Anotações ao processo formulário no direito romano clássico

AutorClaudio Henrique de Castro
CargoProfessor adjunto de História do Direito e Direito Romano (Universidade Tuiuti do Paraná)
Páginas35-44

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1. Introdução – Escorço histórico

O direito romano conhece três grandes sistemas processuais, cada qual vinculado, grosso modo, com os períodos pré-clássico (leges actiones), clássico (per formulas) e pós-clássico (cognitio extraordinem)1. No pré-clássico, nas leges actiones o que mais importa é a forma e não a vontade do ato, com efeito, prepondera o formalismo do ius civile2.

No longo vagar dos séculos e na deposição da tirania da realeza romana que vigorou de 754 a.C. a 510 a.C.3 travaram-se lutas surdas entre patrícios e plebeus4, as quais influenciaram profundamente o direito romano5.

Assim como os sacerdotes egípcios, os astrólogos caldeus, os magos se distinguiam dos homens pelas suas características especiais. Também astrônomos, astrólogos e meteorologistas desempenhavam uma função política relevante na China6. Para tudo isso era necessário um aparato cênico, o engano da palavra, do gesto, de um sacrifício, e no direito um erro impedia a produção do efeito jurídico desejado e obrigava a repetição até trinta vezes7. É o chamado amor à forma, que faz tornar visível o invisível,

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no culto, nas orações, na atividade dos comícios, nas declarações de guerra e nos tratados internacionais8.

Neste diapasão, o direito do préclássico era ditado pela interpretação pontifícia, isto é, proveniente do Colégio dos Pontífices, formado apenas por patrícios romanos, um colégio sacerdotal que durante séculos teve o privilégio da inter-pretação do direito. É o período esotérico do direito romano9, sem uma distinção entre direito e religião. Esse ius sacrum era repleto de segredos pontificiais que se faziam por meio do calendário religioso dos dias fastos e nefastos, e das palavras que se deveriam pronunciar no momento da demanda, que se acaso fossem pronunciadas de forma errada ocasionavam a fulminante perda da ação. O processo de laicização da jurisprudência pontificial se deu em virtude das gradativas quebras dos segredos do Colégio Pontifício10.

No plano econômico, Roma passou a dominar todo o mundo antigo, após o triunfo nas Guerras Púnicas, tornando uma potência econômica jamais conhecida na antiguidade, nos anos de 220 a 168 a.C. Há assim uma riqueza em escala proveniente dos despojos dos vencidos, das grandes massas de escravos (660 mil escravos viviam por volta de 225 a.C.)11, dos saques e indenizações das guerras, duma grande riqueza, que gera a aparição de uma nova classe nobiliária, a classe equestre, detentora da riqueza imobiliária12. Nesta sociedade tem-se proprietários-agricultorescidadãos-soldados e uma nobreza circunspecta e severa na qual surge uma “economia mundial” jamais imaginada13.

Poder-se-ia afirmar que assim o ius (profano)14 separou-se do fas (divino, religioso), foi a fase da “secularização” do direito15. Pari passu, surge o ius gentium, um novo ordenamento jurídico para os estrangeiros16, utilizado pelos povos itálicos e mediterrâneos em suas transações comerciais com Roma, a despeito das tradições jurídicas da cidade, o ius civile17.

Evoluindo-se do formalismo do pré-clássico, no período clássico se consolidará o respeito à palavra empenhada, a fides18 que se supõe fazer o que se disse, isto é, cumprir o que se prometeu, ter palavra, gerar um estado de confiança, de um homem cumpridor de seus compromissos19; segundo Velasco, a fides aparece como ideia central do pensamento jurídico e político de Roma20.

2. Noções gerais do processo formulário

Há, com efeito, uma falta de unidade global do direito no direito romano e é Kaser que chama a atenção para as várias “massas” ou “camadas” de instituições jurídicas e preceitos de direito, que se distinguem pelo âmbito de aplicação e fundamentos de vigência; veja-se, por exemplo, o ius civile, somente para os romanos, e o ius gentium, para todos sem distinção de nacionalidade21.

Haveria uma identidade entre ius e actio, conceitos inseparáveis para os romanos, pois um não existiria sem o outro. Por conseguinte, o ius22 não pode ser um sinônimo de norma no sentido atual23.

Na verdade, com a Lex Aebutia (de data incerta, de 149 a.C. a 126 a.C.) os cidadãos foram autorizados a instaurar a iudicia em fórmulas, sem necessidade de recorrer às leges actiones. Desta forma as sentenças tinham a validade e produziriam os mesmos efeitos das leges actiones24.

Posteriormente, ao tempo do imperador Otávio Augusto, a lex Julia iudiciorum privatorum de 17 a.C. oficializou o processo formular25.

Nas palavras de Schulz, daí resulta a diferença entre iurisdictio e iudicatio: a primeira significa o âmbito do procedimento civil ordinário, a autoridade para decidir se a um autor deve ser permitido deduzir uma demanda perante um juiz; e a iudicatio (iudicare), que significa a autoridade para dirimir e sentenciar um processo26.

