidade” (2005, p. 72-73).

Esses conjuntos de palavras normalmente se estruturam na forma de juízos. Juízos, segundo a lógica clássica, é uma proposição que contém um sujeito e um predicado conectados por uma cópula. Por exemplo: “José é proprietário”, onde “José” é o sujeito, o verbo “é” a cópula e “proprietário” o predicado.

Uma das formas que os juízos podem assumir é a forma hipotética. Configura-se um juízo hipotético quando o predicado é uma conclusão lógica formada a partir de uma hipótese presente no primeiro membro da estrutura proposicional, ou seja, o sujeito. Por exemplo: Se eu bater meu braço com força no tampo de uma mesa, então ela se quebrará.

Como já dissemos antes, o sistema do direito positivo se manifesta por meio de linguagem assumindo a forma de proposições prescritivas estruturadas de maneira que se formem juízos hipotéticos (CARVALHO, 2004, p. 236).

Assim sendo, por se tratar de uma linguagem prescritiva, o sistema de direito positivo não obedece à lógica clássica ou apofântica, mas sim à lógica deôntica. Na lógica deôntica a cópula entre sujeito e...

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