Sobre o pronunciamento 'ex officio' da usucapião: notas reflexivas sobre uma proposta de interpretação 'sociológica' do art. 219, § 5o do Código de Processo Civil

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas335-371

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* Estudo previamente publicado na Revista de Direito Privado 52 (2012), pp. 159-ss.

1. O problema

O presente estudo parte de duas premissas fundamentais: a primeira delas é a de que a “realidade” (inclusive a especificamente jurídica) é o mais importante de todos os meios de aferição do “grau de eficiência” de uma regra, de um instituto, ou mesmo do próprio sistema jurídico1. Ou

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seja, se por um lado o jurista não pode se curvar ao puro clamor da coletividade (abrindo mão do primor técnico que deve pautar a sua atividade), de outra banda dela também não pode se distanciar demasiadamente – a ponto de desconhecer as concepções prevalecentes no contexto em que se insere a sua respectiva atuação2.

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A segunda premissa é a de que o avanço do Direito se dá a partir de determinadas exigências formuladas pela vida concreta: no entanto, a maior parte dos estudos monográficos desenvolvidos em nossas universidades – durante os cursos de Pós-Graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) – se devota ou a francas abordagens puramente “teoréticas”, ou a “aparentes” estudos práticos, nos quais se amontoam decisões e mais decisões judiciais das mais diversas procedências (e sem qualquer espécie de metodologia analítica a nortear o trabalho de depuração dos arestos). Ora, aqui partimos de um pressuposto que tem norteado nossas últimas investigações (mas que não se confunde com a última perspectiva mencionada, que não nos parece nem um pouco científica): é a realidade pulsante da vida concreta que exige do jurista – em alguns momentos relativamente raros – o pleno domínio da técnica jurídica, para que se viabilize, então, alguma espécie de avanço sistemático3. Por

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isso, o estudo do “caso” parece extremamente importante quando se faz necessário resgatar alguns conceitos fundamentais – ou mesmo quando o intérprete pretende “desobstruir” as vias de comunicação entre os diver-sos ramos do Direito (restabelecendo, assim, aquele “fiuxo vital” que lhe confere a sua indispensável unidade científica)4.

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Expostas, pois, as duas premissas fundamentais que norteiam o presente estudo, passemos ao caso que nos fora apresentado e que motivou a elaboração desta análise:

“Caio e Semprônia, casados e com um filho púbere (Tício), celebram um contrato de locação de imóvel com Públio. Durante o curso da locação, o casal se desentende e Caio abandona o lar conjugal, ali remanescendo tão somente Semprônia e Tício. Mãe e filho procuram, então, o locador Públio, propondo-lhe a celebração de compromisso de compra e venda relacionado ao imóvel. Avença esta que acaba por ser ajustada e “parcialmente” cumprida pelos promissários-compradores; pois, com efeito, tempos depois, o promitente-vendedor Públio desaparece, impossibilitando-se o pagamento oportuno das prestações vincendas.

Tício e Semprônia contrataram, tempos depois, um advogado, a fim de que este ajuizasse a regular ‘ação de usucapião’, com o intuito de que lhes fosse reconhecida a aquisição da propriedade imobiliária com base no disposto junto ao art. 1240 do Código Civil. Tal processo foi arquivado, sem que sequer tivesse sido proferida sentença [as razões do arquivamento são inteiramente desconhecidas por este autor]. Não tendo sido efetuada, pois, a consignação judicial das prestações vincendas – e nem, tampouco, de quaisquer alugueres – Tício e Semprônia são surpreendidos, muito tempo após, pelo ajuizamento de uma ‘ação de despejo’, proposta por Mévio (herdeiro de Públio) – na qual se postula, ainda, o pagamento de alugueres (tidos pelo autor, pois, como simplesmente atrasados). Citados os réus, decorreu ‘in albis’ o prazo para o oferecimento de contestação [em virtude de acontecimentos que também não chegaram ao nosso conhecimento].

E diante da revelia (e de seu efeito ordinário estatuído pelo art. 319 do Código de Processo Civil), o feito foi sentenciado (nos termos do art. 330, II do Código de Processo Civil), tendo o magistrado de primeira instância julgado inteiramente procedente a ação intentada por Mévio.

Não tendo ainda decorrido o prazo para a interposição do recurso de apelação, pergunta-se: Tício e Semprônia podem, de algum modo, reverter o sentido do julgadofi”5.

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Perceba-se, pois, que o efeito da revelia ocupa uma posição proeminente no contexto acima reproduzido. Resta-nos saber até que ponto a segunda instância – que pode revolver a matéria fática subjacente ao problema – estaria “apta” (ou mesmo “compelida”) a reverter a sentença proferida pelo magistrado singular. Eis o cenário com que nos deparamos a propósito de uma análise do art. 219, § 5º do Código de Processo Civil – voltada, entretanto, ao tema da usucapião (tomada, assim, como a modalidade aquisitiva do fenômeno prescricional).

