Cognição, construção de procedimentos e coisa julgada: os regimes de formação da coisa julgada no direito processual civil brasileiro

AutorProf. Fredie Didier Jr.
CargoProfessor de Processo Civil da Universidade Salvador (UNIFACS) e da Universidade Católica de Salvador (UCSAL). Advogado e Consultor jurídico em Salvador
Páginas1-28

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1 Intróito

Dois assuntos têm recebido, ultimamente, atenção especial dos estudiosos do processo que se têm debruçado sobre temas havidos como resolvidos ou proscritos, respectivamente: a coisa julgada e o procedimento. Aquela, objeto de empresa revisionista ou relativizadora; este, em pleno resgate dogmático, com nítido intuito de revalorização da sua importância no processo.

Este ensaio visa demonstrar o elo entre o fenômeno da coisa julgada e o procedimento -em que medeia o estudo da cognição judicial-, estabelecendo, para a primeira, um esboço de classificação dos regimes de sua produção -necessário para iluminar os caminhos de tantos quantos augurem estudar o assunto. Page 2

Ei-lo, o nosso propósito.

2 Digressão sobre a teoria da cognição judicial

O regime de formação da coisa julgada está intimamente relacionado com o grau de cognição do magistrado a respeito das questões postas para a sua apreciação - visto este fenômeno sob o aspecto vertical, de acordo com a divisão de KAZUO WATANABE , no livro diversas vezes citado ao longo deste ensaio.1

A construção dos procedimentos, de sua banda, é feita mediante a combinação das diversas modalidades de cognição; a partir desta manipulação, o legislador concebe os procedimentos diferenciados e adaptados às várias especificidades do direito ou das pretensões materiais.2Podem-se criar procedimentos de cognição sumária (ineptos para a produção de coisa julgada) ou procedimentos em que a cognição será sempre exauriente (hábeis, assim, a, preenchidos outros requisitos, gerar a res iudicata).

Deste modo, para que se possam estudar as técnicas de produção de coisa julgada desenvolvidas para os diversos direitos, é absolutamente indispensável uma rápida digressão sobre a teoria da cognição judicial, tarefa para cuja solução nos utilizaremos das preciosas lições de KAZUO WATANABE .

Segundo o professor paulista, considera-se a cognição "prevalentemente um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fato Page 3 e as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do iudicium, do julgamento do objeto litigioso do processo." 3

A importância do seu estudo, conforme síntese de ANTÔNIO CLÁUDIO DA COSTA MACHADO , para além do aspecto da construção dos procedimentos, se revela nas circunstâncias de ser a ponte de contato entre o direito material e o processo que se propõe a realizá-lo, bem como porque a própria classificação dos processos -a distinção ontológica entre as três espécies- reside justamente no objeto cognoscível e na forma que se o conhece.4

O fenômeno cognitivo pode ser visualizado em dois planos, ainda de acordo com o estudo de WATANABE .5

Em primeiro lugar, o plano horizontal, que diz respeito à extensão e à amplitude das questões que podem ser objeto da cognição (no direito brasileiro, o trinômio de categorias processuais: condições da ação, pressupostos processuais e mérito da causa).6 Aqui se definem quais as questões pode o magistrado examinar. A cognição, assim, poder ser: a) plena: não há limitação ao quê o juiz conhecer; b) parcial ou limitada: limita-se o quê o juiz pode conhecer. O procedimento comum é pleno, na medida em que não há qualquer restrição da matéria a ser posta sob apreciação; o rito da desapropriação, no entanto, é de cognição limitada, porquanto não se possa, em seu bojo, discutir a validade do ato expropriatório.

Em segundo lugar, o plano vertical (profundidade), que diz respeito ao modo como as questões serão conhecidas pelo magistrado. Aqui se responde à pergunta: de que forma o órgão jurisdicional conheceu aquilo que lhe foi Page 4 posto à apreciação? Poderá ser, portanto, exauriente ou sumária, conforme seja completo (profundo) ou não o exame.

Combinam-se estas modalidades de cognição, conforme se anunciou, para a formação dos procedimentos.

Há aqueles de cognição plena e exauriente, os quais compõem a regra, sendo principal exemplo o rito ordinário. A solução dos conflitos de interesses é buscada através de provimento que se assente em procedimento plenário quanto à extensão do debate das partes e da cognição do juiz, e completo quanto à profundidade desta mesma cognição. Decisões proferidas aqui são, por exemplo, aquelas dos procedimentos comuns (ordinário, sumário ou o dos Juizados Especiais Cíveis), passíveis de produção de coisa julgada material. Prestigia-se o valor segurança.

