Limitações probatórias no processo civil

AutorLeonardo Greco
CargoProfessor Titular de Direito Processual Civil da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Professor Adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Páginas4-28

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Uma das maiores ilusões que a consciência democrática contemporânea difunde na sociedade é a de que todo aquele que tiver um direito lesado ou ameaçado vai receber do Estado a mais ampla e eficaz tutela jurisdicional, que lhe assegurará o pleno gozo desse direito.

Ocorre que o direito nasce dos fatos e não houve até hoje nenhuma ciência ou saber humano que fosse capaz de empreender uma reconstrução dos fatos absolutamente segura e aceita por todos, para que o juiz, no seu mister, pudesse limitar-se a dizer o direito a ela aplicável.

Nos livros em que estudamos, as questões de fato pareciam quase inteiramente alheias ao mundo do Direito, como se fossem objeto ou de um saber vulgar naturalmente sujeito a erro, resultante da percepção sensorial de qualquer pessoa, como a testemunha, em si pouco confiável, ou de um sofisticado saber científico, revelado enigmaticamente pelo perito, investido de uma confiança cega e incontestável, ou de documentos iguais aos que diariamente manipulamos nos sucessivos episódios da nossa vida e que aprendemos a avaliar intuitivamente através do senso comum.

O processo estudaria apenas os meios e o modo como o conhecimento dos fatos é produzido como premissa necessária da sentença judicial, estabelecendo ainda, juntamente com o direito material e em benefício deste, algumas regras mais ou menos interventivas na sua investigação ou na sua avaliação.

Se essas regras jurídicas tiverem sido observadas, nenhuma importância terá o resultado, que poderá tanto estar muito próximo quanto muito distante da realidade da vida.

Essa indiferença com o resultado da apuração dos fatos no processo encontrava justificativa na inspiração divina da decisão judicial, aceita desde a Antiguidade grega, ou no poder absoluto do soberano, que substituiu na Idade Moderna o poder divino, ou no individualismo da livre convicção liberal, em que o juiz emanava a lei do caso concreto, mas seguramente não satisfaz aos ideais democráticos do Estado contemporâneo, que assenta a legitimidade política do poder dos juízes na credibilidade das suas decisões.

A sociedade do nosso tempo é mais exigente. Ela não mais se contenta com qualquer reconstrução dos fatos, mas apenas com aquela que a consciência coletiva assimila e aceita como autêntica, porque a exata reconstituição dos fatos é um pressuposto fundamental de decisões justas1e da própria eficácia da tutela jurisdicional dos direitos, já que legitimadora do poder político de que estão investidos os julgadores.

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1. – A descoberta da verdade

Alguns autores, que apontam a formação da convicção do juiz como a função da prova, também, alternativa ou cumulativamente, lhe atribuem uma função objetiva de revelação da verdade ou da certeza dos fatos.

Assim, Mittermayer2 se refere à prova subjetiva e objetivamente: subjetivamente como o conjunto de esforços para firmar a convicção no espírito do juiz; objetivamente, como sinônimo de certeza, compreendendo o complexo dos motivos poderosos que fazem concluir com toda a segurança a realidade dos fatos.

Devis Echandia3, do mesmo modo, atribui às provas a função de levar ao juiz o convencimento ou a certeza sobre os fatos.

Também Moniz de Aragão4 invoca o artigo 339 do CPC para observar que o descobrimento da verdade é objetivo precípuo a ser alcançado para que se pronuncie o julgamento.

Em todos os tempos, a idéia de Justiça, como objeto do Direito, sempre esteve axiologicamente ancorada no pressuposto da verdade, ou seja, na incidência das normas jurídicas sobre a realidade da vida tal como ela é. Os indivíduos somente se sentem eticamente motivados a conviver sob o império da lei, quando sabem que a justiça vai dar a cada um o que é seu, em conformidade com a verdade.

É claro que na História da Humanidade, em muitas épocas, o conceito de verdade, como adequatio intellectus ad rem, foi questionado pelos filósofos, ou foi considerado inacessível ou foi sobrepujado pelo Estado autoritário ou pelo positivismo, mas sempre, na teoria da prova judiciária, a verdade ou a certeza dos fatos sobreviveu como uma função importante.

Respondendo ao ceticismo dominante no seu tempo, Jaime Guasp, em estudo contemporâneo à 2ª Guerra5, concluiu, citando Chiovenda: "... no hay más que una Justicia como no hay más que una Verdad"6.

