A Democratização do uso das Ações Processuais Disponíveis no Ordenamento Jurídico Brasileiro na Defesa dos Direitos Coletivos

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas249-256

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Vive-se um momento de transformação na mentalidade jurídica de proteção dos direitos, pois, se antes, com o advento do Código Civil de Beviláqua (1916), passamos por uma etapa marcadamente individualista, baseada na autonomia da vontade do cidadão, expurgada a ampla possibilidade das tutelas coletivas, considerando ter sido vetado pelo Presidente da República o dispositivo contido no texto original da Lei de Ação Civil Pública (Lei n.
7.347/1985), que tratava da tutela de quaisquer direitos difusos e coletivos, por não haver expressa definição legislativa para tais direitos, hoje, desde o advento da Constituição Cidadã (1988), temos o incremento do acesso à justiça tanto quanto à tutela dos interesses individuais como dos interesses coletivos (CF/88 — Título II, Capítulo I), o que deu ensejo, por exemplo, à edição da Lei n. 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor) que expressamente definiu os direitos metaindividuais, prevendo sua tutela por meio da Ação Civil Pública (incluído pela Lei n. 8.078 de 1990).

Já a contar dos primórdios da história da civilização humana existia a presença e proteção de objetos e lugares relativo ao uso da res communes. Fosse na sociedade primitiva (res universitalis), fosse na sociedade medieval com predominância religiosa (res sacrae), fosse na sociedade moderna ou na contemporânea, sempre houve bens e interesses não inseridos na titularidade individual, ao revés, alcançando um número ilimitado de sujeitos que transcendiam um universo restrito.

A complexa sociedade contemporânea somente veio realçar os interesses comuns, evidenciando a necessária proteção destes, inseridos na dimensão coletiva das relações sociais.

Isso ocorre porque a ação individual, como centro base de todo o sistema de proteção de direitos, não foi mais capaz de responder às profundas transformações sociais e econômicas que o mundo contemporâneo vem enfrentando ao longo dos últimos dois séculos. De certo, a quantidade de acontecimentos que permeou e que permeia o mundo atual, do ponto de vista

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histórico, é muito mais substancial em comparação com qualquer outra era da humanidade. O processo de industrialização, de urbanização e de globalização geraram e geram um fluxo de informações tão intenso que permitem inúmeras relações de produção de bens e de consumo, as quais influenciam nas expectativas dos homens para com o futuro.

O Direito não pode ficar ao largo dessas transformações, sendo forçado a admitir, pelas circunstâncias atuais, que o antigo dualismo Estado e indivíduo deu lugar a uma visão publicista do Direito, onde se verifica o privilégio do interesse coletivo frente ao interesse individual. Somente esta nova concepção do Direito é capaz de satisfazer as demandas de massa, proveniente das sociedades de massa, onde ocorrem as chamadas lesões de massa.

O caráter universalizante do Direito compõe a agenda do dia, onde o Estado deve interferir na regulação das relações entre seus jurisdicionados, com ênfase na preocupação social, na proteção substancial dos direitos humanos e na efetividade dos direitos fundamentais constitucionalizados.

A litigiosidade de massa reclama uma resposta jurisdicional coletiva como forma de efetivamente inibir, em tempo razoável, as lesões da coletividade enquanto interesse público, ou seja, enquanto lesões que extrapolam os interesses meramente individuais, que põem em risco a preservação harmoniosa da sociedade na realização de seus objetivos constitucionais.

Segundo Fredie Didier Jr. “...As ações coletivas tem, em geral, duas justificativas atuais de ordem sociológica e política: a primeira, mais abrangente, revela-se no princípio de acesso à Justiça; a segunda, de política judiciária, no princípio da economia processual...”1.

Disse o mesmo autor que as motivações políticas mais comuns respondem à redução dos custos materiais e econômicos da justiça que, dentre outros, aponta a segurança jurídica “...decorrente do atingimento das pretensões constitucionais de uma justiça mais célere e efetiva...”2. Quanto às motivações sociológicas, estas revelam-se pelo controle das demandas em massa, cuja resposta do Poder Judiciário deve obedecer a mesma dimensão coletiva.

A necessária proteção dos direitos coletivos de grupos, categorias ou classe de pessoas ressalta a preocupação doutrinária e legislativa na identificação dos mesmos e nas formas jurisdicionais de sua proteção. Entretanto, mister que se ressalte a diferença entre a dimensão coletiva do Direito e os mecanismos de sua proteção.

A dimensão coletiva do direito está inserida em uma realidade que se opõe à dimensão individual. O coletivo é representado por meio de categorias como Estado, Família, Igreja, Comunidades, Povo, Nação, Massa ou Classe, sendo estudado consoante a dinâmica de interações individuais ou grupais. Ele não se reduz ao social totalizado, pois seu funcionamento não pode ser apreendido por entre dinâmicas das relações interindividuais ou grupais, muito pelo contrário, o coletivo não está apenas em um ou vários interesses, mas entre o espaço-tempo comum, impessoal e partilhável na relação funcional de um plano coletivo.

A subjetividade relacional do direito coletivo inclui sistemas extrapessoais ou sociais na medida de sua multiplicidade impessoal de interesses, esta, por sua vez, contrapõe-se ao conjunto ou somatório dos interesses individuais das pessoas. O coletivo é impessoal, indivisível e transindividual.

Por outro lado, a proteção da dimensão coletiva do direito revela-se pelas formas dos diversos tipos de tutela processual disponíveis em um determinado ordenamento jurídico.

No Brasil, inicialmente, a tutela processual disponível para defesa dos direitos coletivos fez-se presente por meio das ações de dissídio coletivo (CLT, art. 856 e ss.), na área do direito processual do trabalho, posteriormente, foi editada a Lei da Ação Popular (Lei n. 4.717/65), que representou o sistema único de tutela coletiva no

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direito brasileiro, pois qualquer cidadão, no pleno gozo de seus direitos civis e políticos, poderia ingressar em juízo para defesa do patrimônio público da prática de atos ilegais. Todavia, a primeira lei que tratou de forma sistemática da defesa dos direitos transindividuais em juízo foi a da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85).

Contudo, não obstante a grande importância trazida pela Lei da Ação Popular na esfera de proteção coletiva dos direitos, esta apenas tutelava os direitos coletivos lato sensu, deixando de lado os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos.

A dimensão coletiva stricto sensu do direito e os direitos individuais homogêneos, ao lado da própria dimensão coletiva lato sensu, somente passaram a integrar o sistema de tutela coletiva do direito brasileiro com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que mencionou esses três tipos de proteção em vários de seus dispositivos, como por exemplo os arts. 8º, III; 5º, LXXIII; 127; 129, III.

Posteriormente, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90), que regulamentou as questões importantes, tais como a legitimidade, a competência, a litispendência e a coisa julgada da tutela coletiva de direitos, foi aperfeiçoado o sistema brasileiro de tutela jurídica massificada.

Ainda em contribuição à defesa dos direitos coletivos, a Constituição de 1988 previu a interposição do Mandado de Segurança Coletivo pelos Partidos Políticos (art. 5º, LXX, da CF/88), sendo que, em 10 de agosto de 2009, foi publicada nova lei do Mandado de Segurança Individual e Coletivo (Lei n. 12.019/2009), que restringiu o alcance...

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