Os Princípios Processuais na Constituição de 1988

AutorEduardo Rodrigues Dos Santos
Ocupação do AutorMestrando em Direito Público Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Páginas115-158

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Após construir-se um arquétipo geral do modelo constitucional de processo e apresentar a essencialidade da participação cidadã, do policentrismo e da comparticipação processual (com base na obra do professor Dierle Nunes), veremos algumas das linhas fundamentais desse modelo, tendo como alicerce alguns dos princípios processuais constitucionais estabelecidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Escolheu-se desenvolver os princípios em razão de sua alta carga axiológica e por se crer, como há muito ensinara Eduardo Couture, que eles representam a consolidação dos direitos e garantias processuais da pessoa humana, positivados nas Cartas Constitucionais do séc. XX23(COUTURE, 1958).

Não se pretende abordar aqui todos os princípios processuais trazidos pela Carta de 1988, nem se pretende estabelecer que os princípios tratados aqui são indeclinavelmente os mais importantes. Entretanto, optamos por elencar alguns princípios com base naquilo que se crê ser mais relevante para o desenvolvimento deste trabalho.

Do mesmo modo, os princípios que nos propomos abordar diretamente, com toda certeza, não terão seu conteúdo esgotado24,

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pois o que se alvitra é apenas uma construção genérica do princípio, apresentando brevemente sua origem, suas características principais e suas funções e garantias primordiais.

Com o escopo de traçar uma base panorâmica do modelo constitucional de processo contido na atual Carta Maior brasileira, apresentaremos os princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, do duplo grau de jurisdição, da publicidade, do juiz natural, da motivação, da inadmissibilidade de provas ilícitas, da celeridade e da efetividade processual.

Desse modo, passemos à análise direta dos referidos princípios.

4. 1 O Devido Processo Legal

O Princípio do devido processo legal ou, no original inglês, do due process of law, também conhecido pela doutrina processual contemporânea como o princípio dos princípios processuais, em razão de englobar os demais, é sem dúvida uma das normas mais importantes, se não a mais importante, de todo o Direito Processual.

Sua origem data da Magna Carta de 1215, apesar de alguns, como Luciana Berardi, defenderem que o due process of law pode ser encontrado em escritos do século IV e V a.C., inclusive na obra de Platão e Aristóteles (BERARDI, 2006); uma visão um tanto distorcida e amplificada demais, em face da real magnitude deste princípio tal como edificado na Carta Inglesa do século XIII.

Partindo da concepção, aqui defendida, de que o due process of law tem origem na Magna Carta25, Carlos Roberto Siqueira Castro explica que sua inserção no Direito inglês medieval foi fruto dos conflitos entre a realeza e a nobreza a desígnio dos privilégios feudais, majorados consideravelmente desde os primórdios do séc. XI, com a invasão de Guilherme, o “Conquistador” (CASTRO, 2010).

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Como ensina Siqueira Castro, em 15 de junho de 1215, o Rei João “Sem Terra”, que herdara a coroa com a morte de seu irmão, o Rei Ricardo “Coração de Leão”, outorgou à nobreza inglesa a Magna Carta, originalmente escrita em latim, concebida sob forte inspiração Jusnaturalista e que, em seu artigo 39, dispunha pela primeira vez sobre o due process of law, expresso naquele documento como law of the land26(CASTRO, 2010). Veja-se:

Art. 39. No free man shall be seized or imprisoned, or stripped of his rights or possessions, or outlawed or exiled, or deprived of his standing in any other way, nor will we proceed with force against hi, or send others to do so, except by the lawful judgment of his equals or by the law of the land.27No original em latim:

Art. 39. Nullus liber homo capiatur, vel impresonetur, aut disseisetur de libero tenemento, vel libertatibus, vel liberis consuetudinibus suis, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eum ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum, vel per legem terrae.

Na seara desse pensamento, vale ainda o registro de dois documentos ingleses, o Statute of Westminster of the Liberties of London, editado pelo Parlamento inglês em 1354 e que foi o primeiro documento a substituir o termo per legem terrae pelo due process of law (CASTRO, 2010), e a afamada Petition of Rights de 1628, editada pela Câmara dos Comuns (LIMA, 1999), que assim dispunha: “(...) that freeman be imprisioned or detained only bay the law of the land, or by due process of law, and not by the king´s special command without any charge28.

