A promoção de igualdade de gênero na administração de companhias abertas: primeiras reflexões

AutorSheila Christina Neder Cerezetti
Páginas62-84

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1. Introdução

Ao longo dos últimos anos a luta contra o desequilíbrio de gênero na administração de grandes empresas tornou-se foco de atenção em muitas jurisdições. O tema deixou de se apresentar como tópico confinado a interessantes estudos de Ciência Política e alcançou o ambiente jurídico, especialmente sob o manto das ponderações de boas práticas de governança corporativa.

Elevado número de Países e também a própria União Europeia adotaram ou consideram adotar medidas obrigatórias voltadas à promoção da igualdade de gênero nos altos cargos do ambiente corporativo. As normas geralmente exigem que companhias abertas contem com 40% de mulheres em seus conselhos,1ao mesmo tempo em que estabelecem calendário para que o objetivo seja alcançado de forma progressiva ao longo do tempo. Assim como outras formas de ações positivas destinadas a proteger os direitos de minorias, as cotas para executivas tendem a se afastar de regras caracterizadas como soft law e são apresentadas como instrumentos de observância obrigatória.

Um breve olhar sobre a composição da administração confirma que a intenção de promover a participação de mulheres é oportuna. Só na Europa, estudos mostram que quase 95% dos presidentes e 82% dos con-

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selheiros são homens.2Eles também indicam que o aumento médio historicamente aferido no número de conselheiras não sugere uma mudança natural e voluntária.3Caso se considere a igualdade de gêneros um real objetivo, haveria, portanto, motivo para a adoção de medidas a promover o acesso de mulheres aos altos cargos de gestão, na tentativa de evitar ou diminuir a discriminação.

Todavia, como se verá, o incentivo à participação equilibrada de gêneros nos ambientes decisórios não é tema imune a críticas. Autores há que alegam não haver consenso sobre o efeito positivo da igualdade de gênero sobre a performance das companhias. A ausência de um inquestionável business case pela diversidade sugeriria, então, a inexistência de necessidade tanto de preocupação quanto de alterações legislativas sobre o assunto. Outros arguem que medidas afirmativas, como cotas para conselheiras, seriam degradantes para as mulheres, na medida em que sua eventual eleição passaria a ser imbuída do estigma de tratamento especial e a sugerir escolha não fundamentada no mérito.

Essa discussão, como sói acontecer em questões de governança corporativa, ultrapassa fronteiras, realiza-se na esfera transnacional e rapidamente alastra-se para além dos centros em que surgiu. Exemplo disso é o fato de que atualmente se encontra no Senado Brasileiro projeto de lei sobre a igualdade de gênero no ambiente corporativo, com a previsão de medida similar, se bem que menos abrangente, àquela encontrada em solo europeu. Não obstante a gritante diferença entre o número de conselheiros e conselheiras de companhias abertas brasileiras,4o projeto ora em análise refere-se tão somente a empresas estatais. Neste cenário, importa discutir a relevância da adoção de medida afirmativa e a conveniência de sua ampliação, de forma a atingir todas as sociedades listadas.

Em vista do exposto, este artigo está divido em cinco itens, sendo o primeiro esta "Introdução", o último dedicado a conclusões e contando, ainda, com a indicação da bibliografia referida. O item 2 oferece uma apresentação breve e descritiva das medidas legislativas até o momento adotadas principalmente em Países europeus e delineia o estágio atual das discussões no ambiente da União Europeia. O item 3 explica os principais argumentos favoráveis e contrários aos conselhos equitativos e discute se há um papel a ser exercido pelo Direito na promoção da igualdade de gênero no âmbito corporativo. Por fim, o item 4 esclarece como o tópico tem sido abordado no Brasil e adota uma perspectiva bastante própria de um País em desenvolvimento, ao defender que se leve em consideração o argumento de que medidas regulatórias ou autorregulatórias favoráveis à igualdade de gêneros e de acesso a oportunidades seriam formas de promover o desenvolvimento inclusivo no País.

