Os princípios do direito do trabalho na Constituição de 1988

AutorHelder Santos Amorim
Páginas107-121

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1. Os clássicos princípios do direito do trabalho

Constitui pedra angular do processo de formação histó-rica do Direito do Trabalho a identificação dos seus princípios jurídicos, distintos dos princípios gerais de direito, como elementos de identificação filosófica e de afirmação da autonomia institucional do Direito do Trabalho em face dos demais ramos da disciplina jurídica.

Nesse processo de afirmação institucional, a clássica doutrina do Direito do Trabalho de meados do século XX, sob o padrão hermenêutico positivista em voga naquele período, identificou, sistematizou e tratou cientificamente os princípios fundamentais da nova disciplina justrabalhista numa perspectiva puramente teórico-descritiva, voltada a atribuir uma explicação racional à legislação trabalhista. Para isso, a doutrina clássica concebeu esses princípios como diretrizes gerais orientadoras das atividades legislativa e interpretativa, mas como categoria distinta da norma jurídica, sem o caráter normativo que viria a ser-lhes atribuído na segunda metade do século XX, a partir da intensa constitucionalização material do Direito do Trabalho e da guinada hermenêutica pós-positivista no campo da dogmática jurídica.

Numa das mais importantes contribuições doutrinárias para a afirmação principiológica do Direito do Trabalho, o uruguaio Américo Plá Rodriguez atribui as funções inspira-dora, orientadora e supletiva aos princípios do Direito do Trabalho, em sua relação com as regras trabalhistas positivadas. Para o autor, princípios são "linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que, podem servir para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e resolver os casos não previstos"1. Observe-se nessa definição o forte traço distintivo entre os princípios e as normas jurídicas, e a função meramente supletiva e orientadora dos primeiros em relação às segundas.

Forte na doutrina de Federico de Castro, Plá Rodriguez identifica como tríplice missão dos princípios: a) a missão informadora, na medida em que servem de inspiração ao legislador, como fundamentos filosóficos para conformação do ordenamento jurídico; b) a missão normativa integradora, na medida em que atuam como instrumento de integração das normas jurídicas, figurando como fonte supletiva de direito na ausência de lei; e c) a missão interpretadora, eis que operam como critérios orientadores do juiz ou intérprete na aplicação das leis, nos casos concretos.

Essa concepção clássica dos princípios justrabalhistas ainda não os considerava inseridos na categoria das normas jurídicas stricto sensu, então reservada às regras legais de Direito do Trabalho. Aqui, os princípios de Direito do Trabalho, diferentemente das normas, são tomados como elementos doutrinários logicamente inferidos do conjunto sistemático dos preceitos legais trabalhistas, pairando sobre estes como fonte de inspiração legislativa e de integração normativa, mas ao mesmo tempo deles dependendo profundamente, já que devem corresponder à fiel concepção do direito trabalhista ordinariamente positivado, submetendo-se, por isso, às flutuantes direções políticas do legislador ordinário.

Nesse momento inicial, a noção de princípios do Direito do Trabalho ainda se restringia à necessidade de afirmação da especialidade e autonomia da nova disciplina jurídica, especialmente em face do Direito Civil, pela necessidade de evolução de um princípio de igualdade formal para um princípio de igualdade material, o que desafiava a ruptura do Direito do Trabalho com o fundamento filosófico liberal do contrato civil. Nesse sentido, Plá Rodriguez, ao descrever as características dos princípios de Direito do Trabalho, refere-se de forma destacada à sua função de justificar a especialidade do Direito do Trabalho diante dos demais ramos do direito:

Por serem próprios do Direito do Trabalho [os princípios de Direito do Trabalho] são distintos dos que existem em outros ramos dos direito. Servem para justifi-

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car sua autonomia e peculiaridade. Por isso têm que ser especiais, diferentes dos que vigoram em outros ramos do direito.2 (grifos acrescidos)

No entanto, apesar da especialidade, esses princípios eram cientificamente tratados sob a mesma perspectiva hermenêutica que se emprestava aos princípios gerais de direito, tomando-se por característica central sua generalidade descritiva, distinta da generalidade normativa que hoje a eles se empresta. Na lição de Plá Rodriguez, os princípios são dotados de generalidade porque "são enunciados básicos que contemplam, abrangem e compreendem uma série indefinida de situações"3. Ao mesmo tempo, nessa perspectiva, não possuem uma generalidade normativa vinculante, senão apenas informativa, inspiradora e integradora da norma jurídica: "um princípio é algo mais do que uma norma, porque serve para inspirá-la, para entendê-la, para supri-la"4.