O direito romano clássico é assim um direito de ações27, posto que a verdadeira intervenção pública no direito foi de caráter processual, que constitui um único meio de impor o direito28.

Em consequência, a actio é um ato jurídico por excelência, uma atuação com a finalidade de obter uma decisão definitiva (iudicatum) fundada na opinião (sententia) de um juiz privado (iudex privatus) que se distingue dos juízos públicos endereçados a questões penais e políticas29.

O pretor, diga-se o magistrado, faz uma prévia cognição (causae cognitio) e concede (dare actione) ou não concede (denegatio actione) a ação ao interessado30. Disto resulta uma discricionariedade31 na qual o pretor é um quase-legislador do caso apresentado pelas partes, pois no exercício da iurisdictio ele, pretor, irá determinar o direito a se aplicar na decisão da controvérsia concreta, sobre a qual o juiz popular pronunciará a sententia32 que deverá seguir os exatos contornos da fórmula33. O elemento fundamental deste sistema processual é a fórmula, que é dada pelo pretor e que consubstancia o litígio.

O processo é bifásico34: na primeira fase, in iure, o pretor analisa a demanda, na segunda, endereçada ao juiz popular, apud iudicem, este irá julgar o caso pelo convencimento das provas apresentadas35, pronunciará a sua sententia, do verbo sentire36.

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A pretura fazia parte da progressão do cursus honorum para se atingir magistraturas superiores, daí o interesse dos pretores em atuar de forma digna e correta37.

Na transição, no liminar do processo formular, os sistemas do pré-clássico e do clássico convivem harmoniosamente, o das leges actiones e do agere per formulas, este último é escolhido pelas partes pela simplicidade e flexibilidade de adaptação ao caso litigioso, fazendo com que o sistema anterior caia em desuso38.

Em síntese, o pretor ameniza as durezas do direito decenviral, do velho ius quiritum, cruel, duro e intransigente, tornando-o mais humano e conforme as necessidades do momento39. Essa transição se caracteriza pela substituição das fórmulas verbais (certa verba) do sistema das leges actiones por um texto ou fórmula escrita (concepta verba)40. Gaio nos informa que as ações da lei se tornaram odiosas em face do seu rigorismo excessivo, e que o processo formulário nasceu nas provinciais e veio para Roma41.

Neste diapasão, a tarefa dos jurisconsultos, cujo conselho se solicitava na busca do direito, tanto os pretores, as partes e os juízes, era antes de tudo, indicar o formulário das ações analisando as possibilidades de êxito42. E, somado ao ius edicendi dos magistrados43 que durava um ano, o período do seu mandato, conferia grande criatividade e possibilidades de inovações do ius civile, fazendo surgir o ius honorarium ou ius praetorianum.

As ações ocupavam a maior parte dos editos, algumas eram provenientes do ius civile outras de adaptações e criações ex novo por parte do pretor, que se limitava a incluir no seu album a fórmula tipo na qual se narravam tais e a quais circunstâncias se concederiam as ações44.

Há de se ressaltar que o jurisconsulto45 na sua atividade do respondere emite suas responsa quanto à formulação e aplicação do direito aos magistrados, às assembleias, aos juízes, às partes e no pós-clássico, aos imperadores46. O respondere se faz sobre casos reais e debatidos; no agere, o jurisconsulto dá a direção do processo, indicando as ações a se exercitar e os procedimentos a serem seguidos na fórmula; e no cavere, aconselha as partes sobre as formalidades e requisitos dos atos, contratos e negócios jurídicos em geral47.

Segundo Peixoto, as diferenças entre a lei e o edito dos pretores seriam as seguintes: 1) enquanto a lei era perpétua, o edito era anual, deveria ser invocado no ano de exercício do magistrado; 2) a lei estendia-se a todo território, já o edito somente se aplica ao território sujeito à jurisdição do magistrado que o promulgava e 3) diferentemente da lei, o edito não podia revogar uma regra do ius civile nem criar regra nova, mas apenas chegar ao mesmo resultado, neutralizando, na aplicação, a lei existente ou suprindo-lhe a omissão48.

Para se compreender a importância dos jurisconsultos no poder criativo dos pretores e como se processavam as informações no esquema criativo da magistratura pretoriana, Garrido demonstra a técnica de elaboração casuística49:

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Nesta toada, a operatividade do direito se efetiva num sistema aberto50. Por isto, Roma foi a primeira a criar uma técnica social imersa num estatuto forte, em uma função jurídica específica dos seus estudiosos: os juristas51.

Por conseguinte, orientados pelos jurisconsultos os pretores criam o ius praetorianum que no Digesto (D. 1, 1, 7, 1) como afirmou Papiniano é: “ius praetorium est, quod praetores introduxerunt adiuvandi vel supplendi vel corrigendi iuris civilis gratia propter...

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