A cognição pode ser parcial e exauriente: a limitação é apenas do quê; quanto aos pontos e questões que podem ser resolvidos a cognição é exauriente, de sorte que a sentença (julgado) tem aptidão para produzir coisa julgada material. Ao estabelecer as limitações, o legislador leva em conta (a) as peculiaridades do direito material, e/ou, (b) necessidade de tornar o processo mais célere. Ressalva-se, todavia, o direito de questionar os pontos controvertidos excluídos em ação autônoma. Há o prestígio dos valores certeza e celeridade, na medida em que se permite o surgimento de uma sentença em um tempo inferior àquele que seria necessário ao exame de toda a extensão da situação litigiosa. São exemplos: a) conversão da separação judicial em divórcio (art. 36, parágrafo único, LF 6.515/77); b) embargos de terceiro (art. 1054); c) busca e apreensão da lei de alienação fiduciária; d) desapropriação.

A cognição poderá ser, ainda, plena e exauriente "secundum eventum probationis": sem limitação à extensão da matéria a ser debatida em juízo, mas com o condicionamento da profundidade da cognição à existência de elementos probatórios suficientes. Trata-se de técnica processual para conceber procedimentos simples e céleres, com supressão da fase probatória específica ou procedimento em que as questões prejudiciais são resolvidas ou não conforme os elementos de convicção, ou, ainda, serve como instrumento de política legislativa, pois evita, quando em jogo interesse coletivo e indisponível, a formação de coisa julgada material, a recobrir juízo de certeza fundado em prova insuficiente. A decisão da questão está condicionada à profundidade da cognição que o magistrado conseguir, eventualmente, com base na prova existente dos autos (e permitida para o procedimento), efetivar. À conclusão de insuficiência, o objeto litigioso é decidido sem caráter de definitividade, não alcançando a autoridade de coisa julgada material. São exemplos: a) procedimento de inventário, quando se afirma que a questão prejudicial surgida será decidida se o magistrado dispuser de elementos bastantes para o estabelecimento do juízo de certeza, caso contrário, será considerada questão de alta indagação, devendo ser remetida para os meios ordinários (art. 1.000, CPC); b) mandado de segurança (STF 304; art. 15, LF 1.533/51); c) desapropriação, na fase de levantamento do preço, havendo dúvida fundada sobre o domínio, o magistrado não deferirá a nenhum dos litigantes a entrega do preço, determinando a solução da controvérsia em ação Page 5 própria (art. 34, caput, e parágrafo único, do Dec.-lei 3.365/41; d) a disciplina da ação popular e das ações coletivas, ambos, anuncie-se de logo, fundadas em direito indisponível.

Pode-se vislumbrar, ainda, a cognição eventual, plena ou limitada, e exauriente (secundum eventum defensionis): somente haverá cognição se o demandado tomar a iniciativa do contraditório, eis porque eventual. São exemplos: a) ação monitória e b) ação de prestação de contas.

Quanto à cognição sumária (possibilidade de o magistrado decidir sem exame completo), tem-se que é permitida, normalmente, em razão da urgência e do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, ou da evidência (demonstração processual do direito) do direito pleiteado, ou de ambos, em conjunto. No plano vertical, a diferença entre as modalidades de cognição está apenas na maneira como o magistrado enxerga as razões das partes (causa de pedir). Exemplo da possessória: o juiz, ao examinar a inicial, analisa, superficialmente, se houve posse (causa remota) e o esbulho (próxima). São ambientes propícios à cognição sumária: a) processo de conhecimento que admite liminar não-cautelar; b) processo cautelar; c) processo de conhecimento com a tutela sumária de mérito genérica. São exemplos: a cognição utilizada nas medidas liminares, antecipatórias ou assecuratórias. Conduz aos chamados juízos de probabilidade e verossimilhança, ou seja, às decisões que ficam limitadas a afirmar o provável. Tem por objetivos assegurar a viabilidade da realização de um direito ameaçado por perigo de dano iminente (tutela cautelar); realizar antecipadamente um direito: a), em vista de uma situação de perigo (tutela de urgência sumária satisfativa); b) em razão das peculiaridades de um determinado direito e em vista do custo do procedimento ordinário; c) quando o direito do autor surge como evidente e a defesa abusiva (art. 273, II, CPC). Caracteriza-se, principalmente, pela circunstância de não ensejar a produção da coisa...

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