Essa perspectiva encontra abrigo na noção clássica de Coviello, datada em 1938:

Os princípios gerais de direito são os fundamentos da própria legislação positiva, que não se encontram descritos em nenhuma lei, mas que são os pressupostos lógicos necessários das diferentes normas legislativas, das quais se devem deduzir exclusivamente por força da abstração.5

Carnelutti, embora compreenda os princípios jurídicos como uma derivação das normas jurídicas, situados no interior do direito escrito, como a própria essência ou espírito das leis, deixa acentuada sua característica distinta da norma jurídica. Diz o autor que "os princípios gerais de direito não são algo que exista fora, senão dentro do próprio direito escrito, já que derivam das normas estabelecidas. Encontram-se dentro do direito escrito como o álcool no vinho: são o espírito ou a essência da lei"6.

Sob esse traço epistemológico, Plá Rodriguez identificou e sistematizou analiticamente o princípio de proteção como critério fundamental orientador do Direito do Trabalho, ligado à sua própria razão de ser, eis que a nova disciplina surgiu da resistência à exploração abusiva e iníqua do trabalho humano no cenário hostil da revolução industrial, com acentuada desigualdade social.

Percebeu-se que nessa nova relação de trabalho subordinado e por conta alheia, marcada pela profunda desigualdade econômica entre as partes, a ficção da igualdade formal das partes no contrato civil aprofundava ainda mais a desigual-dade fática, propiciando a submissão do trabalhador a condições humanas degradantes em face da mercantilização do seu trabalho. Fruto das reivindicações operárias, a legislação social trabalhista respondeu, compensando a desigualdade econômica por meio da atribuição ao trabalhador de uma proteção jurídica especial, capaz de resguardar-lhe a dignidade humana.

Nesse sentido, segundo o doutrinador uruguaio:

Enquanto no direito comum uma constante preocupação parece assegurar a igualdade jurídica entre os contratantes, no Direito do Trabalho a preocupação central parece ser a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar-se uma igualdade substancial e verdadeira entre as partes.7

Acompanhando Santoro Passarelli, Cessari capta com maestria a lógica fundante do Direito do Trabalho, ao anotar dentre as razões do seu espírito protetor a inseparabilidade entre a prestação de trabalho e a pessoa do trabalhador, além da normal dependência do trabalhador em relação ao fruto do seu trabalho, como único ou principal recurso para sua sobrevivência8.

Os regimes de escravidão e de servidão, que, da Anti-guidade à Idade Média, marcaram a prestação de trabalho humano privado de liberdade, demonstraram que a iniqui-dade dessa exploração residia especialmente na lógica da alienidade do fruto do trabalho vinculada a seu próprio prestador. Na escravidão, o fruto do trabalho já pertencia previamente ao proprietário do escravo; na servidão, parte do trabalho já pertencia ao senhor feudal, que sobre ele exercia poder misto, real e pessoal9. Posteriormente, no ambiente de livre mercado do Estado moderno, o trabalhador livre, submetido à lógica liberal do contrato civil de prestação de serviços retratado na clássica figura da locatio operarum, foi desconectado do resultado do seu trabalho, do qual se apropriou o empreendimento econômico sem qualquer compromisso social com o obreiro, reduzindo o fruto desse trabalho à mercadoria vendida como mero fator de produção.

Diante dessas circunstâncias históricas, o Direito do Trabalho retratou em sua gênese constitutiva o compromisso ético de efetiva promoção do trabalho livre com dignidade, por meio da tutela jurídica ao modo de alienação do resultado desse trabalho.

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Para além da garantia a uma justa contraprestação econômica, o Direito do Trabalho vocacionou-se à proteção da condição humana do trabalhador em todas as suas dimensões, conferindo-lhe garantias sociais superiores às que poderia conquistar individualmente na relação de trabalho. Reconectou o homem ao resultado do seu trabalho, possibilitando a disposição e alienação desse resultado ao empreendedor capitalista, mas mediante a vinculação comunitária do trabalhador ao empreendimento, para que nele encontrasse o lastro econômico necessário ao seu sustento e de sua família, e o espaço fenomênico necessário à sua promoção social.

Para tanto, o contrato de emprego afastou-se dos cânones formais do contrato civil de prestação de serviço autônomo, deixando de pressupor a igualdade formal entre as partes, para tomá-las em sua desigualdade fática, garantindo proteção jurídica especial ao trabalhador hipossuficiente e convertendo-se, assim, em instrumento de...

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