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Como ensina Siqueira Castro, a cláusula do devido processo legal, pelo fenômeno da recepção, “ingressou desde o primeiro instante nas colônias inglesas da América do Norte (a Nova Inglaterra)” (CASTRO, 2010, p. 8). Entretanto, segundo ele, o princípio do devido processo legal só foi positivado na Constituição dos Estados Unidos com as 5º e 14ª Emendas, apesar de já compor o ordenamento jurídico constitucional estadunidense de forma tácita, podendo ser encontrado, também, em várias “Declarações de Direitos (Bill of Rights) das primitivas colônias inglesas” (CASTRO, 2010, p. 9), tais como a Declaração dos Direitos da Virgínia, de 16 de agosto de 1776; a Declaração de Delaware, de 2 de setembro de 1776; a Declaração de Direitos de Maryland, de 3 de novembro de 1776, entre outras.

Até antes do advento das 5ª e 14ª Emendas e, sobretudo, do fabuloso início da jurisdição constitucional estadunidense, com o célebre caso Marbury versus Madison e o paradigmático voto do juiz Marshall, o devido processo legal era entendido sob uma ótica meramente processualística, que implicava a observância do procedimento legalmente estabelecido para que o cidadão pudesse ser privado de sua vida, liberdade ou propriedade (CASTRO, 2010).

Porém, com o advento das revoluções burguesas, das Cartas de Direitos da Modernidade e, sobretudo, do judicial review estadunidense, o devido processo legal passou a ser visto também sob uma ótica mate-rialística, ou melhor, em sentido substantivo29, de conteúdo garantista, limitando a ação estatal no campo de todos os poderes (Judiciário, Executivo e Legislativo) e garantindo um processo não só legal, mas também justo e adequado (CANOTILHO, 2003).

Nesse sentido, como ensina Canotilho, “o processo devido deve ser materialmente informado pelos princípios da justiça”, tanto no campo jurídico-processual como no campo normativo-legislativo, de modo que a legislação deve ser produzida de maneira justa visando atingir

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um processo justo de acordo com a ordem constitucional vigente, cabendo às Cortes Constitucionais o dever de rever aquelas leis que não estiverem de acordo com a Constituição e seus princípios, entre eles o devido processo legal, que, entre outras coisas, impede o Legislativo de criar leis que disponham arbitrariamente dos direitos à vida, à liberdade, à propriedade ou de qualquer outro Direito Fundamental (CANOTILHO, 2003, p. 494).

Como explica Siqueira Castro, sob uma perspectiva evolutiva, inicialmente o princípio do devido processo legal estava ligado somente ao processo penal, mas pouco demorou a se estender ao processo civil e, posteriormente, ao processo administrativo, de modo que o due process of law passou a regulamentar tanto as relações privadas como as públicas (CASTRO, 2010).

Desse modo, como ensina Siqueira Castro, o devido processo legal tornou-se um dos princípios mais importantes de toda a doutrina processual, não podendo ser visto apenas como um procedimento ou a observância dele, mas exigindo ser enxergado como “um autêntico ‘processo’”, com todas as suas garantias (CASTRO, 2010, p. 32).

A atual Carta Maior do Brasil traz o princípio do devido processo legal em seu art. 5º, inciso LIV, com redação nitidamente inspirada na Magna Carta inglesa de 1215, dispondo que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.

Tentar-se-á apresentar aqui uma perspectiva geral do conteúdo e da abrangência do due process of law, de modo bastante condensado, tendo como base, sobretudo, a Constituição de 1988; porém, antes é necessário esclarecer que não se pretende limitar ou “engessar” o devido processo legal, excluindo-lhe outros possíveis direitos e garantias, até mesmo porque não seria possível expor toda a sua abrangência nas poucas páginas aqui escritas.

Nesse sentido, há muito já afirmara o Juiz Felix Frankfurter da Suprema Corte estadunidense, em trecho transcrito por Siqueira Castro:

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Due process não pode ser aprisionado dentro dos traiçoeiros lindes de uma fórmula... due process é produto da história, da razão, do fluxo das decisões passadas e da inabalável confiança na força da fé democrática que professamos. Due process não é um instrumento mecânico. Não é um padrão. É um processo (CASTRO, 2010, p. 45).

Dessa forma, pautando-se em Carlos Roberto Siqueira Castro (2010), José Joaquim Gomes Canotilho (2003), Danielle Anne Pamplona (2004), Maria Rosynete Oliveira Lima (1999), Paulo Fernando Silveira (1996), Paulo Roberto de Gouvêa Medina (2004) e, em especial, na Constituição de 1988, pode-se afirmar que o devido processo legal possui uma alta abrangência axiológica, englobando os demais princípios processuais constantes na Carta Maior, implícitos ou expressos, tais como o contraditório, a ampla defesa, o duplo grau de jurisdição, a publicidade, a motivação, o juiz natural, a inadmissibilidade das provas ilícitas a duração razoável do processo, a eficiência processual, entre vários outros, fazendo-se guiar pela razoabilidade e pela proporcionalidade...

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