Outro autor italiano que não pode ser ignorado no trato da matéria é Michele Taruffo, já agora representativo do salto qualitativo dado pelo Direito Processual no segundo Pós-Guerra, em direção a um processo como instrumento de tutela efetiva dos direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico, que precisa se reconciliar com a verdade, porque negar a capacidade do processo de revelá-la implicaria em negar a própria possibilidade de o Estado assegurar o acesso ao direito, que decorre dos fatos7.

O que é preciso assentar é a necessidade garantística da apuração dos fatos, a necessidade de buscar a verdade dos fatos como pressuposto da tutela jurisdicional efetiva dos direitos conferidos pelo ordenamento jurídico. De nada adianta a lei atribuir ao cidadão inúmeros direitos, se não lhe confere a possibilidade concreta de demonstrar ser titular desses direitos, ou seja, se lhe impõe umaPage 6investigação fática capenga, incompleta, impedindo-o de obter a tutela dos direitos pela impossibilidade de demonstrar a ocorrência dos fatos dos quais eles se originam. Ferrajoli qualifica a garantia jurisdicional como o direito a um julgamento conforme à verdade jurídica e fática8. Mas a verdade não compõe apenas essa garantia. É também pressuposto da justiça das decisões judiciais e, como tal, da própria legitimidade política do Judiciário, como guardião da ordem jurídica e dos direitos dos cidadãos, e limite intransponível ao arbítrio. Por isso Taruffo a qualifica como um dos escopos institucionais do processo9.

Se a verdade no processo tem essa relevância humanitária e política, ela não pode ser uma outra verdade senão aquela que resulta do mais qualificado método de investigação acessível ao conhecimento humano, em qualquer área do saber.

Como diz Taruffo, a busca da verdade é teoricamente possível e ideologicamente oportuna e até necessária, para que o processo seja o meio de produzir decisões justas10.

Daí resulta que o discurso justificativo das decisões sobre os fatos deve ter por função a demonstração lógico-racional da correspondência das afirmações aos fatos do mundo real, com o emprego dos mesmos métodos e critérios das ciências correspondentes, quando for o caso11. Isso não significa transformar o processo numa busca interminável da verdade absoluta, pois, mesmo a investigação científica está sujeita a imposições temporais.

O fundamental é que as normas jurídicas relativas à produção das provas não podem constituir obstáculos que dificultem a reconstrução objetiva dos fatos. Para que a celeridade não constitua um obstáculo, certamente o processo deverá ser aperfeiçoado, através de técnicas mais apropriadas de antecipação da atividade probatória, como a disclosure e a discovery do direito anglo-americano.

A conceituação da prova como um instrumento de busca da verdade, na luta pelo acesso à tutela jurisdicional efetiva dos direitos, impõe necessariamente uma ampla revisão de todo o sistema normativo probatório, redefinindo a configuração de uma série de institutos, cujo conteúdo se consolidou no curso no tempo e que dificulta o acesso à verdade.

Peter Häberle, no seu ensaio sobre Direito e Verdade, ressalta que a verdade é um valor humanitário fundamental no Estado Democrático de Direito, porque dela dependem a eficácia da liberdade, da justiça e do próprio bem comum. Depois da experiência do modelo autoritário, o estado constitucional impõe a verdade como um valor cultural. Ao contrário de Hobbes (auctoritas non veritas facit legem), podemos dizer que é a verdade e não a autoridade que origina a lei. Correta, portanto, é a observação de Vaclav Havel de que "há nos sistemas pós-totalitários uma característica particular: a aspiração humana à verdade"12.

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Como instrumento da verdade é que a prova vai cumprir aquela função social apontada por Devís Echandia: dar segurança às relações sociais e comerciais, prevenir e evitar litígios e delitos, servir de garantia dos direitos subjetivos e dos diversos status jurídicos13.

É sob essa perspectiva que iremos estudar as chamadas limitações probatórias.

2. – Conceito

Limitações probatórias são todas as proibições impostas pelo ordenamento jurídico à proposição ou produção das provas consideradas necessárias ou úteis para investigar a verdade dos fatos que interessam à causa.

Essas limitações são de diversas naturezas. Algumas resultam da imposição de prazos e de preclusões pelas normas que regem os diversos procedimentos e a prática dos atos processuais neles inseridos. Outras decorrem da necessidade de assegurar ao processo celeridade e rápida solução, impedindo a produção de provas consideradas inúteis ou procrastinatórias. Outras visam a dar segurança a certas relações jurídicas, mediante a admissibilidade da prova de certos fatos somente por meio de fontes de excepcional qualidade formal, como o registro público, repudiando as demais. Outras, ainda...

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