Antes de passar à análise do tema, contudo, duas explicações iniciais parecem necessárias. Em primeiro lugar, devido às limitações de um artigo que busca apenas apresentar considerações introdutórias sobre o assunto, não foram tratadas as interessantes e profundas discussões das cotas à luz das teorias feministas. Trata-se, contudo, de indispensável perspectiva a ser abarcada por estudos mais aprofundados acerca da

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adoção de medidas de promoção da igual-dade de gênero no ambiente corporativo.5

Em segundo lugar, importa esclarecer que a opção pelo estudo de um assunto tão específico e restrito não significa que se julgue ser ele o mais relevante no largo universo da temática do empoderamento feminino e da igualdade de gêneros, tampouco que suprima preocupações redistributivas que ocorrem na intersecção entre desigualdades baseadas em gênero e em outros marcadores de minorias.6Cuida-se apenas de demonstrar que o caminho em prol dos direitos das mulheres perpassa a sociedade brasileira como um todo, alcançando inclusive aquelas que contam com favorecido acesso a uma classe econômica mais restrita. Reconhece-se, assim, que a realidade social brasileira impõe às mulheres dificuldades muito mais graves do que a limitação de acesso a cargos de gestão. De fato, há minoria digna de tutela que, além de se constituir como tal pelo gênero, é assim caracterizada por sua classe econômica e sua etnia. Ainda mais urgente deve ser a atenção a ela prestada pelas políticas públicas. Este não parece motivo suficiente, todavia, para não se enfrentar concomitantemente a questão aqui proposta.

2. Breve apresentação das atuais discussões e medidas legislativas sobre o tema

Países europeus e a própria União Europeia lideram atualmente as discussões acerca da adoção de cotas femininas na administração societária. A diversidade de gênero apresenta-se como tema de interesse tanto em instrumentos de regulação privada, dos quais os códigos de conduta são exemplos, quanto em legislações estatais. Enquanto nos primeiros a melhoria de práticas de governança é vista como forma de atrair investidores e consumidores, as últimas visam a promover a igualdade e a minimizar atitudes discriminatórias. Em ambos os esforços pela mais ampla feminilização7da liderança corporativa se referem particularmente a companhias listadas em Bolsas8ou que contam com elevado número de empregados, e dizem respeito à adoção de cotas de gênero para membros não executivos da administração. Na prática, dado o fato de que mulheres constituem percentual baixíssimo dentre os participantes dos altos cargos da administração empresarial, as cotas de gênero tornam-se cotas femininas.

Há pouco mais de 10 anos, época em que o tema não constava da agenda de nenhum País, a Noruega adotou a primeira regra societária de gênero.9No início estabeleceu-se um objetivo de elevação da participação feminina na administração, sendo que as com-

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panhias controladas pelo Estado passariam a necessariamente contar com representação de ao menos 40% de mulheres, e o mesmo se esperaria dos agentes privados nos próximos dois anos. Passado este tempo, a obrigatoriedade foi estendida a todas as companhias abertas, tendo sido a elas atribuído um período para a implementação das mudanças necessárias. Vale destacar que inicialmente o Governo permitiu que o setor privado optasse voluntariamente por observar o sistema mais igualitário exigido apenas das sociedades com capital estatal. Todavia, dado que sob o sistema voluntário não houve o esperado aumento da porcentagem de participação feminina,10a proporção obrigatória de administradoras foi introduzida.11Uma importante característica do mandamento igualitário refere-se à sanção que recai sobre aqueles que não o observam, a qual consiste na dissolução mandatória da sociedade, precedida de avisos para observância da regra.12Como resultado, em menos de uma década a porcentagem de mulheres no órgão de administração de companhias abertas subiu de 9% para 40,1%.13A iniciativa norueguesa, inicialmente não levada a sério por outros Países,14foi seguida pela Espanha, em 2007. A chamada lei de igualdade efetiva entre mulheres e homens foi introduzida para, dentre outros propósitos relacionados ao tratamento equânime de gêneros, aumentar a representação feminina em conselhos de administração.15A porcentagem recomendada, a ser atingida até 2015, é de 40% de conselheiras em companhias com mais de 250 empregados. Consoante explicado no próprio "Preâmbulo" da Ley Orgánica 3/2007, a igualdade formal perante a lei, muito embora seja um passo importante, é insuficiente para evitar a discriminação. Assim, em reconhecimento da necessidade de uma ação legislativa, a Espanha decidiu intervir e agir contra a desigualdade no ambiente corporativo. O documento cuida da adoção no campo nacional tanto da Dire-tiva 2002/73/EC, relativa à concretização do princípio da igualdade de tratamento entre homens e mulheres no que se refere ao acesso ao emprego, à formação e promoção profissionais e às condições de trabalho, quanto da Diretiva 2004/113/EC, que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e

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mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento.

Em 2011 outros Países, como a França, a Itália e a Bélgica, também adotaram leis de cotas de gênero. Em geral, os diplomas estabelecem prazos para a eleição de taxa progressiva de mulheres a compor os órgãos da administração. A falha em observar as regras obrigatórias resulta em penalidades diversas, que variam desde...

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