2. A usucapião como “prescrição aquisitiva”

As considerações lançadas no item antecedente não têm o caráter perfunctório que nelas se poderia entrever; bem ao contrário, põem em evidência o fato de que não se busca aqui desenvolver um estudo “acadêmico” sobre a usucapião (nem mesmo sobre a prescrição). Intenta-se abordar tal instituto, pois, sob uma perspectiva “sociológica” – embora, nem por isso, menos científica6.

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Desta forma, não nos preocupamos aqui com a adoção de uma posição terminante a respeito da natureza da usucapião. Ou seja: se em termos científicos ela pode ou não ser considerada uma modali-dade prescricional (a variante aquisitiva do instituto), isto é tarefa de que outros estudiosos se têm ocupado (com maior brilho e eficiência, diga-se de passagem). Interessa-nos apenas o “dado” de que – se não predominante – não pode ser simplesmente desconsiderada a subs-tancial parcela da doutrina (devotada ao estudo do Direito Civil) que emprega a expressão “prescrição aquisitiva” como sinônima do termo “usucapião”. E assim, se não podemos negar o fato de que acentuada polêmica existe quanto à referida equiparação, por outro lado também estamos convictos de que nenhum estudioso criterioso pode – de maneira excessivamente simfiificadora – desconfirmar a própria existência de uma tal controvérsia – tergiversando inteiramente a respeito de uma tal “realidade”7.

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No âmbito do Direito Brasileiro (que é aquele do qual nos ocupamos neste estudo), autores da mais elevada envergadura têm rejeitado com veemência a aproximação entre os institutos da “usucapião” e da “prescrição”: F. C. Pontes de Miranda, por exemplo, lançando mão de uma (sempre útil) abordagem histórica, conclui no sentido de que tal parificação é o resultado de uma deturpação medieval que rompeu com a evolução romana dos conceitos de “praescriptio” e “usucapio” – e que acabou sendo erigida em “teoria” por jurisconsultos modernos que se afastaram completamente da ciência e da verdade histórica8.

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Os principais fundamentos coligidos pelos adeptos de tal posição podem ser assim sintetizados (em uma paráfrase da exposição paradigmática de O. Gomes): a) enquanto a prescrição implica um efeito “negativo”, a usucapião tem um efeito “positivo” (ou atributivo de direitos); b) a prescrição se vincula à “inércia” do sujeito de direito (ao passo que a usucapião pressupõe um “comportamento ativo” do usucapiente, consubstanciado em sua posse “ad usucapionem”); finalmente, c) a prescrição abrangeria, a um só tempo, os direitos pessoais e reais – restringindo-se à usucapião ao último de tais domínios9.

Tais razões, contudo, não parecem – inteiramente – consistentes. De fato, parece inegável que a prescrição (extintiva) tem por efeito a mutilação do direito subjetivo; contudo, não se pode esquecer que da sua superveniência redunda a incorporação – no patrimônio do devedor – de uma exceção material (a exceção de prescrição). De modo que o primeiro argumento nos parece provar “demais”: pois – não apenas na usucapião o proprietário anterior perderia o seu “domínio”, como também – na

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prescrição (extintiva) o devedor poderia resistir lançando mão de uma “exceptio” recém-incorporada ao seu patrimônio10.

O segundo argumento também nos parece, em verdade, inteiramente falacioso. Com efeito, o comportamento ativo do usucapiente é absolutamente irrelevante se não for corroborado pela inércia do proprietário, que será despojado do domínio com a superveniência da usucapião; desta forma, o elemento necessário à caracterização desta última é – assim como na prescrição (extintiva) – a inércia do titular, uma vez que, adotando este um comportamento ativo, ficaria inteiramente afastada a “possessio ad usucapionem” – uma vez que esta deve ser não apenas contínua, mas também incontestada11.

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Por fim, se se admite que a prescrição (extintiva) atingiria os direitos reais, por óbvio que se está a pensar nas pretensões reais suscetíveis de individualização quanto ao sujeito passivo (e que se transmudam, sob a perspectiva passiva, nas famigeradas obrigações “propter rem”) – uma vez que as pretensões reais oponíveis “erga omnes” acompanham o próprio direito subjetivo, perdurando enquanto este existir. Ora, a usucapião também pode gerar a aquisição de direitos pessoais: pense-se, por exemplo, no livro que um absolutamente incapaz adquire por usucapião extraordinária (art. 1261 do Código Civil); se em seu interior este acaba por encontrar um título de legitimação, pode exigir do devedor...

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